Atropelos
- Ai senhora, quer saber da minha vida, porquê? A minha vida foi atropelada, veja lá. Eu gostava muito do meu pai, estava sempre assobiando quando íamos à farroba, ao rabisco, ria-se comigo, mas foi lá prá guerra das áfricas e quando voltou ficou mais calado que as pedras. Fiquemos eu e a minha mãe, sozinhas, que o encontremos dependurado na azinheira.
- E quer saber que atropelos mais houve? Pois com aquela desgraça não fui mais à escola e um dia enrabichei-me e lá casei, pra fugir à tristeza de vida. Veio o homem viver com a gente e ele até que trabalhava. Só que andava sempre de candeias às avessas co’ a minha mãe, ela querendo dispôr laranjeiras no terreno de baixo e ele querendo pôr estufas de plástico prós tomates, que o poço dava boa água, dizia ele. Fui esmorecendo, que de gritarias nunca gostei. Houve aí uns anos que aguentei, quando a moça nasceu, sempre é um consolo que as crianças nos dão. Já ela andava na escola, um dia o homem foi levar o tomate lá prá fábrica do molho no Alentejo e sumiu-se. Mas que era bom moço, era. Deixou a chave da camioneta c’o capataz da fábrica. Foi uma trabalheira prá trazer de volta, que eu, isso de conduzir nunca me ajeitei.
- Com’ é que a gente se ajeitou? Pois quando a moça estava no fim da escola veio o exército e disserem que iam construir um novo quartel ali no Guelhim, no caminho para Faro, e ‘exporpiaram’ o nosso terreno de baixo. Deram assim uns contitos, coisa pouca. Mas aquilo foi uma dor de alma para a minha mãe, “então só construírem um muro, mais nada”, choramingava ela. Lá ficaram as laranjeiras dela a definhar, mais as poucas estufas, do meu desaparecido, tombadas. Definhavam as árvores e definhava ela.
- Só que aquilo que a atropelou de vez, ela que arriava palavrório que nunca mais acabava, foi quando vieram os engenheiros e disseram que era preciso ‘exporpiar’ mais um pedaço de terra pra construir a ‘otoestrada’. Era só um niquinho de terra, mas lá é que estava o poço, está a ver? A gente bem explicou que sem poço, nem a horta ia haver, nem galinhas, nem as cabritas pró leite e pró queijo, e só co’a farroba a gente não comia. Eles foram teimando, teimando e disso a minha mãe ficou avariada do juízo. Fala co’a azinheira, como se meu pai lá estivesse.
- Pois ela estar avariada do juízo foi o que valeu, quando a moça em vez de casar se amantizou. Com o dinheiro dos engenheiros da ‘otoestrada’, ela foi estudar as agrícolas da universidade e vai daí aparece co’ homem cá em casa. Dizia ela que não carecia papéis nem padre, que quem gosta fica e quem não gosta ganhe a estrada. A bem dizer, a ‘otoestrada’, a tal Via do Infante.
O rapaz até que era ajeitadinho de corpo e lá co’o dinheiro dele, que o nosso tinha voado todo pró estudo da moça, mandou vir o aguadeiro e abriu o poço, mesmo quase à beira de casa. E a terra ali é rija, senhora, já não é o pé da serra.
- Eles dois ainda fizerem uma horta atrapalhada, sem carreirinhos nem monda, chamam-lhe ‘encológica’, co’as batatas ao lado dos tomates e a abóbora numa rodilha, aquilo nem dá pra olhar. Aos sábados e domingos vem ‘famila’ da cidade, a ‘famila’ lá deles da 'encologia' e sempre se vende o que estiver bom de colher. A farroba, a minha moça foi à fábrica e diz que só nas sementes é que se ganha, que o resto vale pouco ou nada, nem queira saber, qu’as sementes, c’a gente deitava ao fogo antigamente, agora custam mais que a farroba, muito mais.
O último atropelo? Pois o rapaz da nossa rapariga ganhou mesmo a ‘otoestrada’. Andaram pr'ali aos cochichos, aos cochichos, como se falar baixo de zanga, não fosse como gritar! A moça queria fazer mais p’la vida, dizia que tinha tempo de ter filhos depois. E ele rezingando, rezingando, atazanando. E foi-se.
- Agora cá estamos as três. Atropeladas, mas vivas.
- Ai senhora, quer saber da minha vida, porquê? A minha vida foi atropelada, veja lá. Eu gostava muito do meu pai, estava sempre assobiando quando íamos à farroba, ao rabisco, ria-se comigo, mas foi lá prá guerra das áfricas e quando voltou ficou mais calado que as pedras. Fiquemos eu e a minha mãe, sozinhas, que o encontremos dependurado na azinheira.
- E quer saber que atropelos mais houve? Pois com aquela desgraça não fui mais à escola e um dia enrabichei-me e lá casei, pra fugir à tristeza de vida. Veio o homem viver com a gente e ele até que trabalhava. Só que andava sempre de candeias às avessas co’ a minha mãe, ela querendo dispôr laranjeiras no terreno de baixo e ele querendo pôr estufas de plástico prós tomates, que o poço dava boa água, dizia ele. Fui esmorecendo, que de gritarias nunca gostei. Houve aí uns anos que aguentei, quando a moça nasceu, sempre é um consolo que as crianças nos dão. Já ela andava na escola, um dia o homem foi levar o tomate lá prá fábrica do molho no Alentejo e sumiu-se. Mas que era bom moço, era. Deixou a chave da camioneta c’o capataz da fábrica. Foi uma trabalheira prá trazer de volta, que eu, isso de conduzir nunca me ajeitei.
- Com’ é que a gente se ajeitou? Pois quando a moça estava no fim da escola veio o exército e disserem que iam construir um novo quartel ali no Guelhim, no caminho para Faro, e ‘exporpiaram’ o nosso terreno de baixo. Deram assim uns contitos, coisa pouca. Mas aquilo foi uma dor de alma para a minha mãe, “então só construírem um muro, mais nada”, choramingava ela. Lá ficaram as laranjeiras dela a definhar, mais as poucas estufas, do meu desaparecido, tombadas. Definhavam as árvores e definhava ela.
- Só que aquilo que a atropelou de vez, ela que arriava palavrório que nunca mais acabava, foi quando vieram os engenheiros e disseram que era preciso ‘exporpiar’ mais um pedaço de terra pra construir a ‘otoestrada’. Era só um niquinho de terra, mas lá é que estava o poço, está a ver? A gente bem explicou que sem poço, nem a horta ia haver, nem galinhas, nem as cabritas pró leite e pró queijo, e só co’a farroba a gente não comia. Eles foram teimando, teimando e disso a minha mãe ficou avariada do juízo. Fala co’a azinheira, como se meu pai lá estivesse.
- Pois ela estar avariada do juízo foi o que valeu, quando a moça em vez de casar se amantizou. Com o dinheiro dos engenheiros da ‘otoestrada’, ela foi estudar as agrícolas da universidade e vai daí aparece co’ homem cá em casa. Dizia ela que não carecia papéis nem padre, que quem gosta fica e quem não gosta ganhe a estrada. A bem dizer, a ‘otoestrada’, a tal Via do Infante.
O rapaz até que era ajeitadinho de corpo e lá co’o dinheiro dele, que o nosso tinha voado todo pró estudo da moça, mandou vir o aguadeiro e abriu o poço, mesmo quase à beira de casa. E a terra ali é rija, senhora, já não é o pé da serra.
- Eles dois ainda fizerem uma horta atrapalhada, sem carreirinhos nem monda, chamam-lhe ‘encológica’, co’as batatas ao lado dos tomates e a abóbora numa rodilha, aquilo nem dá pra olhar. Aos sábados e domingos vem ‘famila’ da cidade, a ‘famila’ lá deles da 'encologia' e sempre se vende o que estiver bom de colher. A farroba, a minha moça foi à fábrica e diz que só nas sementes é que se ganha, que o resto vale pouco ou nada, nem queira saber, qu’as sementes, c’a gente deitava ao fogo antigamente, agora custam mais que a farroba, muito mais.
O último atropelo? Pois o rapaz da nossa rapariga ganhou mesmo a ‘otoestrada’. Andaram pr'ali aos cochichos, aos cochichos, como se falar baixo de zanga, não fosse como gritar! A moça queria fazer mais p’la vida, dizia que tinha tempo de ter filhos depois. E ele rezingando, rezingando, atazanando. E foi-se.
- Agora cá estamos as três. Atropeladas, mas vivas.
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