Vicente Guerreiro in facebook
Estou a pensar que tirei uns dias para dar descanso ao espírito e não ao corpo, porque a este dei-lhe muito trabalho nas sementeiras de cebolinho e outros vegetais comestíveis.
Em consequência disso, a caneta de escrever não funcionou, mas funcionou a outra, a que lhe chamam enxada.
Dito isto, agora que tenho a caneta e o computador e ajudas de apontamentos, vou debruçar-me e escrever um texto, que está muito em voga, neste tempo que passa, sob um tema interessante. Ora leiam:
AQUELA LAGARTIXA
Conta-se que vida de preso ninguém a sentiu como os lutadores antifascistas.
Foi na António Maria Cardoso. Foi na rua do Heroísmo.Foi no Aljube. Foi em Caxias.Foi em Peniche. Foi na clandestinidade de quase de cinquenta anos.
As estórias das cadeias andam por aí, mas algumas ainda não foram contadas. Quando, no mínimo, são nós de uma corda, pela qual se fugia da prisão, para voltar à clandestinidade e à luta. No sentido em que se contam, são exemplares.
Quase desconhecida é a história da lagartixa. Foi em Peniche, quando o forte isolado e virado para o mar, era o mais cruel depósito de presos políticos feitos pelo fascismo - logo a seguir ao campo de morte do Tarrafal (ilha do Sal-Cabo Verde).
Um dia, no "recreio", que era um pátio todo rodeado de muralha, um preso reparou que, num encontro de pedras, uma pequena coisa mexia: era uma lagartixa, enfiando a cabeça, através de uma fenda do paredão. Aproximou-se. O bicho recuou.
Mas aquela lagartixa, que espreitava e mexia, era, ali, uma coisa viva, à flor da muralha que o separava da liberdade e da vida. Por isso, decidiu chamá-la, cativá-la, tê-la viva, naquele "cemitério" de pedra, onde o tempo, a sentença e a espera apodreciam as pessoas, com o bolor ou a morte.
No dia seguinte, o preso fez uma experiência: apanhou algumas moscas vivas, tirou-lhes as asas e pô-las ao pé do buraco da muralha, tentando a lagartixa. Primeiro, ela fugiu. Depois, chegou-se, com cautela. Mas, ao terceiro dia, já se afoitou abertamente.
Os outros presos viram o que se deu e juntaram-se, ao camarada, na caça às moscas. E já eram tantas, daí em diante, que nem a lagartixa lhe dava vazão.
Começou, assim, um entendimento diário, entre os presos e a coisa viva que saía, afoitamente, da nesga de pedra. Diariamente, à hora do "recreio".
Só que, um dia - sem mais - nem menos - a lagartixa deixou de aparecer. Foram as suspeitas. Morta por carcereiros? Comida por aves nocturnas?
Esmagada pelo aluimento de pedras?
Em vão, os homens esperaram: um dia; dois; uma semana.
Nada.
Alguns, mas poucos, continuaram a trazer moscas sem asas, para as colocar em frente do estreito rompimento da muralha. E nada. Tudo, aparentemente, retomava o silêncio, o vazio e a espera. Todavia, uma manhã, qualquer coisa voltou a mexer no encontro das pedras; a lagartixa, primeiro, deitou a cabeça de fora; depois, fez avançar o corpo todo; e, logo a seguir, saíram, atrás dela, cinco lagartixas, pequenas e vivas - acabadas de nascer.
F I M
N.B. - Nesta pequena resenha do que lhe acabei de contar, é uma pinga de àgua no oceano de sofrimento, às quais o regime fascista de salazar, obrigava os cidadãos honestos e sérios deste País a sofrimentos atrozes, entre os quais o meu saudoso Pai(que me contou esta e outras estórias das masmorras da pide), que passou pelas mais torpes humilhações a que um ser humano é submetido, nas prisões do Aljube e Caxias durante três longos anos, por não concordar com o regime fascista. E ainda há neste País, quem queira esse hediondo tempo de volta? LIVRA!!!
Almada, 5 de Dezembro de 2020
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