O nome Peniche parece derivar da palavra latina peninsula (paene + insula) que à letra significa “quase ilha”. Esta origem, aparentemente comprovada pela documentação histórica conhecida, aponta para um quadro cíclico de maior ou menor insularidade desde território, realidade porventura variável de acordo com o ritmo das marés, e cuja memória se terá perpetuado num topónimo que, por força da utilização oral, evoluiu para o seu termo atual: Peniche.
Desde cedo que esta região estremenha parece ter despertado o interesse das comunidades paleolíticas de caçadores-recolectores que perante a diversidade de recursos disponibilizados aqui se terão fixado.
As principais estações pré-históricas conhecidas no concelho correspondem a ocupações em gruta, conhecendo-se um importante conjunto de sítios na zona Sudoeste do concelho, no Planalto das Cesaredas.
Porém a mais importante estação pré-histórica do concelho é a Gruta da Furninha.
Estação hoje localizada junto ao mar, foi ocupada entre o Paleolítico Médio e o final do Calcolítico, tendo sido escavada em 1880 pelo estudioso Joaquim Nery Delgado.
Esta gruta, ocupada durante o Paleolítico, como abrigo, e durante o Neolítico e a Idade do Cobre, como necrópole, forneceu um vasto espólio arqueológico, no qual se destacam: vestígios osteológicos de vários hominídeos, nomeadamente do Homo Sapiens (Homem de Neandertal) e de Homo Sapiens Sapiens (Homem atual); vestígios de fauna do período quaternário (peixes e mamíferos); utensílios líticos (bifaces, pontas de seta, ou machados de pedra polida); utensílios em osso; e várias peças de cerâmica neolítica (os célebres vasos de suspensão da Gruta da Furninha).
Durante a época romana assiste-se à consolidação de uma economia assente no cultivo das férteis terras aluviais contíguas ao Rio de S. Domingos e à Ribeira de Ferrel, e na exploração de recursos estuarinos e marinhos.
Esta última componente parece ter assumido especial importância como parece demonstrar a descoberta junto ao Murraçal da Ajuda (Peniche), de um complexo oleiro que terá laborado no séc. I d.c. do qual se conhecem-se quatro fornos, e que se teria dedicado principalmente à produção de ânforas destinadas ao envase de preparados de peixe. A então ilha de Peniche assentaria a sua atividade económica na exploração de recursos marinhos, particularmente na produção de conservas de peixe.
Catividade industrial que volvidos dois mil anos continua a laborar nesta terra piscatória.
A presença romana parece também estar atestada no Arquipélago das Berlengas.
Hoje reserva natural, a ilha da Berlenga viu na antiguidade as suas águas abrigadas serem fundeadas por embarcações romanas, facto demonstrado pela identificação e recuperação nestas águas de cerca de uma vintena de cepos de âncora em chumbo e de várias ânforas romanas.
Para a Idade Média as fontes históricas falam de uma ilha de Peniche integrada na esfera económica e administrativa da importante herdade e depois vila de Atouguia da Baleia.
Esta localidade, hoje situada no interior do território a alguma distância do mar, conheceu durante a Idade Média um grande desenvolvimento económico mercê do seu porto, considerado à época de D. Dinis um dos portos mais importantes do reino.
Este florescimento económico possibilitado por uma rentável atividade piscatória, assente na captura de espécies como baleia (cetáceo que aliás dá o nome à vila) permitiu a autonomia administrativa deste território face à vizinha povoação de Óbidos. Esta autonomia é concretizada em 1158 quando D. Afonso Henriques concede em Foral a então herdade de Touguia a Guilherme de Corni, cruzado franco que terá servido este monarca na tomada de Lisboa.
Se até ao séc. XVI a pouco povoada ilha de Peniche terá vivido na esfera económica e administrativa da Vila de Atouguia da Baleia, a partir deste período, com a lenta formação do atual cordão dunário que liga Peniche ao continente e com o consequente assoreamento do porto de Atouguia da Baleia, assiste-se ao desenvolvimento da jovem povoação de Peniche, elevada em 1609 à categoria de vila e sede de concelho, autonomizando-se de Atouguia da Baleia.
Este crescimento urbano, resultante do progressivo aumento do número de moradores na povoação, foi proporcionado pela intensa exploração dos recursos económicos disponíveis na península de Peniche, destacando-se a vigência de uma agricultura assente no cultivo dos cereais e da vinha, e, obviamente, a pesca.
Por outro lado, também a edificação faseada de um sólido sistema defensivo, processo iniciado por D. Luís de Ataíde (Conde de Atouguia e Vice-rei da Índia entre 1568-71 e 1578-81), parece ter contribuído para um certo clima de prosperidade, ao inibir os até aí frequentes ataques da pirataria muçulmana norte-africana e ao impossibilitar desembarques hostis. Com efeito, na sequência do desembarque inglês de 1589, no qual um exército invasor, liderado por D. António Prior do Crato, pretendente ao trono de Portugal, e pelo general inglês John Norris, desembarcando junto à Consolação, marchou com relativa facilidade até às portas de Lisboa, trataram os monarcas filipinos e, principalmente, D. João IV, de fortificar a península de Peniche com um sólido e imponente sistema defensivo de forma a evitar futuramente a sua tomada ou o desembarque nas suas praias de forças invasoras hostis à nacionalidade.
Este complexo sistema defensivo concluído no séc. XVII era constituído por várias fortificações localizadas sobranceiramente ao mar, vigiando o acesso a vários pontos da costa considerados de vital importância estratégica. O acesso à vila de Peniche era condicionado pela presença da Fortaleza de Peniche, e de um longo pano amuralhado que se estendia perpendicularmente à península de Peniche ligando o Forte das Cabanas, no Sul da península, ao Forte de Nossa Senhora da Luz, no extremo Norte. Completando a defesa da região, encontravam-se o Forte de S. João Baptista, na Ilha da Berlenga, e o Forte de Nossa Senhora da Consolação, localizado no dito lugar da Consolação.
Durante a chamada Época Contemporânea (séc. XIX – XX) assiste-se à consolidação no concelho de Peniche de uma estrutura económica e social assente na exploração dos recursos agrícolas e numa intensa atividade piscatória, realidade que perdurou até à atualidade.
Se no interior do concelho a presença de cursos de água, como o rio de S. Domingos ou a ribeira de Ferrel possibilitaram o desenvolvimento neste período de uma importante atividade agrícola, que polvilhou a paisagem rural com férteis hortas e pomares, já na faixa litoral do concelho, particularmente na península de Peniche, prevaleceram a faina piscatória e indústrias adjacentes como principais atividades de subsistência.
Durante o séc. XX, verifica-se uma rápida e profunda transformação da pesca, na qual as tradicionais embarcações e técnicas de captura dão lugar à moderna traineira e à produtiva pesca de cerco. Fruto desta evolução presencia-se o desenvolvimento de várias indústrias associadas à pesca, como a congelação, a salicultura, a indústria conserveira, ou a construção naval, atividades que associadas ao cultivo da vinha, complementam o tecido produtivo desta península.
Neste período assiste-se também a uma lenta mas progressiva melhoria da qualidade de vida das populações do concelho.
Nesse sentido são criados durante a primeira metade do séc. XX vários bairros operários, e de pescadores, em substituição de velhas habitações abarracadas; implanta-se uma rede pública de abastecimento de água, em substituição dos ancestrais poços comunitários, e é introduzida, de forma particularmente precoce, a energia elétrica.
Esta lenta melhoria das condições de vida que se estendeu pela 2ª metade do século passado não diminuiu todavia as dificuldades da árdua labuta piscatória e agrícola.
Pesem as transformações económicas e sociais verificadas no último quartel do séc. XX, decorrentes particularmente da adesão de Portugal à União Europeia, estas continuam a pautar a vida das gentes de Peniche, moldando a maneira de ser do Homem e da Mulher penichense.
“A cadea dos homes bos”
Na sequência do golpe militar de 28 de maio de 1926, a Fortaleza e Peniche receberam presos de natureza política e pessoas com residência controlada.
Em 1934 o regime fascista instituiu o Depósito de Presos de Peniche, sob a direção da PVDE (Polícia de Vigilância e Defesa do Estado). Alojados nas antigas edificações da Fortaleza, aos presos cabia a gestão do quotidiano pessoal – limpeza das casernas, lavar a sua roupa, confecionar as refeições – sempre vigiados de perto por um corpo da Guarda Nacional Republicana.
Em 1945 a tutela da prisão passou para a alçada do Ministério da Justiça, mantendo-se os meios de controlo nas mãos da PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado).
Em 1953 foram iniciadas as obras para um novo estabelecimento prisional, inspirado no modelo das prisões de alta segurança americanas, obras que prosseguiram até 1961 e implicaram a demolição de parte significativa dos antigos edifícios.
São construídos três blocos prisionais – A, B e C – e é construído um sofisticado Parlatório após a demolição do antigo em 1968.
O Parlatório era o espaço da Prisão política onde os presos recebiam as visitas dos familiares e amigos. A visita decorria sob enorme tensão e podia ser interrompida sob qualquer pretexto dos guardas.
A vigilância sobre presos e familiares era não só rigorosa, como intimidatória, pois a configuração do espaço impedia qualquer contacto físico entre os presos e os familiares. Presos e visitas eram obrigados a falar muito alto para que todas as conversas fossem perceptíveis pelos guardas. Atrás de cada preso havia um guarda sempre pronto a intrometer-se nas conversas. Quando um guarda interrompia a visita, significava que o preso seria castigado. A punição podia ser suspensão das visitas, a proibição de recreio ou o envio para o “Segredo”, a temível cela de castigo no Fortim Redondo.
Durante o regime fascista o Fortim Redondo foi utilizado como cela disciplinar e, entre os presos políticos de Peniche, ficou conhecido como “Segredo”.
Com a requalificação da prisão surge a Cadeia do Forte de Peniche, pautada pelo reforço do aparelho repressivo prisional, realidade que se mantém até ao 25 de abril de 1974. Cada bloco e cada piso eram isolados de forma a impedir o contacto entre os presos, tendo sido ainda construídos dois Pátios de Recreio interiores.
Dos novos edifícios destaca-se o Bloco C, que albergava no 1º piso presos em celas coletivas; no 2º piso a enfermaria e no 3º piso a Ala de Alta Segurança onde estavam encarcerados os presos considerados mais perigosos pelo regime e que interessava isolar da restante população prisional.
Foi daqui que se deu a célebre fuga coletiva de 1960.
A PIDE em Peniche
A PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado) exercia um poder absoluto sobre as suas cadeias privativas – Aljube, Caxias, Porto, Coimbra – e sobre as cadeias formalmente dependentes da Direção Geral dos Serviços Prisionais, Ministério da Justiça, como era o caso da cadeia na Fortaleza de Peniche.
A vigilância dos pavilhões penitenciários era garantida pela Guarda Prisional e o perímetro da Fortaleza de Peniche pela Guarda Nacional Republicana. No entanto, a portaria do estabelecimento prisional era assegurada diretamente por elementos da PIDE/DGS que, desta forma, controlavam a totalidade dos acessos à Cadeia.
A PIDE exercia uma vigilância omnipresente e omnipotente sobre a Cadeia, quer pela intervenção direta, quer pelos seus agentes internos, quer ainda por informadores recrutados no corpo dos guardas prisionais, que asseguravam a esta polícia um duplo controlo sobre toda a vida prisional.
A abertura da delegação da PIDE em Peniche, em abril de 1965, veio acentuar a vigilância sobre a Fortaleza, os familiares dos presos e a população de Peniche. A PIDE vigiava e controlada tudo o que se passava à volta da Fortaleza e em Peniche, fazia o registo dos nomes dos familiares e de outras pessoas que visitavam os presos, anotava as matrículas dos carros em que se deslocavam e controlava, igualmente, os locais onde os familiares comiam, dormiam e as pessoas com quem conversavam, chegando a realizar buscas a essas casas e a submeter os seus proprietários a interrogatórios.
Instituições e cidadãos de Peniche considerados ‘desafetos’ ao regime eram suspeitos de partilhar ideias “subversivas” e sujeitos a buscas, devassas policiais e mesmo presos. Os pescadores eram alvo de particular atenção por parte da PIDE que avaliava o seu “estado de espírito”.
Solidariedade com os Presos Políticos
A solidariedade para com os presos políticos foi constante e uma importante componente da resistência à ditadura do Estado Novo.
Diversas estruturas e comissões de solidariedade – no plano nacional e internacional – deram a conhecer a severidade do regime, ajudando na mobilização, denúncia e melhoria das condições prisionais, exigindo melhor alimentação, mais convívio entre os presos e possibilidade de visitas em comum.
A luta pela melhoria das duras condições prisionais teve alguns momentos marcantes:
– Greves de fome de 1950 e 1952, esta última apoiada por manifestação das famílias e populares de Peniche;
– Lutas de 1960 e 1962, em apoio da campanha nacional e internacional pela amnistia aos presos políticos;
– Lutas de 1963 e 1964, com levantamento de rancho e gritos de todos os presos;
– Luta de 1970, por melhor alimentação e assistência médica.
Estas lutas só foram possíveis porque os presos, apesar do seu isolamento e permanente vigilância, ergueram uma organização que assegurava a comunicação entre o coletivo prisional disperso pelos diferentes blocos e pisos e entre o interior e o exterior da cadeia.
A solidariedade entre presos políticos no interior da cadeia permitiu minorar as arbitrariedades a que eram sujeitos, através de um sistema de entreajuda, com levantamentos conjuntos e partilha de mantimentos cedidos pelas famílias – cuja redistribuição, chamada “comuna”, mesmo quando proibida continuou a existir.
A população de Peniche mostrou-se solidária com os presos: facilitando as visitas dos familiares com donativos e cedência de instalações para dormidas, através de apoio moral e do silêncio cúmplice, nas fugas que testemunhou.
As colónias de férias para filhos de presos políticos, promovidas pela Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, tiveram também um importante papel na resistência antifascista. Destas destaca-se, pela sua proximidade à Fortaleza, a que existiu na Casa do Anjo, no Baleal (freguesia de Ferrel, Peniche) a partir de 1973.
26 de abril de 1974
Na madrugada de 25 de Abril de 1974 eclode a revolução liderada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA) que derruba a ditadura do ‘Estado Novo’. Neste processo são tomados e ocupados pelas forças militares, diversos locais e equipamentos considerados estratégicos, um pouco por todo o país. Deste rol consta a ocupação dos estabelecimentos prisionais de natureza política afetos ao regime: Cadeia do Aljube, Cadeia do Forte de Caxias e Cadeia do Forte de Peniche.
Pelas 10h30 do dia 25 de Abril chega a Peniche o Agrupamento Norte, comandado pelo Capitão Diamantino Gertrudes Silva, que congrega o RAP 3 – Regimento de Artilharia Pesada 3, o CICA 2 – Centro de Instrução de Condução Auto 2, ambos da Figueira da Foz, o Regimento de Infantaria 10, de Aveiro, e o Regimento de Infantaria 14, de Viseu, com o objetivo de ocupar a Cadeia do Forte de Peniche.
Correspondendo esta data à última quinta-feira do mês, realizava-se no chamado Campo da Torre (Campo da República – junto à Fortaleza) a tradicional feira mensal, tendo a mesma sido abruptamente interrompida e desmantelada pela chegada do contingente militar.
Após a recusa do diretor da cadeia, António Leal de Oliveira, em aceder à rendição e entrega do estabelecimento prisional, a companhia CICA 2 e duas seções de obuses do RAP 3 comandadas pelo Capitão Rocha Santos, montam cerco à fortificação. São apontados obuses de forma a fazer fogo sobre a Fortaleza de Peniche, caso fosse necessário. O grosso da coluna militar seguirá para Lisboa, ficando às ordens do Posto de Comando na Pontinha.
A população de Peniche assiste às movimentações militares com um misto de estranheza e curiosidade, tomando conhecimento do golpe militar ao longo do dia, através da rádio e da televisão.
Concluído o golpe militar com sucesso, será no dia 26 de abril que a população de Peniche, os familiares e amigos dos presos políticos se vão concentrar no exterior na Fortaleza, aguardando a saída destes, numa vigília que durará todo o dia. Já de noite, chegam a Peniche o Capitão-tenente Carlos Machado Santos e o Major José Moreira de Azevedo, acompanhados dos advogados Acácio de Gouveia, Artur Cunha Leal e Nuno Rodrigues dos Santos, enviados pelo MFA para negociar a saída dos presos políticos.
Será apenas na madrugada de dia 27 de abril que os trinta e seis presos detidos à época nesta cadeia serão libertados, para júbilo da multidão que longamente os aguardou no exterior dos muros da Fortaleza de Peniche.
A Prisão-Fortaleza de Peniche no pós-Revolução
No período conturbado que se seguiu imediatamente à Revolução, a Fortaleza serviu ainda de prisão a figuras ligadas ao regime fascista, nomeadamente elementos da extinta PIDE/DGS.
O fim da história prisional da Fortaleza foi simbolicamente assinalado a 26 de fevereiro de 1976, com o hastear da bandeira branca, após a saída para o estabelecimento prisional de Alcoentre de antigos ministros do governo de Marcelo Caetano e ex-agentes da PIDE, aqui presos por ordem do Movimento das Forças Armadas.
Em 1974 iniciou-se também o processo de descolonização dos territórios ultramarinos, em consequência do qual milhares de refugiados e retornados chegaram a Portugal. Enquadrados pelo IARN – Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais, e perante a inexistência de alojamento mais apropriado, a Fortaleza de Peniche acolheu algumas destas famílias, que ocuparam os vários edifícios do antigo complexo prisional.
Entre 1977 e 1982 funcionou na Fortaleza o Centro de Acolhimento de Refugiados de Peniche, dirigido pela Cruz Vermelha Portuguesa, que terá albergado nos edifícios prisionais cerca de cem famílias, num total de mais de meio milhar de refugiados/retornados
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