Eduardo Cabrita está na berlinda por causa do assassinato, em março, por espancamento, de um homem de nacionalidade ucraniana, nas instalações dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras.
A tendência do ministro da Administração Interna para a queda no abismo do discurso gongórico, grandiloquente e egocêntrico não é nova, mas atingiu o nível da tragédia patética na passada quinta-feira quando, como certamente muitos ouvintes ouviram, tentou virar contra os seus presumíveis acusadores uma suspeita de negligência.
"Tendo estado, quase sozinho, perante o desinteresse de todos os comentadores, perante o desinteresse da generalidade da comunicação social, congratulo-me que, neste momento, tantos que não perceberam nada do que foi dito, não ligaram nada aquilo que eu disse em março, em abril, agora estejam justamente preocupados com esta situação. Bem-vindos", disse.
Eduardo Cabrita até tem um bocado de razão: de facto, houve demasiados protagonistas mediáticos que não deram relevo, realmente destacado, ao escândalo da crueldade com que representantes do Estado português torturaram até à morte um cidadão ucraniano.
Eu, por exemplo, nunca comentei este facto aqui, e penalizo-me por isso.
Também é verdade que nenhum partido ou organização cívica fez do tema uma bandeira de combate na defesa dos direitos humanos - aliás, se compararmos os poucos protestos escritos e as parcas declarações que na altura alguns partidos comunicaram, com a mobilização e as discursatas ocorridas em Portugal após o assassinato pela polícia, nos Estados Unidos da América, de George Floyd, o embaraço que eu próprio hoje sinto ao abordar o assunto deveria estender-se a muitos políticos portugueses (em todos os órgãos de soberania e em todos os quadrantes partidários), a muitos jornalistas, a muitos comentadores e a muitos dos que se envolvem em Portugal, profissionalmente ou militantemente, nas causas da defesa de direitos humanos: foram, fomos, todos, desumanamente negligentes.
Felizmente houve exceções, sobretudo do jornalismo, suficientes para estarmos, nove meses depois, a iniciar um processo que poderá assegurar alguma justiça e reparação de danos à família de Igor Homenyuk.
Só temos de agradecer a quem não deixou cair o assunto.
E talvez venhamos a ter resposta à pergunta fundamental que, finalmente, depois da tibieza das primeiras reações, em abril, é feita agora pelo Presidente da República: estes espancamentos serão prática habitual nas nossas fronteiras ou foram um caso pontual?
A esta pergunta de Marcelo Rebelo de Sousa eu acrescentaria outra: A reestruturação do SEF, que já estava agendada e agora será acelerada, poderá levar a parte policial desse serviço a ser extinta, para passar a ser assegurada por outras forças policiais - temos a certeza que as nossas forças de segurança, como a PSP ou a GNR, não fazem do espancamento um prática habitual?
Eu, que acho que os polícias portugueses são muito injustiçados e muito mal tratados pelo poder político e mediático, não deixaria, porém, de analisar os guias de procedimentos e as práticas operacionais, não prescindiria de coligir um levantamento e de realizar uma análise às queixas existentes sobre interrogatórios, excessivamente violentos, ocorridos em todas as instituições policiais.
Só depois decidiria se era mais importante reformular o policiamento das fronteiras ou, primeiro, a forma de fazer interrogatório de todas as nossas polícias. Era mais assisado.
Deve, então, o ministro Eduardo Cabrita demitir-se?
Quem transforma um momento em que o Governo apresenta explicações sobre a resolução de um caso de violação de direitos humanos, praticada pelo Estado português, numa sessão política de vitimização pessoal, sofre de uma hipertrofia do ego que o torna perigoso para a governação.
Quem faz depender a importância dos dossiers do seu ministério do estado de espírito e da pressão dos comentadores e da generalidade da comunicação social, governa para parecer bem, não para fazer bem.
Quem diz que esteve quase sozinho a tratar das consequências do assassinato de Igor Homenyuk e, com todo esse poder, nem sequer teve a sensibilidade e a competência para assegurar, a contas do Estado português, a trasladação do corpo para a Ucrânia, que foi paga pela viúva, deve mesmo ser demitido.
Porém, muitos dos que pedem hoje a cabeça de Eduardo Cabrita, não têm mesmo moral para o fazer. É um facto.
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