Há coisas que se choram muito anteriormente / Sabe-se então que a história vai mudar
(Ruy Duarte de Carvalho [1951-2010], antropólogo e escritor angolano, autor de “Vou lá visitar pastores“, obra onde dá a conhecer o povo Herero e os seus vários subgrupos)
Em 1985, a ONU reconheceu, no , que o extermínio do povo Herero na colónia germânica do Sudoeste Africano, actual Namíbia, “constituiu o primeiro genocídio do século XX”. Esta é, igualmente, uma reivindicação dos arménios, depois de 1,5 milhões (de uma população total de dois milhões) terem sido mortos, entre 1915 e 1922, por forças de um decadente Império Otomano.
A, 24 de Abril, todos os orgulhosos cristãos arménios – os cerca de 3 milhões que vivem na mais pequena das antigas repúblicas da extinta URSS e os aproximadamente 8 milhões na diáspora (muitos deles descendentes dos que foram deportados pela “Sublime Porta”) – celebram o centenário do massacre que a Turquia moderna e muçulmana apenas reconhece como uma “grande catástrofe”.
A Alemanha rejeita também a responsabilidade pelo genocídio de 80% do povo Herero e 50% da população Nama, e não aceita a obrigação de indemnização. Sucessivos governos parecem temer que novos pedidos de compensações financeiras venham a ser apresentados por outros grupos vítimas do colonialismo e das duas guerras mundiais.
[Em Julho de 2016, o Governo alemão reconheceu e pediu desculpa pelo genocídio do povo Herero, mas deixou claro que não pagará indemnizações. Apenas “contribuirá para o desenvolvimento da Namíbia.]
Para entender o passado e o presente, entrevistei quatro analistas e historiadores do “genocídio esquecido” e do “genocídio tabu”: na Namíbia, Casper W. Erichsen, e na Alemanha, Jürgen Zimmerer; na Arménia, Richard Giragosian, e na Turquia, Yavuz Baydar. Aqui estão, em discurso directo:
Casper W. Erichsen (Namíbia)
Historiador residente em Windhoek, tem explorado as raízes e consequências dos genocídios na Namíbia, entre 1903 e 1908. É autor, em parceria com o britânico-nigeriano David Olusoga, também ele historiador (além de documentarista e produtor da BBC), de uma obra fundamental para saber mais sobre o extermínio dos Herero/Nama: “The Kaiser’s Holocaust: Germany’s Forgotten Genocide and the Colonial Roots of Nazism”.
O projecto de anexação colonial no Sudoeste Africano foi iniciado pelo Reichskommisar [Comissário do Reich] Heinrich Ernst Göring, pai de Hermann (que seria líder político e militar do Partido Nazi), e demorou 20 anos a ser concluído. É, pois, errada a concepção de que a ‘Colónia Alemã’ no que é hoje a Namíbia, tenha sido criada na Conferência Berlim-África de 1884/85.
Embora a Alemanha assegurasse o direito, entre as nações europeias, de explorar a colonização daquela região, sem que outras potências coloniais se opusessem, o acordo não deu à Alemanha quaisquer direitos legais ao território, já então habitado por vários de milhares de pessoas.
Inicialmente, foi excessivamente difícil para o Reich ganhar quer uma base de apoio política como económica. Vários aliados políticos governavam um extenso território, maior do que o da própria Alemanha. A economia, centrada na agricultura e na pastorícia, estava firmemente nas mãos dos povos indígenas que a valorizavam e protegiam.
Talvez o ‘governador” alemão mais competente, em termos políticos, tenha sido Theodor Leutwein, que obteve progressos ao privilegiar o diálogo em detrimento do confronto contra os líderes locais – os mais influentes eram Maharero Tjamuaha, na região central, e Hendrik Witbooi, no Sul e Centro.
A Weltpolitik substitui a Realpolitik
Entre meados e o final dos anos 1890, a Alemanha lançou a ambiciosa visão de Weltpolitik [doutrina diplomática adoptada pelo Kaiser/imperador Wilhelm II que marcou um corte com a Realpolitik, de Otto von Bismarck’]. O objectivo era transformar o país numa potência mundial reconhecida. Isto significou mais investimentos no imperialismo e expansionismo.
As colónias já não eram apenas um meio de procurar matérias-primas baratas para a indústria germânica, mas também uma questão de prestígio. Importante: as colónias, como a do Sudoeste Africano, ofereciam uma alternativa para dezenas de milhares de cidadãos que deixavam a pátria, todos os anos, procurando pastagens mais verdes.
Neste período, a autoridade militar colonial, ainda que apenas nominalmente responsável pelo território, expandiu a sua rede de comissários a nível distrital. À medida que estes oficiais, geralmente homens que tinham combatido noutras guerras coloniais com ideias fixas sobre raça e autoridade colonial, tentavam impor o seu domínio em aldeias e vilas, entraram logo em conflito directo com as autoridades tradicionais.
Até à viragem do século, registaram-se pequenas escaramuças, o que levou o governador Leutwein a dizer ao departamento colonial que os seus homens eram dementes:
- A maioria da população branca do protectorado tem vindo a esquecer-se de que só estamos na Hereroland [Terra dos Herero] devido a um acordo negociado e, no entanto, está a agir como se fossem conquistadores, embora não tivéssemos conquistado nada.
Em Outubro de 1903, na povoação de Warmbad, no extremo Sul, uma das escaramuças teve consequências desastrosas. Desencadeou uma série de incidentes que acabariam por desenraizar comunidades em toda a Namíbia, e culminaram no extermínio quase total de vários dos seus povos.
Quando o tenente [Walter] Jobst interferiu numa disputa sobre o preço de uma cabra, seguiram-se agressões físicas e o líder local foi morto. Jobst foi também assassinado, em poucos minutos. Este incidente instigou as tensões entre a autoproclamada ‘autoridade colonial’ e a verdadeira liderança tradicional africana.
Reagindo ao homicídio do tenente Jobst, o Kaiser e o seu comandante-geral fizeram avançar o exército colonial cerca de 700 quilómetros até ao Sul, para chegar a Warmbad e esmagar o que passou a ser definido como ‘rebelião’. Entretanto, a 12 de Janeiro de 1904, outras escaramuças ocorreram na localidade de Okahandja, no Norte, bastião político dos Herero, sob a direcção de Samuel Maharero.
Um outro comissário, o tenente Ralf Zurn, ultrapassou as suas balizas e provocou uma revolta local. Nesse fim de tarde, ecoaram tiros por toda a povoação e, rapidamente, a fuzilada se espalhou aos colonatos e propriedades agrícolas alemães em toda região central da presente Namíbia.
“Só se rendem pela força”
Na reacção a estas chamadas ‘rebeliões’, o Kaiser decidiu usar toda a força militar em vez de negociar a paz, como sugerira o governador Leutwein.
Milhares de reservistas foram mobilizados para combater, e um tenente particularmente brutal, Lothar von Trotha, que antes cumprira serviço militar na África Oriental, foi chamado a assumir o comando geral. A posição de Trotha era bem clara. Numa mensagem enviada a Leutwein, escreveu:
- Conheço bem as tribos em África. Todas têm a mesma mentalidade e só se rendem pela força. Tem sido e permanece minha política usar esta força através de um terrorismo absoluto e até crueldade.
A 11 de Agosto de 1904, as forças de Trotha lançaram um ataque perverso contra milhares de Herero que fugiam das suas terras, para longe das linhas. O contínuo bombardeamento com artilharia deixou os combatentes Herero numa ofensiva desesperada para a qual estavam aprontadas as forças coloniais e suas metralhadoras.
A principal batalha foi travada junto aos furos de água de Ohamakari, não longe do rústico quartel-general de Trotha a partir do qual ele liderava as tropas com a ajuda de sinais emitidos por espelhos.
Vários heliógrafos haviam sido colocados estrategicamente para informar o general sobre os movimentos militares e para melhor dirigir a guerra. Nestes ataques, as suas assumidas intenções eram as de destruir a nação Herero.
As batalhas não correram como planeado. A larga maioria da nação Herero conseguiu quebrar as linhas alemãs e fugir para o árido deserto de Omaheke, deixando para trás bens e gado. Neste êxodo em direcção ao Protectorado Britânico da Bechuanalândia, actual Botswana, milhares de homens, mulheres e crianças Herero morreram de sede.
A Ordem de Extermínio
Na sequência dos esforços falhados para destruir completamente a nação Herero, Trotha emitiu uma ordem – surpreendente – que autorizava execuções em massa dos homens Herero. O decreto foi designado por Ordem de Extermínio, e tornou-se política oficial da colónia; uma política que especificava, inequivocamente, que não haveria distinção entre combatentes e não combatentes, ao mesmo tempo que ordenava que ninguém deveria ser feito prisioneiro.
Não se sabe quantas pessoas foram mortas nos dois meses em que a ordem se manteve em vigor. Também se desconhece quantas mais comunidades africanas no território sucumbiram a este decreto que, para todos os efeitos, foi levado a cabo por jovens alemães com pouco ou nenhum conhecimento das diferenças políticas e culturais entre as pessoas de ‘pele escura’.
Após revogada, a Ordem de Extermínio foi substituída por uma nova política que apelava a que fossem criados campos de concentração em todo o território. Isto foi praticado com relutância, e dezenas de milhares de pessoas – a maioria crianças e mulheres – foram amontoadas nesses campos onde a vasta maioria sucumbiu a violência, violações, exaustão, doenças e má nutrição – ‘circunstâncias’ na ordem do dia.
A política dos campos de concentração foi aplicada durante três anos e dela resultaram dezenas de milhares de mortes. Apesar das provas claras sobre os efeitos dos campos e a demografia dos que ali foram colocados, as autoridades alemãs intensificaram o seu uso, e apresentaram uma ‘inovação’: campos de trabalho forçado, para garantir que os moribundos pudessem ainda ser usados para construir a nova colónia alemã que emergia das cinzas da guerra.
A narrativa dos alemães “mártires”
Em 1908, a guerra alemã estava no fim. O resultado foi duro: 80% do povo Herero e 50% da população Nama tinham sido exterminados. Campanhas posteriores contra a tribo San (ou Bushmen), seguindo a mesma Ordem de Extermínio, mataram também um número incalculável de pessoas.
Depois de muitos – eu incluído – terem cunhado o termo ‘o primeiro genocídio do século XX’, foram empreendidos esforços deliberados para obscurecer e apagar as decisões políticas e burocráticas que levaram aos homicídios em massa.
Por exemplo, quando, os sociais-democratas alemães pressionaram o Governo do Kaiser a explicar o que havia acontecido, o relatório dos factos foi encomendado ao mesmo homem responsável por muitas decisões: Oscar Hintrager.
Entretanto, esse relatório foi ocultado, e o Sudoeste Africano continuou a sua trajectória em direcção ao controlo colonial alemão. No preciso local onde foi instalado o campo de concentração de Windhoek, foi erguida uma estátua de homenagem aos soldados alemães mortos em combate [676 de um total de 3000; outros 689 perderam a vida devido a doenças, e 76 foram dados como desaparecidos.]
Criou-se uma nova narrativa em que os alemães foram mártires em solo africano, na luta contra um ‘agressor nativo brutal’. Esta noção ficou entranhada no discurso social, e teve eco, designadamente, na ficção popular e em canções.
Os que sobreviveram ao genocídio tiveram de suportar ainda mais a humilhação e a ignomínia sob o domínio inglês e do apartheid. Muitos vivem agora em reservas com pastagens ou terras comunais sobrelotadas, procurando sobreviver nas condições mais agrestes que se podem imaginar.
Na Namíbia pós-independência, o povo libertado passou a receber educação e serviços sociais gratuitos, de acordo com as possibilidades de um país de rendimentos médios. A história dos Herero é a de uma luta de sobrevivência contra todas as adversidades. Eles continuam sem deter poder político, que se concentra nas áreas mais populosas, no Norte, onde o genocídio nunca chegou.
[Casper Erichsen admite não ter conhecimento da presença dos Herero, em Angola, apesar de este país ser fronteiriço com a Namíbia. No entanto, diversas fontes, entre eles o antropólogo Ruy Duarte de Carvalho (1941-2010) e o fotógrafo e produtor cultural Sérgio Guerra – autores de duas obras-primas, “Vou lá visitar pastores” e “Angola-Hereros”, respectivamente –, comprovaram a existência de subgrupos nas províncias do Cunene, Huíla e Namibe. Entre eles estão os Kuvale, os Zemba, os Hakawona, os Tjavikwa, os Tjimba e os Himba. Para acesso a mais textos e imagens sobre os Herero e os Nama, consultar este site .]
Jürgen Zimmerer (Alemanha)
Professor de História Africana na Universidade de Hamburgo e director do recém-criado centro sobre “O legado pós-colonial de Hamburgo”. É desde 2005 presidente da International Network of Genocide Scholars (www.inogs.com). Entre 2000 e 2004 fez um pós-doutoramento no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra. Entre as obras mais importantes de que é autor e co-autor estão “Genocide in German South-West Africa: The Colonial War (1904-1908) in Namibia and its Aftermath”, “German Colonialism and National Identity” e “De Windhoek a Auschwitz?” (Von Windhuk nach Auschwitz?)
“[Por que é que a Alemanha reconheceu o Holocausto e indemnizou os sobreviventes e familiares, continuando a fornecer a Israel – “negacionista do genocídio arménio” – fundos além de equipamento militar e nuclear, mas recusa agir de igual modo com os Herero?] É preciso notar que a Namíbia é um país relativamente pequeno (em termos de habitantes [2,3 milhões] e os Herero são (também por causa do genocídio) um grupo comparavelmente pequeno. Nunca conseguiram organizar uma opinião pública global de modo a criar uma forte pressão internacional que reconhecesse o genocídio.
Nunca uma grande nação do Norte Global, por exemplo, alguma vez apoiou o reconhecimento do genocídio Herero: nenhuma está a pressionar o Governo alemão a aceitar o facto e agir em conformidade.
Uma das razões para isso pode ser a de que governos do Norte Global são também governos de nações que estiveram, elas próprias, envolvidas no colonialismo e na escravatura. Temem, por isso, que o caso alemão possa abrir um precedente (positivo) para o reconhecimento de crimes coloniais e até indemnizações, o que as colocaria sob grande pressão.
Note-se que as investigações mais recentes indicam que o período do genocídio foi de 1904 a 1908, incluindo aqui também as vítimas nos campos de concentração. Nesta altura, os militares alemães exterminaram deliberadamente mais de 70% do povo Herero e 50% do povo Nama, porque eles haviam pegado em armas contra a Alemanha e desafiado, com êxito, o poder colonial germânico.
A Alemanha enviou uma gigantesca força expedicionária para esmagar a ‘rebelião’ com todos os meios necessários. O oficial de comando aproveitou esta carta branca para iniciar os seus planos genocidas, porque ele acreditava numa guerra racial, entre “Brancos” e “Pretos”, que só poderia terminar com a destruição de uma das partes.
Os campos de aniquilação
Em consequência disso, milhares de pessoas foram transferidas para o deserto de Omaheke, onde soldados alemães os impediam de fugir. Foram milhares os que morreram.
Semanas depois de terminar o desterro no deserto, os Herero que sobreviveram foram internados nos chamados campos de concentração, em conjunto com as comunidades Nama, já envolvidas numa revolta armada.
Uma combinação de campos de ‘Prisioneiros de Guerra’ (incluindo crianças e mulheres) e campos de trabalho forçado resultou em aniquilação através de uma negligência propositada.
Quando a guerra acabou e os campos foram abandonados,
O Sudoeste Africano tinha sido transformado num Estado racial em que eram proibidos ‘casamentos mistos”, restringida a liberdade de movimentos dos africanos, que tinham de usar crachás com números e eram obrigados a trabalhar para os patrões alemães. Quer o genocídio como o Estado racial foram o presságio dos crimes dos nazis cometidos 40 anos depois.
A Alemanha tem recusado a responsabilidade pelo genocídio e a obrigação de indemnização, porque o Governo parece recear que novos pedidos de compensações venham, posteriormente, a ser também apresentados por outros grupos vítimas do colonialismo e das Primeira e Segunda Guerras Mundiais.
[Em 16 de Agosto de 2004, no 100º aniversário do início do genocídio, a ministra para o Desenvolvimento Económico e Cooperação, Heidemarie Wieczorek-Zeul, declarou :
- Aceitamos a nossa responsabilidade moral e histórica e a culpa dos alemães daquela época.
A social-democrata Heidemarie rejeitou, todavia, o pagamento de indemnizações, embora prometesse continuar a apoiar o Governo namibiano com cerca de 14 milhões de euros por ano. Também a família Trotha viajou até Omaruru, em Outubro de 2007, a convite de chefes da casa real dos Herero, tendo um dos seus membros, Wolf-Thilo von Trotha, pedido desculpas pelas acções dos antepassados.
- Estamos profundamente envergonhados com os terríveis acontecimentos de há 100 anos. Os direitos humanos foram grosseiramente violados naquela altura.
Em Agosto de 2008, Peter Katjavivi, antigo embaixador de Windhoek em Berlim, reclamou que cerca de 300 crânios dos prisioneiros Herero e Nama enviados para Alemanha, para ‘provar, em experiências científicas, a ‘superioridade dos europeus e como os negros eram iguais a macacos’, fossem devolvidos à Namíbia.
Em duas universidades alemãs foram encontrados pelo menos 40 crânios, um deles, provavelmente, o de um chefe Nama que morreu no campo de concentração na isolada Ilha de Shark. O ‘requerimento’ foi aceite em 2011.]
Cansados do passado nazi e do Holocausto
Muitos cidadãos alemães não querem envolver-se em mais um “capítulo obscuro” da sua história, porque estão cansados e desgostosos por terem de confrontar o passado nazi e o Holocausto.
Assim sendo, qualquer discussão sobre genocídios e crimes em massa antes de 1933, ou quaisquer ligações entre crimes coloniais e o Holocausto, como eu identifiquei no meu livro “De Windhoek a Auschwitz?” [Von Windhuk nach Auschwitz?], é um tabu e enfrenta uma resistência feroz.
A questão da terra é ainda um dos temas mais prementes na sociedade e política namibianas. Durante o genocídio dos Herero e dos Nama, a terra foi nacionalizada e, subsequentemente, entregue a colonos alemães.
Depois da I Guerra Mundial, quando o Sudoeste Africano foi cedido, como um Trust [crédito] à África do Sul, os brancos sul-africanos também adquiriram terras.
É verdade que ainda há alemães nas propriedades de Hereroland, e que os Hereros são pobres. Também não parecem beneficiar das fracas tentativas de reforma agrária em que a posse da terra passa para proprietários negros que não são Hereros.
Richard Giragosian (Arménia)
Director do Regional Studies Center (RSC), “think tank” independente em Ierevan, capital da Arménia. O RSC é membro de um consórcio de oito organizações da sociedade civil da Arménia e da Turquia que inclui o programa “Support to the Armenia-Turkey Normalisation Process” (ATNP) financiado pela União Europeia no âmbito do “Instrumento de Estabilidade”.
A tragédia dos Herero e dos Nama permanece entre os exemplos mais esquecidos no vasto campo dos estudos dos genocídios.Dado o longo historial de abuso imperial por todo o continente africano, o início do século XX foi um período de crimes indesculpáveis contra a Humanidade, muito mais profundo e de maior grandeza do que o caso do genocídio arménio de 1915.
Para os arménios, todavia, é a combinação do mesmo sentimento de negligência e de campanha concertada de negação por parte do Governo turco que tende a elevar o genocídio arménio ao estatuto de prioridade populacional e pessoal.
No entanto, o amplo significado da necessidade de reconhecimento do genocídio arménio está também enraizado no imperativo de reconhecer as tragédias de todos os outros casos de genocídio, incluindo o extermínio racial dos povos Herero e Nama.
No caso africano, um outro genocídio, no Ruanda, marcou um nível degradante na prevenção moderna de crimes contra a Humanidade. Com uma perturbadora inacção e desatenção, a América emergiu como símbolo principal da timidez dos Estados face a atrocidades e aos genocídios.
Embora os EUA não fossem os únicos a falhar na resposta ao que foi, claramente, um genocídio, não desempenharam, como ficou evidente, o seu papel de líder da comunidade internacional.
As especificidades do genocídio ruandês são particularmente condenáveis. De Abril a Julho de 1994, um governo liderado por elementos extremistas da etnia Hutu levaram a cabo uma campanha genocida visando a etnia Tutsi.
Foram mortos pelo menos 800 mil ruandeses, ou seja, cerca de 10% da população total. A escala e dimensão colossais dos 100 dias do genocídio ruandês foram aterradoras.
Ruanda: Hutus vs Tutsis
O grau de homicídios [no Ruanda] foi o triplo do Holocausto cometido pelos nazis e envolveu mais de um milhão de executores, cúmplices e intermediários.
[Será que, hoje em dia, não se vem banalizando, na linguagem política, os termos “genocídio” e “Holocausto”?] Não há dúvida que o perigo de abusar ou interpretar mal o termo ‘genocídio’ tende a diluir a autoridade moral e o significado de cada caso de genocídio.
No que diz respeito ao genocídio arménio, investigações académicas têm produzido um trabalho muito abrangente sobre diversos aspectos dos acontecimentos de 1915, cada um deles servindo para inventariar uma narrativa histórica de grande profundidade e detalhe.
Tem sido também dada significativa atenção ao papel do genocídio arménio como precedente e percursor de casos subsequentes de atrocidades em massa, genocídio e holocausto. Esta tarefa de articular e interpretar a ‘internacionalização’ do genocídio arménio é, de muitas formas, a via mais eficaz de demonstrar a relevância do genocídio arménio. A memória pessoal transitou agora para uma história colectiva.
Há, ainda, um outro factor que reforça quer o significado como a relevância do genocídio arménio. Apesar da longínqua distância no tempo, 1915 mantém a sua ligação a 2015. Ironicamente, é o Estado turco que ajuda a contribuir para a contínua vitalidade e significado do genocídio arménio e, ambos por defeito e desígnio, servem para que esta questão se tenha tornado numa preocupação estratégica.
Confrontar a realidade histórica
Isto deve-se à política apoiada pelo Estado turco de confrontar e refutar uma realidade histórica. Embora este esforço se baseie numa selectiva e errada interpretação da História, acaba por reafirmar, e até reforçar, a relevância do genocídio arménio.
Que não restem dúvidas: aproxima-se com celeridade momento para reconhecer internacionalmente o genocídio arménio. Primeiro, a declaração do Papa [Francisco], que representou uma ‘verdadeira “coragem pontifícia’ ao defender e sobrepor a moralidade e a verdade à política e à diplomacia. Com isso, ele acentuou uma autoridade moral.
Seguiu-se depois, por parte do Parlamento Europeu, uma mensagem politicamente forte de reafirmação do genocídio arménio. Isto gerou igualmente outras declarações políticas, em particular, na Alemanha [que, em Junho de 2016, numa resolução aprovada por todos os partidos no Parlamento em Berlim, reconheceu finalmente o genocídio.]
O resultado cumulativo é o de uma acrescida pressão e persuasão adicional. Não apenas na Turquia, para que enfrente sinceramente o seu passado, mas também nos Estados da comunidade internacional que, até agora, se têm recusado a apoiar a veracidade histórica do genocídio arménio. Isto só tem resultado no isolamento moral de alguns deles, designadamente os EUA e o Reino Unido, para dar dois exemplos.
Embora se espere que a Turquia venha a emitir mais um comunicado oficial em que “pede desculpa”, seguindo a linha de outro, em Abril de 2014, que foi lido pelo então primeiro-ministro [e actual Presidente, Recep Tayyip] Erdoğan, é mais realista manter baixas as expectativas em relação a declarações [de reconhecimento do genocídio] por parte de Ancara e de Washington.
A “ironia” de Erdoğan
Não deixa, porém, de ser irónico que tenha sido o Governo de Erdoğan a fazer mais para melhorar e “normalizar” as relações com a Arménia do que qualquer outro Executivo turco. Contudo, ao mesmo tempo, Erdoğan tem, agora, feito o máximo para prejudicar as relações com a Arménia do que anteriores dirigentes turcos.
A rápida ascensão do Presidente Erdoğan como o político mais poderoso e problemático é causa de inquietação. E, dada a sua posição, imprevisível e inflexível, face a muitas questões, teme-se que venha a acumular demasiado poder, pessoal e político, sem respeito pelo Estado de Direito ou pelas instituições democráticas na Turquia.
Simultaneamente, o futuro da política regional turca e da mais específica política face à normalização dos laços com a Arménia está refém do resultado da política interna na Turquia [onde há eleições gerais a 7 de Junho].
[Há a ideia de que a República da Arménia é mais pragmática face à Turquia do que a diáspora, porquê?] Num contexto mais dilatado, as comemorações do centenário do genocídio arménio constituem a oportunidade mais importante para a diáspora abraçar o moderno Estado arménio [que se tornou independente da dissoluta União Soviética em 1991].
Recuperar a identidade
A importância deriva de três factores. Primeiro: para a esmagadora maioria dos arménios na diáspora, a sua identidade é inerente e limitada apenas à definição do genocídio. Isto tem impedido a evolução da identidade e maior atenção em questões como a democracia e o desenvolvimento económico da Arménia. Segundo: o foco permanente no genocídio tende a solidificar uma vitimização obsessiva e negativa.
O centenário precisa, pelo contrário, de sublinhar a vitória da sobrevivência tanto, se não mais, do que a vitimização colectiva. Terceiro: o maior desafio será o dia após o aniversário, a 24 de Abril, em termos do imperativo de transformar as comemorações em comunicação, indo para além do papel de vítima, para que seja possível construir um futuro fora da prisão do passado.
Este é, sem dúvida, um desafio assustador para a diáspora, sobretudo pela necessidade de redefinir a sua identidade assim que a Turquia reconhecer o genocídio arménio.
Depois da decisão recente do Presidente arménio de “retirar” do Parlamento [em Ierevan] os protocolos arménio-turcos, a perspectiva de um processo de ‘normalização’ entre a Arménia e a Turquia atingiu o seu ponto mais baixo.
Mais grave: os últimos meses têm sido marcados por debates acessos entre líderes turcos e arménios, com declarações duras, retórica e atitudes políticas rudes.
No entanto, por duas principais razões, é importante notar que esta é uma situação temporária que, embora possa envenenar a atmosfera política, não sinaliza necessariamente a morte do processo de normalização. Acima de tudo, é importante a questão do timing, para ambas as partes.
O Presidente turco enfrenta e a linguagem áspera do lado turco servirá para atrair votos. No campo arménio, o facto de este ano se assinalar o centenário do genocídio encoraja, também, uma postura mais dura.
Há ainda um segundo factor, relacionado com um contexto político mais alargado, já que o Presidente arménio só muito recentemente debelou uma grave crise interna, e usou a questão dos protocolos para reforçar a sua posição face a uma nova ameaça por parte do segundo maior partido nacional.
Deste modo, mesmo que os esforços para recomeçar o processo de normalização entre a Turquia e a Arménia estejam suspensos, tem havido esforços para, pelo menos, “suster o momentum”, e promover um melhor ambiente que leve ambas as partes a reconciliar-se, retomando a “normalização da anormal” ausência de relações bilaterais.”
Yavuz Baydar (Turquia)
Um dos mais influentes jornalistas e comentadores políticos na Turquia, é membro fundador da Platform for Independent Journalism, P24. Foi colunista do “Today’s Zaman”, diário turco em língua inglesa. É “blogger” no “Huffington Post” e colaborador da estação pan-árabe Al Jazeera.
“[Em 2013, durante uma visita a Ierevan, o então ministro dos Negócios Estrangeiros de Ancara, Ahmet Davutoğlu, declarou: A ‘deportação’ dos arménios em 1915 foi ‘desumana’, e a Turquia nunca apoiou essa política’, do Império Otomano, que precedeu a moderna república fundada por Mustafa Kemal Atatürk.Mais recentemente, porém, já como chefe do Governo, Davutoğlu afirmou: “Apresentaremos ao mundo inteiro, não como o aniversário de uma alegada calúnia de genocídio mas como o aniversário da resistência gloriosa de uma nação, na (batalha) de Gallipoli.”
O que aconteceu para esta inversão de marcha e posição de ambiguidade, já que o partido pós-islamista AKP, quando chegou ao poder tentou quebrar o “tabu arménio”, defendendo uma ‘política de abertura’?]
E isto diz-nos uma história complexa sobre o actual estado mental em Ancara. O ex-Presidente Abdullah Gül e Ahmet Davutoğlu sempre souberam que a questão arménia é o elemento que bloqueia o progresso da Turquia.
Gül era o motor por detrás da reaproximação da Turquia à Arménia, dos protocolos de 2009 que visavam a normalização e a reconciliação. Davutoğlu também fazia parte desse processo.
Ambos acreditavam que seriam bem sucedidos e assim reforçariam o soft power da Turquia no Cáucaso, além de aproximarem a República da Turquia da União Europeia.
No entanto, Erdoğan, que é, no seu mais profundo ser, um nacionalista, demoliu o processo ao incluir, no último minuto, o conflito do Nagorno-Karabakh [enclave do turcófono Azerbaijão – aliado de Ancara – na Arménia], causando o seu descarrilamento.
Agora, eclipsada pelos interesses azerbaijaneses [nome da população; os azeris são apenas uma das etnias] e marginalizada pela Rússia que considerava perigoso este processo de reconciliação, a Turquia está presa à sua velha retórica.
Tendo falhado do ponto de vista diplomático e sido arrastada para a via do poder de um só homem, Ancara voltou ao passado, porque Erdoğan vê a sua sobrevivência política no apaziguamento do voto nacionalista, mantendo-se em negação.
Igualar o sofrimento
Em seu entender, ele precisa de criar uma equação entre o sofrimento na I Guerra Mundial e o dos arménios. Davutoğlu, prisioneiro da próxima campanha eleitoral, sente-se agrilhoado a essa retórica.
Entretanto, a sociedade civil continua a levantar esta questão com mais visibilidade, ainda que lentamente. Esta é a Turquia : um Governo que, de certa maneira, ajudou a libertar o génio da lâmpada, que ajudou a quebrar tabus, é agora ultrapassado pela sociedade civil, ficando para trás. Este ‘Estado’ enfrenta um perigo, porque o processo pode ficar sem controlo e entrar em colapso.
Neste momento, apesar de tudo, o processo segue a sua própria dinâmica. A mudança para uma autocracia na Turquia não vai ajudar a que progrida, uma vez que Erdoğan também se aproxima dos militares que jamais mudaram a sua posição relativa aos acontecimentos de 1915.
O papel crucial dos curdos
No entanto, livros centrados na investigação sobre o genocídio têm sido publicados com mais regularidade, e as pessoas lêem-nos. Outra dinâmica é o partido curdo HDP [Popular Democrático], que recusou aliar-se ao AKP e a dois partidos na oposição para contrariar as resoluções sobre o genocídio que têm sido apresentadas em vários parlamentos.
Os curdos admitem ter desempenhado um papel na aniquilação arménia, e esperam ter uma representação mais visível [na Grande Assembleia em Ancara,
Um outro fenómeno é o renascimento da identidade. Muitas pessoas na República da Turquia estão a procurar e a encontrar as suas raízes escondidas, e sentem-se encorajadas a exprimi-las. Muitas pessoas, por exemplo, descobriram que são arménios [cristãos] convertidos ao Islão.
Isto representa uma era em que se desperta de uma hipnose em massa, e poderá ajudar a sarar as feridas. Devemos sentir-nos gratificados mas o chão ainda está longe. O palco político turco precisa de uma mudança radical, longe da linha política de Erdoğan, para que a questão [arménia] seja tratada de forma diferente.
Coragem para avançar
A solução reside em fazer reviver a normalização dos laços Turquia-Arménia e o seus protocolos. As fronteiras devem ser abertas imediatamente. Deste modo, os povos reaproximam-se. No entanto, tendo em conta o expansionismo russo e o seu poder no Cáucaso, assim como os seus laços com o Irão, a Turquia parece ter perdido a grande oportunidade que tinha há cinco anos. É preciso coragem para avançar e muito apoio do Ocidente. De momento, as perspectivas são sombrias.
A actual definição, que remonta a 1948, é muito fraca. Abre caminho a julgamentos de acontecimentos em pequena escala como genocídio, Isto causa problemas mas também tem um efeito dissuasor. É claro que actos contra os Nama e os Herero foram os primeiros genocídios do último século.
Antes disso, tivemos os americanos contra os filipinos e o Czar da Rússia contra os Circassianos. É uma vergonha que a Turquia não reconheça o genocídio arménio, e que os massacres dos Herero não sejam reconhecidos com maior visibilidade.
Terminemos como começámos, com Ruy Duarte de Carvalho, e a sua
Proposta Para Uma Noção Geográfica:
Sou testemunho da noção geográfica
que identifica as quatro direções
do sol as muitas mais que o homem tem.
Sou mensageiro das identidades
de que se forja a fala do silêncio.
Habito um continente e a comunhão prevista
além dos horizontes por transpor.
Renovo-me em saber, olhando o sol
acesa a cor para além destas fronteiras.
E se me ocorre o mar e me detenho
a frente dos meus gados indefesos
eu saberei da costa o quanto me prolonga
além das águas e dos meus recursos.
Olhando o mar eu sei que no temor
vivo em meu sangue, ardente e tão pesado
que há-de acorrer ao sangue de meus filhos
se deposita a mágoa antiga já
em que fermento a raiva e o vigor
para conquistar o mar e devolver
a cor o seu sentido e a dignidade.
Circulo a plataforma das viagens
para inventar as direções do mar
além de estéreis nuvens.
Um chão propício para erguer o encontro
entre o destino e o corpo.
Se as minhas mãos se tingem de vermelho, ao norte
e eu todavia me reservo ao sul
porque da terra quero a superfície plana
e a natureza vítrea do seu rosto
e a dádiva frugal de quanto a terra da
sem que lhe fira o ventre
eu digo —
a terra toda, a terra, a funda terra…
e uma noção mais vasta me sugere
a extrema dimensão do continente
e a comunhão de muitas outras vozes
vertendo o mesmo som no vão da noite.
E a forma de dois pés e o pó que os cerca
as mesmas latitudes para um só pisar
em cor de pés e pó omnipresente.
Habito o cheiro e quantas coisas simples
me fazem merecer o pó pisado.
E se eu falar de exílios mergulhado em dambas
ou penetrar florestas de humidade alheia
ou me dessedentar em águas que me expulsem
por lhes negar respeito e vê-las fáceis
ainda assim recordarei montanhas
quando a manha me recordar cacimbos
e saberei que estas imagens novas
por serem espelho de outras me pertencem
como se vê-las fosse a minha origem.
Nem tanto a voz cativa de um lugar
nem a função contida pela herança
nem a ciência exacta de um relevo.
Habito um corpo móvel de paisagens
protegidas por clareiras de fartura.
Habito o movimento e a minha pátria
é todo o continente de que não sei o fim.
Irei tão longe quanta for a sede e a urgência da mudança.
Cruzar-me-ei com as nuvens de outros corpos
movidos por idêntica voragem.
A diástole da vida me governa.
Atingirei o extremo norte
se a tanto me levar
o corpo fustigado pela carência das águas.
Habito as fontes todas do deserto
e obedeço ao vento, ao sol, as luas da verdura.
E nada me detém se a sede anima
o sangue aceso deste corpo enxuto.
Devasso a região dos Grandes Lagos
e as baixas pantanosas de Okavango.
Bordejo os areais da suave brisa:
Chaibi, Namibe, Kalaari
a estepe do Masai, montes do Karoo
que é onde a planta luta por florir
e aguarda paciente a gota de água.
Mergulho na garganta de Olduvai
e calco em meu andar
os fósseis mais remotos
argamassada em pedras a grandeza
da inusitada fúria que transforma
a mão em arma e os olhos em zagaias.
Repouso nas ruínas de Ashanti
nas construções ciosas do Benim
nas alas circulares do Zimbabwe:
adormeço vertido no regaço
do odor antigo do poder vencido
e na serena placidez do tempo.
Monomotapa, Ghana, Luba
reinos, impérios, fundadores de impérios.
Cavaleiros de Kanem-Bornu
mercadores de Kano, Zaria e Nok
profetas do Congo
muquixis da Lunda
adoradores do ferro:
Ashanti, Ibos
sentinelas dos rios:
Núbios, Kikuios
sóbrios amantes do leite:
Masai, Hereros
cultivadores de anharas
caminheiros da estepe
sombras da savana.
Este artigo, agora actualizado, foi publicado originalmente no REDE ANGOLA, em 24 de Abril de 2015 | This article, now updated, was originally posted on the news website REDE ANGOLA, on April 24, 2015.
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