À morte ninguém escapa,
Nem o rei, nem o papa,
Mas escapo eu.
Compro uma panela,
Custa-me um vintém,
Meto-me dentro dela
E tapo-me muito bem,
Então a morte passa e diz:
- Truz, truz! Quem está ali?
- Aqui, aqui não está ninguém.
- Adeus meus senhores,
Passem muito bem.
Aurora tinha nove anos quando recitou este poema na escola. A professora aplaudiu-a. Aurora parecia ter futuro nos estudos. Contudo, só estudaria mais um ano. No fim da terceira classe começou a trabalhar na loja do pai.
Eram muitas irmãs e só um rapaz. Esse estudou mais.
As raparigas cuidavam da casa, dos animais e umas das outras. A mãe tinha morrido com um bebé na barriga e cá fora duas mais pequenas que Aurora, na altura com sete.
Um acidente. Talvez não tivesse visto a morte a chegar ao fundo, vinda de trás um monte de Trás-os-Montes, enquanto subia acima de uma égua. Na altura Aurora prometera, sem palavras e só no coração, que tudo haveria de fazer para não ser apanhada.
Setenta e tal anos depois, Aurora está longe de casa, muito longe de Trás-os-Montes. Por amor ao filho mais novo, mudou-se aos oitenta anos para o Brasil, para que o menino, a beirar a senioridade, mas solteiro e sem filhos, não se sentisse tão só. Família também a tem no Brasil, mas ir de Manaus a Porto Alegre é quase tão difícil como vir a Lisboa. Tinha acabado de soprar as velas dos oitenta e um e de lhe nascer mais um bisneto, quando a morte lhe bateu à porta.
São seis e meia.
Nesta parte do mundo, ainda por cima agora, que é quase Verão, acorda-se cedo. Antes de se levantar, mexe as pernas, depois senta-se na cama e espreguiça-se bem.
É hora de fazer o pequeno-almoço. Aqui chamam-lhe café da manhã, mas ela chama à primeira refeição mata-bicho. Transplantada muito nova de Trás-os-Montes para Angola, usava a expressão amiúde, agradava-lhe que se dissesse em África da mesma maneira que na sua aldeia.
Depois de comer, de matabichar, diz adeus ao filho que sai para o trabalho. Vou um pouco à janela, sempre se vê verde por detrás das grades – que em forma de flor não deixam de ser o que são: barras de ferro com pontos de ferrugem e tinta branca a descascar.
Medimos o açúcar do sangue, tomamos o comprimido para a tensão e o do cálcio e vamos lá. Para lado nenhum.
Através das cataratas ainda consigo fazer crochet e ler romances policiais. Televisão só à hora das notícias, e mesmo assim pouco. Nem em tempo de guerra se contam os mortos assim. Um pano na cozinha, um verso engraçado sobre o corona e a esfregona no chão – com extra desinfetante. Passaram 274 dias desde que fechou, pela última vez, a porta de entrada atrás de si. Não está presa, está recolhida, resguardada, confinada, protegida. No último ano não sofreu de mal nenhum que viesse lá de fora. Nem mal, nem bem.
E com os males de dentro, Aurora sabe conversar.
«No início do ano que vem faz oitenta e dois.
Se lá chegar, claro. Se Deus quiser. Quando lhe perguntam a idade, há muito tempo que esta adenda acompanha a resposta.
No Natal vem a Portugal. Porque sim senhor, máscaras, sabão, amoniacal, álcool, distância, cotovelos, luvas, mas o Natal é sagrado, tem que ser»
Quem conhece Aurora gaba-lhe a força, a lucidez e a inteligência. O ouvido, a diabetes, os ossos já tiveram melhores dias. A cabeça está sempre pronta para levantar questões, custa-lhe a ela – como a todos talvez – entender o porquê das coisas de hoje em dia, o porquê de se traçarem as linhas das máscaras e das distâncias de uma forma aparentemente arbitrária, e porque raio não se pode ir ver os mortos? – não lhe agradou que a campa do marido tivesse ficado por enfeitar no dia de todos os santos.
Ouve os relatos dos lares de idosos, dos que estão presos dentro de um quarto e nem assim se livram de apanhar o bicho. Quando não morrem do vírus, morrem da tristeza, do isolamento, do desespero e da certeza crescente que não vão voltar a ver um tempo normal. Quase que mais vale ir já antes que piore. Aurora não vai nessa conversa de velhos.
Embarca na melancolia enquanto escuta a voz da Amália no rádio e depois vai à sua vida. Para lado nenhum.
A Aurora, porém, a morte não é indiferente. Está lá fora. Antes apanhar os velhos que os novos, e de qualquer maneira quem vai não sofre, sofre é quem cá fica. Não a sentia nos aviões, nem nos atentados, mesmo quando viveu na capital da Europa e quando visitou a Terra Santa, já depois dos sessenta. Agora sente-a e não se quer deixar ir, mas também sabe que nesta altura não tem as mesmas armas de antes.
No início do ano que vem faz oitenta e dois. Se lá chegar, claro. Se Deus quiser. Quando lhe perguntam a idade, há muito tempo que esta adenda acompanha a resposta. No Natal vem a Portugal. Porque sim senhor, máscaras, sabão, amoniacal, álcool, distância, cotovelos, luvas, mas o Natal é sagrado, tem que ser.
«Às duas da manhã de dia 18 de dezembro, Aurora vai acordar. Terá dormido um pouco. Só suas serão três malas, cheias de coisas do Brasil para trazer para Portugal, quase tantas como levou de Portugal para o Brasil, só que em vez de queijo e bacalhau serão abacaxis e bombons Garoto»
Ocorre-lhe, antes de deitar, que isto de fintar a Morte não é às escondidas nem à apanhada que se faz. Parece mais uma dança, um exercício de mexer o corpo tentando imprimir um sentimento a cada gesto, mesmo quando somos quase feitos de pedra. Por vezes Aurora julgava ser feita, pelo menos, de uma fibra bem rija, via-se bem que se assim se julgava e via-se ainda melhor que era verdade. No início do ano, Aurora e a Morte ficaram a olhar uma para a outra, a uma distância higiénica, e durante muitos meses permaneceram assim, fitando-se enquanto uma ia ceifando vidas na rua a torto e a direito – talvez mais a torto porque os pobres iam em maior quantidade – e a outra estava caladinha dentro da panela que era um apê com grades nas janelas até ao último andar.
Às duas da manhã de dia 18 de dezembro, Aurora vai acordar. Terá dormido um pouco. Só suas serão três malas, cheias de coisas do Brasil para trazer para Portugal, quase tantas como levou de Portugal para o Brasil, só que em vez de queijo e bacalhau serão abacaxis e bombons Garoto. Depois de tudo pronto, a casa bem limpa e arrumada de véspera, as janelas fechadas, o gás desligado e o frigorífico vazio, vai abrir a porta e sair, fechando-a atrás de si com três voltas de chave e mais umas quantas fechaduras.
Um carro espera-a para a levar ao aeroporto. Ao primeiro passo, em direção à rua, pode vê-la e ouvi-la mais de perto, e nem o casaco quente que traz na mão para vestir em Lisboa lhe servirá para passar despercebida à Morte. No avião, os versos saem-lhe assim:
À morte ninguém escapa
Nem o rei, nem o papa
Ainda que Isabel se mantenha a reinar terras mais frias
E a Bento ninguém tenha devotado os nove dias
E por enquanto me tenha eu esquivado
Tive uma panela
De muito me valeu
A morte andou de volta
E à porta me bateu
Mantive-me cá dentro
Para não me levar
Mas dentro da panela
Por vezes falta o ar
Sou velha de olho aberto
Se me chamar baixinho
À morte digo eu
Que antes de morrer
Antes de me ir embora
Quis viver um bocadinho
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