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quarta-feira, 17 de junho de 2020

A LISBOA QUE NINGUÉM QUER VER ( IMAGENS QUE PODEM FERIR SUSCEPTIBILIDADES)



AVISO: Esta matéria traz descrições e imagens que podem incomodar   algumas pessoas.
Durante mais de dois meses andei pelo Intendente, um dos bairros históricos de Lisboa, há décadas estigmatizado pela prostituição e pela dependência química. Fui à procura dessa realidade paralela à renovação e ao sucesso turístico da cidade.
Conheci pessoas que sonharam com coisas diferentes antes de cairem nas ruas. Me levaram até os quartos, às casas ocupadas, aos pontos de droga. Quem vai ao Intendente beber um gin aromatizado com zimbro não quer ver essas pessoas. Ainda que pudéssemos ser uma delas

Soraia

Pouco tempo depois de vê-la pela primeira vez, num vão de escadas transformado em sala de consumo de drogas, a vi novamente passando longe pela rua. Alguém ao meu lado exclamou, baixinho:
- Foda-se. Olha a Soraia, como está magra. Era tão bonita quando chegou aqui.
- Quando ela chegou?
- Faz uns três meses. Nem isso.

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Nessa noite, no vão de escadas em que a conheci e a fotografei fumando crack, percebi que queria que ela fosse uma das personagens centrais do meu trabalho, mas era difícil me aproximar. Pude vê-la passando depois, com uma amiga, no Largo do Intendente. Me aproximei, a cumprimentei e tentei acompanhar o passo.
- Posso ir com vocês?
- Aonde?
- Para onde forem.
- Mas nós vamos para o quarto, amor.
- Tudo bem, me deixem ir com vocês.
- Não dá, sério. Desculpa.

E seguiram. Atravessaram a rua, juntaram-se a um homem que as esperava e os três pegaram um táxi que acelerou avenida abaixo.
Até que, no final de um dia frustrante, depois de várias horas nos bares da Rua dos Anjos bebendo para conseguir lançar uma conversa em umas garotas sentadas ao balcão, nas ruas à procura de alguma personagem para o meu projeto, sem ter conseguido fazer qualquer coisa relevante, quando já estava voltando para casa lá pelas duas da manhã, encontrei a Soraia, que veio na minha direção. Parecia cabisbaixa também. Tinha passado a noite no Martim Moniz, mas não conseguiu clientes. Proponho fotografá-la no quarto
Descemos juntos a Rua do Benformoso para a pensão mais próxima. A porta da rua é insuspeita, num alumínio verde meio antigo, igual a tantas outras, com uma placa indicando alojamento local aparafusada na parede ao lado. Soraia toca a campainha, a porta se abre e subimos um lance de escadas até um átrio escuro com cadeiras duplas de madeira e mesas de apoio, tudo mal iluminado pela luz que vem dos corredores que levam para a ala dos quartos. À direita, o guichê da recepção. Soraia pede que eu pague cinco euros pelo quarto. Do outro lado do guichê, já sabem a que vamos. A mão de uma mulher recebe o dinheiro e me entrega a chave.
- Vocês têm uma hora.
Soraia conduz o caminho enquanto eu fotografo, com a adrenalina de perceber que cada momento ali vivido é irrepetível e de a qualidade do registo vai depender da minha observação, decisão e reflexos. Estar tão alcoolizado dificulta o trabalho, mas se não estivesse tão alcoolizado não teria entrado.
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Soraia também precisava de alguma coisa para estar ali.
- Você se importa que eu fume?
E fumou, depois de se despir. Alguns clientes também fumam com ela quando vão para o quarto. Fumar ajuda Soraia a não sentir tanto, mas isso depende da qualidade da droga. Quando vem muito cortada, misturada com farinha ou raspas de paredes, o efeito acaba antes do desejado. Nesses dias, custa mais estar ali.
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- Nunca imaginei que isso aconteceria comigo. Durante anos trafiquei droga na Espanha e sempre resisti a consumir. Vi mulheres iguais a mim, vi a desgraça toda a minha volta, mas nunca pensei que iria cair nela.
Para chegar aqui houve um percurso: o nascimento em Portugal, a infância na Espanha, criada pela avó, a rebeldia da juventude, os namorados sedutores, a ligação a uma rede de tráfico de droga e armas, o regresso a Portugal para fugir da Guardia Civil, o nascimento de um filho que agora cresce com familiares na periferia de Lisboa, algumas viagens à Alemanha num negócio de casamentos forjados com imigrantes de Leste. Por fim, o Intendente, onde a conheci, sempre acelerada, sempre com urgência para ir a algum lado, se desesperando pela próxima dose.
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O bloco de notas onde Soraia desfez a dose que acabou de fumar guarda textos, poemas e letras de música que ela escreve para ocupar a cabeça. Escreve em espanhol, a língua que melhor domina, a língua em que pensa. Peço para que ela leia o texto que mais gosta. Viene y Va.
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Não passou ainda uma hora quando batem à porta. Ouço a recepcionista dizer que temos de sair, que já esgotamos o nosso tempo. Soraia fica alarmada, começa a arrumar às pressa a bolsa com o cachimbo e o canivete.
- Não abre, por favor, eles não podem ver que fumamos aqui dentro.
Respondo que ainda estamos dentro do período. Do lado de lá a irritação cresce. As pancadas são agora murros. Não olhei para o relógio quando entramos, mas certeza que não passou uma hora. Levanto a voz, grito e insisto que não temos de sair já. Soraia se veste, nervosa. Me pede para esperar mais um pouco. Quando destranco a porta para sair, está a recepcionista, uma segunda mulher e um homem, no corredor, cara de poucos amigos. Proxeneta, prostituta e cliente. Por essa ordem, trocamos olhares. Ódio, vazio e vergonha. “Nunca mais você entra aqui”, gritou a recepcionista enquanto Soraia passava.
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Uns dias mais tarde, Soraia me mostrou a casa abandonada onde dormia, numa das ruas mais íngremes do bairro. Para entrar era preciso passar entre as grades de um portão e depois arrastar uma tábua que cobria a porta de entrada. Há vestígios de obras de recuperação do prédio – uma betoneira, baldes, tábuas –, mas por alguma razão pareciam largadas. Agora, era abrigo de Soraia e de mais 10 pessoas.
Nessa noite, Soraia estava com sentimentos ambivalentes. Descobriu no chão da rua uma dose de crack perdida que fumou na minha frente, enquanto me contava que um dos ocupantes da casa, apaixonado por ela, tinha a pedido em namoro. Ela respondeu que não estava interessada e ele, ciumento, pegou numa navalha e cortou-lhe toda a roupa, a única que tinha numa mochila que guardava na casa.
Mas isso tudo foi há mais de um ano, em setembro de 2017. Voltei a passar por lá. As obras recomeçaram. Nunca mais encontrei Soraia, não sei onde ela dorme agora. Nem sei sequer se ainda está pela área.

Intendente

A fama de bairro boêmio chegou para o Intendente pela década de 1960. Primeiro surgiram os pequenos bares, depois a prostituição. Em 8 de agosto de 1977, o jornal A Capital dava notícia que tinham sido presas mais de mil prostitutas em Lisboa, de 16 a 34 anos, apenas no primeiro semestre do ano em questão.
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Com o passar dos anos, a repressão às mulheres prostituídas baixou na exata medida em que passaram a fazer parte do folclore local. A relação mais explosiva do bairro com a dependência química começou no início dos anos 2000 com as intervenções em dois dos principais entrepostos de droga de Lisboa, o Casal Ventoso e a Curraleira, que, não resolvendo o problema humano nesses locais, o transferiu para outros pontos da cidade.
O Intendente, como os bairros adjacentes, passou assim a ser um dos principais corações do mundo da droga lisboeta. A relação da toxicodependência com a prostituição, já anteriormente muito ligada ao alcoolismo, deu-se naturalmente.
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No final de 2012, a Câmara Municipal de Lisboa apostou na revitalização do bairro. Fizeram obras de remodelação da praça principal e reforçou-se o policiamento de proximidade, enquanto o gabinete do presidente da autarquia se transferia temporariamente para o centro do bairro. Com os anos aumentou a pressão, patrocinada politicamente, para procura de habitação para turismo e alojamento local 
A renda subiu e a população mais antiga foi empurrada para fora do bairro ao ritmo da transformação de antigos armazéns em hotéis e condomínios de luxo. Chegaram bares trendy, restaurantes hipster, toda uma população gentrificadora que descobriu o “novo” Intendente ignorando o “velho”. Interessava limpar os estigmas do local, acabar com a sensação de insegurança para atrair classes mais endinheiradas. As rusgas e as intimações policiais são frequentes, mas prostitutas, dependentes químicos e dealers continuam a habitar as ruas periféricas do bairro, perto na geografia, mas agora mais longe dos olhares dos turistas.
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Anjos e Demônios

Erineu estava sentado no degrau da porta de um bar fechado, na Rua dos Anjos, quando o conheci. Concentrado sobre um objeto artesanal em forma de cachimbo, feito a partir do gargalo de uma garrafa, usava uma mola desenrolada de uma caneta para extrair do interior da boquilha a fuligem agarrada do crack que fumara pouco antes. A seguir, cobriu a chaminé com uma folha de alumínio, abriu pequenos orifícios com um canivete, juntou os resíduos no centro, levou a boquilha aos lábios e, com um isqueiro, ateou fogo.
- Já não bate.
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Um casal de turistas passa em frente com um passo nervoso. Vão para o Largo do Intendente, mas o GPS não tem filtros sociais e indicou o caminho mais curto, mas menos regenerado. Levam o pescoço curvado para o chão, a curiosidade mórbida pelo que se passa ao lado satisfeita apenas pelo canto do olho, como uma frincha numa parede, o buraco da fechadura. É uma rua onde se encontram “agarrados” dando uma espécie de cobertura para quem esteja consumindo, prostitutas à espera de clientes, antigos moradores matando saudade. À porta dos bares juntam-se homens e mulheres cuja natureza não identifico. Flui uma certa sensualidade, uma espécie de flerte com códigos que ainda não domino. É óbvio que me olham como outsider, nuns dias me aceitam como fotógrafo, noutros suspeitam que eu seja policial infiltrado.
Ao cair da noite, volto a encontrar Erineu na rua. Ele está a caminho da Mouraria, o bairro vizinho, para comprar uma dose. Pergunta se quero ir também, mas avisa que lá não poderei usar a câmera. As ruas do bairro estreitam-se em becos, travessas e ruelas tortas que vão dar em lugares onde as crianças correm atrás de uma bola, as mulheres conversam e os velhos bebem cerveja e jogam cartas. Na esquina em que Erineu compra a dose de crack, há vários jovens sinalizando a entrada e saída de compradores. Estão dispostos ao longo das ruas que vão dar no ponto de venda, são a rede de controle que avisa a entrada de alguma operação policial.
Chegamos ao dealer. Do bolso de Erineu sai uma nota de 10 euros, da boca do rapaz, arrumada entre a bochecha e a gengiva, sai uma bola branca com meio centímetro de diâmetro, embrulhada em papel celofane. Saindo do bairro, passamos por uma mercearia. Erineu entra, entrega 20 centavos e recebe uma folha de alumínio, já cortada. A economia do bairro adapta-se à procura e às necessidades dos que ali vivem.
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O passo acelera agora, de volta ao Intendente, pela Rua do Benformoso. Pelo caminho, um conhecido se junta a Erineu, um sujeito romeno de feições fechadas, rosto afiado e corpo magro. Entramos pela porta de um prédio, subimos as escadas até deixarmos de ver a luz natural e nos sentamos. Erineu prepara a dose sobre a folha de alumínio, sempre com o romeno de olhos fixos.
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Conheci Soraia neste dia. Juntou-se ao grupo, sentou-se uns degraus acima, preparou o cachimbo, fumou, encostou a cabeça à parede e fechou os olhos. Quinze minutos depois, despediu-se e foi-se embora com o romeno.
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Fiquei com Erineu, que queimava na prata os últimos vestígios da bolinha comprada há menos de uma hora. Soraia ainda cruzará com um homem que, de repente, surge ao fundo das escadas. Chama por Erineu e mal me vê, lá no alto, de câmera fotográfica na mão, começa a subir as escadas de forma muito vigorosa.
- Quem é você?
- Sou fotógrafo, estou fazendo um trabalho sobre o…
- Vira pra parede. Polícia!

Ele mostra o distintivo com gestos rápidos, abrindo a carteira. Logo em seguida fala para a própria lapela, puxando-a com a mão, pedindo reforços.
- O que você tem nos bolsos?
- As chaves de casa…
- Tira tudo.

Tirei as chaves, algumas moedas, o celular.
- Este celular é seu?
- Claro.
- Desliga e liga.

Me devolveu as chaves, moedas e celular.
- Vai embora. Não quero voltar a te ver aqui.
- Mas eu posso fotografar, não estou fazendo nada de ilegal.
- Ouviu o que eu falei, caralho? Vaza! Não quero voltar a te ver aqui. Você não aguenta a pedalada. É para o seu bem. Vai fotografar outra coisa. Não quero voltar a te ver, ouviu?

Desci as escadas e fui para casa humilhado e ofendido, remoendo esse episódio. “Então, isso é um policial infiltrado. Nunca pensei… Um cara de calça caqui, alpargatas, camisa de linho branco e suspensórios. E deixei o Erineu em maus lençóis. Foda-se. Amanhã volto aqui para procurá-lo."
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Na rua, a agitação habitual. Os aromas do oriente convidam a entrar nos restaurantes, as mercearias cheias de frutas, legumes e enlatados, abertas até tarde, iluminadas por uma desmaiada luz fluorescente, os bares de porta aberta e muito álcool, com música africana tocando. Uma noite como as outras.
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No dia seguinte, voltei ao bairro. Encontrei Erineu.
- Erineu! Tá tudo bem?
- Ya. Tudo.
- Não teve crise ontem à noite?
- Ah?
- Aquele cara nas escadas. Quem é ele?
- Ah… Não. Ficou tudo bem.
- Mas, quem é ele?
- Está tudo bem.

Parecida com a Bo Derek

Procuramos no álcool uma euforia, uma máscara de sucesso. Bebemos para nos tornarmos essa persona otimista que amplia os fatos, engrandece os sonhos e esquece as tristezas. O que contamos a partir daí pode não corresponder inteiramente à verdade, mas é quase sempre relatado de forma generosa, com a melhor das intenções. Pode até não resistir a um fact checking, mas se quem conta está feliz por contar, cabe aos parceiros da noite ouvir e acreditar na medida da grandeza que a humanidade permite.
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A Anabela foi a mulher que teve tudo e viu tudo partir. Viveu na juventude os privilégios de pertencer a uma classe social abastada, deslumbrada com o poder e os luxos possíveis num país pobre que acordava lentamente de 48 anos de um inverno fascista. Ela me falou dos passeios de carro conversível pela marginal, das viagens de veleiro no Mediterrâneo, o corpo escultural parecido com o da Bo Derek, a cocaína da melhor qualidade que se cheirava em festas da socialite
E depois, a queda vertiginosa com pormenores que desconheço. Sei de um divórcio, a expulsão da família, a perda dos privilégios, as amarras a um vício caro que deixara de conseguir pagar. No fim da linha, aqui estamos nós, sentados numa das mesas do bar onde me avisaram para não pôr os pés, antro de marginais perigosos, bebendo whisky atrás de whisky e compartilhando máximas filosóficas vulgares como se fôssemos Hegel e Kant. A euforia do álcool faz da gente maiores do que somos.
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Uma coisa é certa, a Anabela movimenta-se nas ruas como quem percebe alguma coisa que está escapando à maioria das pessoas. Várias vezes a vi tagarelar animadamente, num tom quase sempre de superioridade, nalguma roda de habitués e, de repente, saltar dali para o outro lado para intervir numa confusão mais acima ou mais abaixo na rua.
Diz que praticou artes marciais quando era mais nova, e talvez isso lhe dê uma segurança mental diferente do resto das pessoas. Para comprovar a veracidade do que diz, mostra como estão firmes os músculos das coxas, apesar dos mais de 50 anos.
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Várias semanas depois de nos conhecermos, sentados numa esplanada bebendo cerveja e conversando. Era noite e eu passava pelo Martim Moniz, outro ponto de encontro de traficantes e prostitutas. O mesmo tipo, as mesmas alpargatas, calças caqui, camisa de linho branca e suspensórios, estava de pé, braços cruzados e pernas ligeiramente afastadas, encostado à entrada das escadas do metrô. À volta dele, outros caras. Todos de corpo franzino, todos subservientes e de gestos nervosos. Um deles se abaixa para apanhar uma bituca do chão. O homem chuta a bituca para longe e o sujeito cai para trás, num salto assustado. Ele olha em volta e me vê de longe.
- Ei. Você. Vem cá!
Me aproximei a contragosto.
- Eu não falei pra você não voltar a fotografar aqui?
- …
- Desaparece, meu! Você não aguenta esse lugar. Dá pra ver nos seus olhos. Você não pertence a esse mundo e vai acabar morrendo aqui. Sai enquanto é tempo. Não quero te ver de novo.

Me afastei irritado. “Quem é este cara?”
A Anabela sorriu.
- Eu ainda não tinha te contado porque não sabia quem você era. É um tipo que faz negócios na rua. Ele vai aparecendo aqui, passa uns dias, e depois desaparece quando arranja problemas. Esteve no Canadá e, por isso, chamam-lhe de “Americano”. Na noite em que ele fingiu ser um policial nas escadas, me contou tudo. Riu muito do susto que te deu. Ainda disse que ficaria com a sua câmera se você aparecesse de novo, mas duvido que estava falando sério
Apesar das várias qualidades, é vendendo o corpo que Anabela ganha o necessário para se sentir livre. Pelo menos, é assim que fala da prostituição. Não vai com qualquer um, diz, e até tem clientes fiéis que têm o seu número e ligam para passarem um fim de semana juntos. Uma vez, conta, ficou mais de 10 horas seguidas com um desses clientes, um amigo que tinha tomado Viagra. Sem aguentar mais, com dores no maxilar, Anabela pediu para parar. Há dias esteve com outro, casado, que durante o sexo ia filmando ao vivo e mostrando pra esposa.
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Anabela diz que chega a ganhar 400 euros nesses fins de semana marcados. Somos parceiros da noite e cabe a nós ouvir e acreditar nas palavras na medida da grandeza que a nossa humanidade permitir. Mas, dos meses que passei ali percebi que o valor praticado pelas prostitutas varia conforme a idade, a procura do dia ou o desespero em conseguir algum dinheiro antes da noite acabar.
Vi meninas recém-saídas da adolescência, acabando de chegar ao bairro e cobrando 25 euros. As que traziam no corpo e no rosto as marcas da idade e da saúde minada, pediam 20. Isso nos dias mais otimistas, porque podiam baixar para 15 ou mesmo 10, quando a ressaca do crack começava a bater. Numa tarde, enquanto conversava com Anabela, chegou uma amiga. Nervosa, com falta de ar da ofensa que acabara de ouvir, contou como um homem quis sair com ela por 7,5 euros.
- Sem preservativo!
Ela recusou, claro. Mas, ainda eram seis da tarde e não sabemos como essa noite acabou.
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Por um milhão

Há um princípio de tudo e é assim para todo mundo. Nenhuma mulher nasce puta. Nenhuma mulher se torna puta antes que alguém lhe pague para ser. Uma vez, uma pessoa que queria me convencer que entrar nessa era uma opção natural, perguntou:
- Se te oferecessem um milhão de euros para ir para a cama com alguém, uma só vez, você iria?
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Um milhão de euros resolve a vida de qualquer pessoa. Mas, essa redução ao absurdo pouco serve quando voltamos à vida real. Para chegar ao milhão de euros, uma mulher que recebe 20 euros de cada vez, precisa ir 50 mil vezes para a cama com alguém. Se ela conhecer cinco homens por dia, precisará de mais de 27 anos ininterruptos, sem qualquer dia de descanso, para chegar ao milhão. Viene y va. Vem e vai.
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E então eu pergunto, para a comparação ser mais justa:
- Se te oferecessem um milhão de euros para ir para a cama com alguém, mas para isso você teria de ir cinco vezes por dia, todos os dias, durante 27 anos, você iria?
A primeira mulher que fotografei num quarto de uma pensão no Intendente estava encostada à parede, numa esquina, bebendo moscatel. Era uma mulher negra, bonita, de formas voluptuosas, rosto maquiado, lábios pintados de roxo, cabelo alisado preso num rabo de cavalo, uns brincos em forma de asa. Vestia uma saia preta plissada, uma camiseta branca justa sobre a qual repousava um grande colar em corrente prateada com quatro medalhões ligados entre si.
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A poucos metros dela havia uma mercearia de paquistaneses onde entrei para pedir um moscatel. Perguntei se ela aceitava outro, como forma de iniciar uma conversa. Ela disse que hoje não veio para o Intendente para ir para os quartos. Só queria beber um copo e estar com amigos.
- Eu não quero mais nada além de fotografar e conversar contigo. Quero saber mais desse mundo. Meia hora.
Aceitou. 15 euros, mais cinco para o quarto. O valor que me cobraria como cliente.
Quando entramos no quarto da pensão, pedi que ela sentasse. Queria saber mais sobre ela, queria conversar um pouco antes de começar a sessão. Senti necessidade de dizer que era importante para mim que aquela experiência não lhe fosse desagradável. Ela não reagiu àquele momento de hipocrisia judaico-cristã. Contou que tinha tido dois empregos, mas que perdera um. O dinheiro começou a faltar e, nas vésperas de perder a casa onde morava sozinha com o filho pequeno, desesperada, sujeitou-se. Uma vez. E outra e outra. Para aliviar o nojo que sentia, bebia whisky barato, vendido em copo de plástico nas mercearias da zona. Um dia, alguém irá propor que ela fume crack para ajudar a esquecer. Se ela ceder à proposta, é provável que o pagamento da casa caia para segundo lugar na lista de despesas urgentes.
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Mas, esta mulher, que espero ter já conseguido encontrar um emprego que não a obrigue a beber e que permita pagar a casa onde vive com o filho, não é a que aparece nas fotografias [acima]. A moça que aqui surge tem 19 anos e, por questões familiares, saiu de casa. Sem meios de subsistência, foi parar no Intendente.
Quando entrei com ela na pensão, outra mulher saía.
- Ah, você também trabalha? Já tinha te visto, mas não tinha certeza. Você é tão nova...
- Sim, comecei há uma semana.


Tiago Figueiredo é jornalista e fotógrafo, e você pode acompanhar o seu trabalho no Instagram e no seu site.
Artigo publicado originalmente na VICE Portugal.
www.vice.com

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