
Durante mais de dois meses andei pelo Intendente, um dos bairros históricos de Lisboa, há décadas estigmatizado pela prostituição e pela dependência química. Fui à procura dessa realidade paralela à renovação e ao sucesso turístico da cidade.
Conheci pessoas que sonharam com coisas diferentes antes de cairem nas ruas. Me levaram até os quartos, às casas ocupadas, aos pontos de droga. Quem vai ao Intendente beber um gin aromatizado com zimbro não quer ver essas pessoas. Ainda que pudéssemos ser uma delas
Soraia
Pouco tempo depois de vê-la pela primeira vez, num vão de escadas transformado em sala de consumo de drogas, a vi novamente passando longe pela rua. Alguém ao meu lado exclamou, baixinho:- Foda-se. Olha a Soraia, como está magra. Era tão bonita quando chegou aqui.
- Quando ela chegou?
- Faz uns três meses. Nem isso.

- Posso ir com vocês?
- Aonde?
- Para onde forem.
- Mas nós vamos para o quarto, amor.
- Tudo bem, me deixem ir com vocês.
- Não dá, sério. Desculpa.
E seguiram. Atravessaram a rua, juntaram-se a um homem que as esperava e os três pegaram um táxi que acelerou avenida abaixo.
Até que, no final de um dia frustrante, depois de várias horas nos bares da Rua dos Anjos bebendo para conseguir lançar uma conversa em umas garotas sentadas ao balcão, nas ruas à procura de alguma personagem para o meu projeto, sem ter conseguido fazer qualquer coisa relevante, quando já estava voltando para casa lá pelas duas da manhã, encontrei a Soraia, que veio na minha direção. Parecia cabisbaixa também. Tinha passado a noite no Martim Moniz, mas não conseguiu clientes. Proponho fotografá-la no quarto
Descemos juntos a Rua do Benformoso para a pensão mais próxima. A porta da rua é insuspeita, num alumínio verde meio antigo, igual a tantas outras, com uma placa indicando alojamento local aparafusada na parede ao lado. Soraia toca a campainha, a porta se abre e subimos um lance de escadas até um átrio escuro com cadeiras duplas de madeira e mesas de apoio, tudo mal iluminado pela luz que vem dos corredores que levam para a ala dos quartos. À direita, o guichê da recepção. Soraia pede que eu pague cinco euros pelo quarto. Do outro lado do guichê, já sabem a que vamos. A mão de uma mulher recebe o dinheiro e me entrega a chave.
- Vocês têm uma hora.
Soraia conduz o caminho enquanto eu fotografo, com a adrenalina de perceber que cada momento ali vivido é irrepetível e de a qualidade do registo vai depender da minha observação, decisão e reflexos. Estar tão alcoolizado dificulta o trabalho, mas se não estivesse tão alcoolizado não teria entrado.

- Você se importa que eu fume?
E fumou, depois de se despir. Alguns clientes também fumam com ela quando vão para o quarto. Fumar ajuda Soraia a não sentir tanto, mas isso depende da qualidade da droga. Quando vem muito cortada, misturada com farinha ou raspas de paredes, o efeito acaba antes do desejado. Nesses dias, custa mais estar ali.

Para chegar aqui houve um percurso: o nascimento em Portugal, a infância na Espanha, criada pela avó, a rebeldia da juventude, os namorados sedutores, a ligação a uma rede de tráfico de droga e armas, o regresso a Portugal para fugir da Guardia Civil, o nascimento de um filho que agora cresce com familiares na periferia de Lisboa, algumas viagens à Alemanha num negócio de casamentos forjados com imigrantes de Leste. Por fim, o Intendente, onde a conheci, sempre acelerada, sempre com urgência para ir a algum lado, se desesperando pela próxima dose.


- Não abre, por favor, eles não podem ver que fumamos aqui dentro.
Respondo que ainda estamos dentro do período. Do lado de lá a irritação cresce. As pancadas são agora murros. Não olhei para o relógio quando entramos, mas certeza que não passou uma hora. Levanto a voz, grito e insisto que não temos de sair já. Soraia se veste, nervosa. Me pede para esperar mais um pouco. Quando destranco a porta para sair, está a recepcionista, uma segunda mulher e um homem, no corredor, cara de poucos amigos. Proxeneta, prostituta e cliente. Por essa ordem, trocamos olhares. Ódio, vazio e vergonha. “Nunca mais você entra aqui”, gritou a recepcionista enquanto Soraia passava.

Nessa noite, Soraia estava com sentimentos ambivalentes. Descobriu no chão da rua uma dose de crack perdida que fumou na minha frente, enquanto me contava que um dos ocupantes da casa, apaixonado por ela, tinha a pedido em namoro. Ela respondeu que não estava interessada e ele, ciumento, pegou numa navalha e cortou-lhe toda a roupa, a única que tinha numa mochila que guardava na casa.
Mas isso tudo foi há mais de um ano, em setembro de 2017. Voltei a passar por lá. As obras recomeçaram. Nunca mais encontrei Soraia, não sei onde ela dorme agora. Nem sei sequer se ainda está pela área.
Intendente
A fama de bairro boêmio chegou para o Intendente pela década de 1960. Primeiro surgiram os pequenos bares, depois a prostituição. Em 8 de agosto de 1977, o jornal A Capital dava notícia que tinham sido presas mais de mil prostitutas em Lisboa, de 16 a 34 anos, apenas no primeiro semestre do ano em questão.
O Intendente, como os bairros adjacentes, passou assim a ser um dos principais corações do mundo da droga lisboeta. A relação da toxicodependência com a prostituição, já anteriormente muito ligada ao alcoolismo, deu-se naturalmente.

A renda subiu e a população mais antiga foi empurrada para fora do bairro ao ritmo da transformação de antigos armazéns em hotéis e condomínios de luxo. Chegaram bares trendy, restaurantes hipster, toda uma população gentrificadora que descobriu o “novo” Intendente ignorando o “velho”. Interessava limpar os estigmas do local, acabar com a sensação de insegurança para atrair classes mais endinheiradas. As rusgas e as intimações policiais são frequentes, mas prostitutas, dependentes químicos e dealers continuam a habitar as ruas periféricas do bairro, perto na geografia, mas agora mais longe dos olhares dos turistas.

Anjos e Demônios
Erineu estava sentado no degrau da porta de um bar fechado, na Rua dos Anjos, quando o conheci. Concentrado sobre um objeto artesanal em forma de cachimbo, feito a partir do gargalo de uma garrafa, usava uma mola desenrolada de uma caneta para extrair do interior da boquilha a fuligem agarrada do crack que fumara pouco antes. A seguir, cobriu a chaminé com uma folha de alumínio, abriu pequenos orifícios com um canivete, juntou os resíduos no centro, levou a boquilha aos lábios e, com um isqueiro, ateou fogo.- Já não bate.

Ao cair da noite, volto a encontrar Erineu na rua. Ele está a caminho da Mouraria, o bairro vizinho, para comprar uma dose. Pergunta se quero ir também, mas avisa que lá não poderei usar a câmera. As ruas do bairro estreitam-se em becos, travessas e ruelas tortas que vão dar em lugares onde as crianças correm atrás de uma bola, as mulheres conversam e os velhos bebem cerveja e jogam cartas. Na esquina em que Erineu compra a dose de crack, há vários jovens sinalizando a entrada e saída de compradores. Estão dispostos ao longo das ruas que vão dar no ponto de venda, são a rede de controle que avisa a entrada de alguma operação policial.
Chegamos ao dealer. Do bolso de Erineu sai uma nota de 10 euros, da boca do rapaz, arrumada entre a bochecha e a gengiva, sai uma bola branca com meio centímetro de diâmetro, embrulhada em papel celofane. Saindo do bairro, passamos por uma mercearia. Erineu entra, entrega 20 centavos e recebe uma folha de alumínio, já cortada. A economia do bairro adapta-se à procura e às necessidades dos que ali vivem.



- Quem é você?
- Sou fotógrafo, estou fazendo um trabalho sobre o…
- Vira pra parede. Polícia!
Ele mostra o distintivo com gestos rápidos, abrindo a carteira. Logo em seguida fala para a própria lapela, puxando-a com a mão, pedindo reforços.
- O que você tem nos bolsos?
- As chaves de casa…
- Tira tudo.
Tirei as chaves, algumas moedas, o celular.
- Este celular é seu?
- Claro.
- Desliga e liga.
Me devolveu as chaves, moedas e celular.
- Vai embora. Não quero voltar a te ver aqui.
- Mas eu posso fotografar, não estou fazendo nada de ilegal.
- Ouviu o que eu falei, caralho? Vaza! Não quero voltar a te ver aqui. Você não aguenta a pedalada. É para o seu bem. Vai fotografar outra coisa. Não quero voltar a te ver, ouviu?
Desci as escadas e fui para casa humilhado e ofendido, remoendo esse episódio. “Então, isso é um policial infiltrado. Nunca pensei… Um cara de calça caqui, alpargatas, camisa de linho branco e suspensórios. E deixei o Erineu em maus lençóis. Foda-se. Amanhã volto aqui para procurá-lo."


- Erineu! Tá tudo bem?
- Ya. Tudo.
- Não teve crise ontem à noite?
- Ah?
- Aquele cara nas escadas. Quem é ele?
- Ah… Não. Ficou tudo bem.
- Mas, quem é ele?
- Está tudo bem.
Parecida com a Bo Derek
Procuramos no álcool uma euforia, uma máscara de sucesso. Bebemos para nos tornarmos essa persona otimista que amplia os fatos, engrandece os sonhos e esquece as tristezas. O que contamos a partir daí pode não corresponder inteiramente à verdade, mas é quase sempre relatado de forma generosa, com a melhor das intenções. Pode até não resistir a um fact checking, mas se quem conta está feliz por contar, cabe aos parceiros da noite ouvir e acreditar na medida da grandeza que a humanidade permite.
E depois, a queda vertiginosa com pormenores que desconheço. Sei de um divórcio, a expulsão da família, a perda dos privilégios, as amarras a um vício caro que deixara de conseguir pagar. No fim da linha, aqui estamos nós, sentados numa das mesas do bar onde me avisaram para não pôr os pés, antro de marginais perigosos, bebendo whisky atrás de whisky e compartilhando máximas filosóficas vulgares como se fôssemos Hegel e Kant. A euforia do álcool faz da gente maiores do que somos.

Diz que praticou artes marciais quando era mais nova, e talvez isso lhe dê uma segurança mental diferente do resto das pessoas. Para comprovar a veracidade do que diz, mostra como estão firmes os músculos das coxas, apesar dos mais de 50 anos.

- Ei. Você. Vem cá!
Me aproximei a contragosto.
- Eu não falei pra você não voltar a fotografar aqui?
- …
- Desaparece, meu! Você não aguenta esse lugar. Dá pra ver nos seus olhos. Você não pertence a esse mundo e vai acabar morrendo aqui. Sai enquanto é tempo. Não quero te ver de novo.
Me afastei irritado. “Quem é este cara?”
A Anabela sorriu.
- Eu ainda não tinha te contado porque não sabia quem você era. É um tipo que faz negócios na rua. Ele vai aparecendo aqui, passa uns dias, e depois desaparece quando arranja problemas. Esteve no Canadá e, por isso, chamam-lhe de “Americano”. Na noite em que ele fingiu ser um policial nas escadas, me contou tudo. Riu muito do susto que te deu. Ainda disse que ficaria com a sua câmera se você aparecesse de novo, mas duvido que estava falando sério
Apesar das várias qualidades, é vendendo o corpo que Anabela ganha o necessário para se sentir livre. Pelo menos, é assim que fala da prostituição. Não vai com qualquer um, diz, e até tem clientes fiéis que têm o seu número e ligam para passarem um fim de semana juntos. Uma vez, conta, ficou mais de 10 horas seguidas com um desses clientes, um amigo que tinha tomado Viagra. Sem aguentar mais, com dores no maxilar, Anabela pediu para parar. Há dias esteve com outro, casado, que durante o sexo ia filmando ao vivo e mostrando pra esposa.

Vi meninas recém-saídas da adolescência, acabando de chegar ao bairro e cobrando 25 euros. As que traziam no corpo e no rosto as marcas da idade e da saúde minada, pediam 20. Isso nos dias mais otimistas, porque podiam baixar para 15 ou mesmo 10, quando a ressaca do crack começava a bater. Numa tarde, enquanto conversava com Anabela, chegou uma amiga. Nervosa, com falta de ar da ofensa que acabara de ouvir, contou como um homem quis sair com ela por 7,5 euros.
- Sem preservativo!
Ela recusou, claro. Mas, ainda eram seis da tarde e não sabemos como essa noite acabou.

Por um milhão
Há um princípio de tudo e é assim para todo mundo. Nenhuma mulher nasce puta. Nenhuma mulher se torna puta antes que alguém lhe pague para ser. Uma vez, uma pessoa que queria me convencer que entrar nessa era uma opção natural, perguntou:- Se te oferecessem um milhão de euros para ir para a cama com alguém, uma só vez, você iria?


- Se te oferecessem um milhão de euros para ir para a cama com alguém, mas para isso você teria de ir cinco vezes por dia, todos os dias, durante 27 anos, você iria?
A primeira mulher que fotografei num quarto de uma pensão no Intendente estava encostada à parede, numa esquina, bebendo moscatel. Era uma mulher negra, bonita, de formas voluptuosas, rosto maquiado, lábios pintados de roxo, cabelo alisado preso num rabo de cavalo, uns brincos em forma de asa. Vestia uma saia preta plissada, uma camiseta branca justa sobre a qual repousava um grande colar em corrente prateada com quatro medalhões ligados entre si.

- Eu não quero mais nada além de fotografar e conversar contigo. Quero saber mais desse mundo. Meia hora.
Aceitou. 15 euros, mais cinco para o quarto. O valor que me cobraria como cliente.
Quando entramos no quarto da pensão, pedi que ela sentasse. Queria saber mais sobre ela, queria conversar um pouco antes de começar a sessão. Senti necessidade de dizer que era importante para mim que aquela experiência não lhe fosse desagradável. Ela não reagiu àquele momento de hipocrisia judaico-cristã. Contou que tinha tido dois empregos, mas que perdera um. O dinheiro começou a faltar e, nas vésperas de perder a casa onde morava sozinha com o filho pequeno, desesperada, sujeitou-se. Uma vez. E outra e outra. Para aliviar o nojo que sentia, bebia whisky barato, vendido em copo de plástico nas mercearias da zona. Um dia, alguém irá propor que ela fume crack para ajudar a esquecer. Se ela ceder à proposta, é provável que o pagamento da casa caia para segundo lugar na lista de despesas urgentes.

Quando entrei com ela na pensão, outra mulher saía.
- Ah, você também trabalha? Já tinha te visto, mas não tinha certeza. Você é tão nova...
- Sim, comecei há uma semana.
Tiago Figueiredo é jornalista e fotógrafo, e você pode acompanhar o seu trabalho no Instagram e no seu site.
Artigo publicado originalmente na VICE Portugal.
www.vice.com
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