Maria Emília asseava a campa do defunto marido, falecido em 84, enquanto jogava uma sueca muito disputada de murros na mesa. Esfregava a pedra de mármore negro,própria para defuntos respeitáveis, uns mais que outros e o seu era um falecido de grande rigores e exéquias solenes.
A última rodada tinha sido dada e uma dor aguda no peito chegou-lhe de repente. Deu um trago no copo de bagaço ainda acima da risca azul e levou ambas as mãos à garganta.
Era uma homenagem ao seu amantíssimo marido. As letras douradas com a frase lapidar: “Eterna saudade da sua esposa e filhos”, acompanhada de fotografia ornada de arabescos, também eles dourados, a condizer com a cor das insígnias da farda e chapéu, com a obesidade latente por baixo dos botões e do bigode que acompanhavam as fartas bochechas.
De um momento para o outro, o baralho pousado à espera de croupier vai pelos ares, assim como os copos, o cinzeiro e a vida do Alfredo, que caiu redondo para trás, roxo e espumante.
Emília esfregava com fervor e lixívia, a pedra. Não fossem os micróbios perturbar a asséptica paz do falecido. Não fosse o interior da morada eterna trescalar o seu terrível odor para os vivos. Não fosse o medo de não ser verdade, de ele infelizmente não estar morto e enterrado.
Bem lhe tentaram acudir os amigos, dando murros no peito imóvel, tentando erguê-lo, desapertando-lhe calças e botas, na esperança que o roxo que lhe vinha ao rosto fosse apenas resultado dos apertos. E o homem, nada. Mantinha-se na mesma quietude de defunto espantado pela sua própria partida: olhos abertos e vítreos, boca escancarada, membros enrijecidos.
Depois da lavagem minuciosa da fachada, tratava-se de se alindar aquele espaço. À frente da lápide era aposta uma coroa de flores bem fresquinhas. Gladíolos, orquídeas, rosas, as suas flores preferidas. Não do morto, mas da Emília, porque já que tinha de agradar ao estafermo, o fazia com aquilo de que gosta. Tirava do avental a caixa de fósforos e acendia a vela semanal. Desta vez mais ornada do que as anteriores, em comemoração de mais um ano passado em sossego.
Bateram-lhe à porta eram dez da noite e ela já esperava novidade. Estava bêbado desde a hora do almoço, não lhe admirava que o trouxessem em braços.
Era o taberneiro e pela cara já via que a coisa era grave. O que se passa, perguntou e o que viu pela expressão era doença ou morte pela certa.
As palavras chegaram com pungência e o aparato de quem vem anunciar uma desgraça: ele está morto, o seu muito amado marido.
Chegava a altura das rezas, estava o cemitério apinhado de gente, todas com o mesmo ar de corvo crocitante, asas negras estendidas, bicos apinhados de palavras abafadas, como se falassem com fantasmas.
Emília ajoelhava-se e agradecia. Erguia mãos aos céus com vénias profundas de o seu sofrimento só ter durado vinte anos. Levava pancada todos os dias, levava com o vinho das horas da náusea, levava com o sexo meio morto, bicho fétido no seu corpo, levava com os filhos, levava com a casa. Só podia agradecer a benignidade do Deus ou do acaso, quem sabe.
Todas as semanas ali vinha comemorar a sua libertação. Certificava-se de que se mantinha no mesmo sítio, sete palmos abaixo do seu chão, só pó de estrada, só um grande nada, enfiado por baixo de letras douradas.
Marta
Photo Joao Jales
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