O CANIL DOS CÃES ZAROLHOS
para o António Cabrita
desgraçadamente ladram mas não mordem
buscam nas urnas os donos
e estes passando a mão pelo pêloroubam-lhes a ração da boca
logo à boca das urnas
sempre fiéis e de beiços arreganhados
basta um açoite no traseiro para ficarem mais obedientes e servis
os cães afiam os dentes
temendo as garras e os bicos dos abutres numa ilusão - rasante às ciladas
da vida - gretada de palavras febris
uns ousam ladrar mais acirrados
correndo o risco de serem encarcerados enquanto outros saltam a cerca
antes da manhã derramelar as hienas
e há os que se atiram contra o arame
farpadoesfarrapando-se em massa
num mimetismo desesperante
subalimentados ladram docinho
roçando as pernas dos donos para ganhar um osso
na praia dos trompetes em chamas
à beira-mar da noite espezinhada
pelo terror das hienas
enquanto anónimos suicidam-se
no sussurro da infâmia
defronte aos que mastigam bolores
para sobreviverem
a caridade vai derramando asfixiante
misturando-se a um crude solidário legal
e é legal ladrarem um poucochinho
manifestando a ira de açaime sindical
cães velhos corroídos de crostas infecciosas
e respiração barbitúrica rosnam aos espelhos do requiem
sabendo serem um enfarte de trabalhos
aos tratadores do canil
os veterinários vão ministrando remédios
contra-indicados corroborando na deterioração lenta das carnes
embebidas em minutos sem sangue
cozinhando a ração para ser distribuída
aos da lista de espera que teimosamente restam
entre restos de lixo e lixos da fé
colocam açaimes controlando a informação
e uma coleira de mecânicas palavras escolhidas repetidas até à exaustão
a imprensa tornou-se parasita e
os jornalistas uns piolhos de salão alimentando-se de noticias tosquiadas
ocultam
a incómoda realidade para as hienas
os comentadores do regime viraram coveiros
e dentro das valas vão-se babando
as carraças que gravitam ao seu redorvendendo-se para se sentarem à mesa
dum ficcionado banquete do real
com pedigree romano/nazi
tem o canil uma nova dona que vem descaracterizando os sinais únicos
do âmago duma pátria
aos peixes saquearam as espinhas
aos frutos os caroçose um temporal não se levantou
caminhantes dos atalhos moribundos
lançam ao passar pelos dias de esgoto sementes bolorentas sabendo de antemão
ser o seu gesto inútil
ser e nada brotar
rosnam trovões sob a morte das searas
lembranças do purgatório ateiam fogo
às papoilas ao redor jovens cachorros
arregaçam os caninos aos escaravelhos
que esperneiam nos subúrbios do planeta
em agonia
entrançando de nuances uma existência aziaga
nocturnos eram os rostos
diurnos os sonhos improváveis
improvável era encontrar os teus dizeres
guardados numa gaveta de nuvensprenhas de anjinhos com açaimes
percorrendo lentamente o vazio
onde ao centro um fedelho agrafa
penas de toutinegra nas asas do vento
a raspar a saudade
apunhalando os rostos
no enterro do pensar porque
pensar é um veneno
e os retratos ardem nos lugares alertando
ser o amor um tumor de pó e cinza
perseguem estrada fora os da paz
uma antiguidade
mão de fogo outra de água espelhando o vulcão
cuspindo cadáveres enforcados depositando a lava para os olhos
dos tempos que hão-de vir
cegando de pavor
pela estrada paralela caminham os da guerra
seguindo por agora no contrário dos outros reacendendo um sangue no peito
ao fundo a encruzilhada
assim chegámos assim chegaremos
à roda a um fim de mínimos de tudo onde o todo é um nada
aos cães bastaria
alimentarem-se bem na infância
daí para a frente o cagado seria o alimento
continuado num circulo rotineiro até a morte aparecer para se alimentar da luz
e cuspir a carcaça
o mundo
mal cheiroso confluindo merdas de vendáveis ilusões
como não é meu designo governar
fazer curriculum perpetuar a espécie nem mesmo proferir oratórias
com estandartes bordados de lambidelas
a um qualquer regime
uso por hora as letras
para dinamitar
o covil das hienas eleitas
com um cante ao desafio
é escusado irem ver a barca bela
pois já não se faz ao mar a treta nunca foi nela
e os escravos é que iam a remar
santa Merkel é o piloto
o FMI o general que nojento trapo levam
o fado de Portugal
as palavras sempre pertenceram à morte
um dia um cachorro das últimas ninhadas
ladrará bem alto pela libertação do canil ferrando os dentes nas contorções das hienas
até o veneno fritar-lhes o cérebro no parapeito
da janela defronte à estrada muralhada
de cadáveres em vinagre e nadas
nesse tempo de nova rotina doméstica
eu já não andarei por estas bandas
nesse tempo os homens voltarão
por algum tempo de novo a ler nos remoinhos do saber mais além
enquanto lá longe vou minguando
em busca dos meus olhos laminados
por gente vil que conseguiu tornar-me
na dor que lhes convém
cego seguirei para voltar ao sofrimento da terra
onde todos os trajectos de todos
os lugares vão sempre dar à morte
por hora
por hora volto ao aconchego dos braços
o pouco que me resta
Jorge Aguiar Oliveira
Inédito. Cacilhas, Dezembro de 2012
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