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Isabel do Carmo
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) precisa de mais financiamento, mas também precisa urgentemente de mais planeamento. A falta de planeamento, a resolução dos casos em método avulso, leva a sub-utilização dos equipamentos existentes e acaba por, mais uma vez, ser fonte de recurso a serviços privados. Um caso paradigmático é o do Hospital Pulido Valente (HPV) e da evolução que tem tido.
O HPV é uma instituição de prestígio desde que evoluiu como centro de tratamento de doenças pulmonares, na altura em que a tuberculose era um espectro que ameaçava a população, até à actualidade, em que é o maior centro nacional de tratamento de doentes com cancro do pulmão e doentes com insuficiência respiratória. Esta evolução fez-se, como em muitos hospitais de referência internacionais, ao melhor estilo do que deve ser a actualização na Medicina. Como escola de formação, em que o testemunho vai passando de geração em geração, à medida também em que vão evoluindo os meios de diagnóstico e de terapêutica. Quando se constituiu o Centro Hospitalar Lisboa Norte (CHLN), englobando o Hospital de Santa Maria (HSM) e o HPV e os dois articulando-se com a mesma área de centros de saúde, foi no sentido da racionalização de meios e dos serviços de urgência.
Era então e é impossível pensar que a prestação de cuidados de internamento e de consultas poderiam sair do HPV e serem acumuladas no HSM. Viveu-se um período de grande articulação, com uma reunião mensal rotativa dos dois hospitais do CHLN com todas as direcções dos centros de saúde da área. Não é necessário demonstrar o que esta articulação directa e presencial significou de benefícios para a prestação de cuidados. Como isto não eram reuniões de chá das cinco, houve muitas vezes discussões e opiniões diversas como é saudável que haja. Mas passados alguns anos e, sobretudo, depois de 2013, tem-se vindo a assistir àquilo que se pode designar pelo desmantelamento do HPV.
Um bom hospital, centrado é certo no aparelho respiratório, mas com serviços de Medicina Interna, de Cardiologia, Gastroenterelogia e de outras especialidades, tem sido desmontado como um puzzle, em que os vários edifícios mudam de funções, sem que as anteriores fiquem asseguradas algures. Mais do que isso, edifícios onde se tinham investido orçamentos importantes para os fins a que se destinavam, mudando de funções, ficam desperdiçados esses custos anteriores.
Assim, examinemos essas mudanças em detalhe. Os três blocos sul do HPV foram cedidos à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) em Janeiro deste ano. A finalidade não pode ser mais louvável: todos sabemos a necessidade que há em Portugal e em Lisboa particularmente de camas de convalescença e de cuidados continuados. É esse o destino do espaço para camas de Cuidados Continuados Integrados que vão ser entregues à SCML. Tudo pareceria muito correcto não fosse aquilo que aconteceu nesse mesmo espaço para haver esta cedência.
Existiam aí 76 camas para doentes agudos, ou seja, aqueles que transitam do Serviço de Urgência (SU) e ficam internados. Essencialmente, os doentes das enfermarias dos hospitais. Como todos sabemos, os corredores dos hospitais estão cheios de macas de doentes provenientes do SU, permanecendo aí vários dias, porque não há camas disponíveis nas enfermarias, que estão com uma lotação superior ao desejável. Das 76 camas (30 transitaram para outra zona do hospital) ficámos, portanto, com menos 46 camas no CHLN para estes doentes. Manteve-se num dos blocos um Serviço de Medicina com 18 camas, separadas das outras 30 camas. Quanto à Cardiologia, passou de 23 camas para 11. Perderam-se quatro de Cuidados Intensivos.
Convém aqui assinalar que de 2007 a 2017 se perderam 1016 camas de agudos na região de Lisboa e Vale do Tejo e que a nível nacional foram perdidas 2523. Quanto ao HPV, no relatório e contas de 2007 tinha 303 camas de agudos e em Outubro de 2018 tem 137. No total perdeu 166. Será interessante contabilizar quantas se abriram no mesmo período a nível privado. De tal forma o problema é urgente que a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (ARS-LVT), em Março de 2018, veio estabelecer que até ao final do ano tinham que abrir nesta região mais 150 camas. Também no HPV, nessa mesma ala cedida à SCML, foi encerrado o Serviço de Gastroenterologia, fundado pelo Prof. Mário Quina, o que levou à perda anual de milhares de exames de endoscopias altas e colonoscopias, que passaram a ser pagos aos privados.
Na frente do hospital que dá para a Alameda das Linhas de Torres foi colocado o Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), sem dúvida uma grande instituição com um enorme sucesso no combate à toxicodependência. Mas... Foi de lá deslocalizado o Hospital de Dia de Pneumologia Oncológica, o maior do país, um dos espaços mais importantes do hospital, que foi empurrado para um bloco de Serviços de Medicina, onde os doentes em ambulatório e ainda em bom estado se cruzam com os doentes oncológicos internados.
E a parte da Medicina deslocalizada foi empurrada com as 30 camas para ocupar o espaço onde funcionava a Cirurgia Vascular agora encerrada, um serviço de grande qualidade, onde é de referir o papel do Dr. Pereira Albino, que se retirou da função pública, médico que também visitava no domicílio os doentes com problemas arteriais dos membros inferiores. Quanto à ala norte, o serviço de radiologia que funcionava até às 20 horas, agora funciona só até às 15 horas. E é fácil de perceber como um hospital com esta vocação do aparelho respiratório e com um Serviço de Cirurgia Toráxica que faz 20% da cirurgia do cancro do pulmão em Portugal necessita de um serviço de radiologia.
Apesar de nesse bloco ter sido instalada a Unidade de Saúde Familiar das Conchas, que necessitava de instalações adequadas, nada disso colidia com o funcionamento da radiologia. Como se calcula, o recurso a radiologia durante a tarde tem que ser resolvido com transporte do doente ao HSM ou a serviços privados. Esta resolução de fecho do serviço de radiologia à tarde antecipou-se à instalação de um Centro Integrado de Diagnóstico e Terapêutica, onde de facto estariam todas as técnicas de diagnóstico pela imagem. Mas está anunciado há mais de dois anos e nunca saiu do papel. Na área de edifício que lhe está destinada funciona a rouparia... Entretanto, com a redução do horário da radiologia, gastam-se dois milhões de euros por mês na compra de serviços a privados.
Outra das alterações com que se tem desmantelado o hospital enquanto tal foi a mudança do sector de Cuidados Paliativos, onde foi gasto um milhão de euros e que está a ser requalificado para outra Unidade de Saúde Familiar.
Entretanto, no edifício Rainha D. Amélia, dedicado só a Pneumologia, o piso 2 que tinha oito camas e quatro quartos de isolamento com pressão negativa, portanto com equipamento especial e usado na tuberculose multirresistente (lembram-se do tratamento n'A Montanha Mágica de Thomas Mann, antes de haver medicação?), foi encerrado por falta de pessoal, o que aconteceu também com o piso 3 que tinha 24 camas.
A culminar a falta de recursos humanos, o que foi a maior escola de Pneumologia do sul do país perdeu a sua capacidade formativa para futuros especialistas desde Junho deste ano. É com verdadeiro desgosto que se estão a reformar grandes especialistas.
Podemos talvez perder-nos nesta série de números detalhada. Mas há que ser concreto e objectivo, não se pode falar sem uma base demonstrativa. Esta é a história “natural” de um hospital de grande nível, que está a ser desmantelado em nome de um denominado Parque de Saúde, porque as condições em que foi doado nos seus primórdios não permitem a sua alienação, mas que é um exemplo flagrante de desperdício de equipamentos e de dinheiro, somando-se a este escoamento financeiro o fluxo em sinal contrário que dá entrada em serviços privados.
Com a família do patrono, Professor Pulido Valente, ainda com netos vivos e a Fundação com o mesmo nome em actividade, espera-se que olhem para este caso e observem que o pendor essencialmente clínico está a declinar, lesando as necessidades da região de Lisboa e Sul do Tejo.
Há também esperança que a nova ministra da Saúde, que conhece bem o “retrato” do SNS, tendo sido presidente da Administração Central do Sistema de Saúde e que é uma pessoa com vocação e competência para o planeamento, faça não só neste caso, mas em todo o equipamento do SNS no país, uma utilização com o máximo de rentabilidade.
(Agradece-se a colaboração do Dr. Filipe Froes e do Eng.º Durão de Carvalho para a elaboração deste artigo de opinião)
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