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(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 04/11/2018)
Era de uma vez acabar com a treta da lei e da ética e decidir em função do que vende. Chega de sonsice e “garantias processuais”. O Estado de direito serve para quê, afinal?
Não há nada que propicie tanto o crime como a impunidade. Creio que nisso todos estaremos de acordo, até os criminosos – sobretudo esses. Daí que deva ser óbvio para toda a gente que quando se assiste, publica e repetidamente, a algo que a lei diz ser crime e nada sucede, as autoridades – quer as judiciárias quer as outras – estão a dar um sinal inequívoco de que a lei não é para levar a sério.
Temos pois de concluir que quer as autoridades judiciárias, quer as da regulação jornalística, quer o governo, quer o PR acham que a reserva e segredo que a lei impõe nos processos judiciais durante a fase de investigação e a garantia de não divulgação de partes dos processos mesmo após a acusação – por motivos que se prendem com garantias constitucionais tão pouco populares como a presunção de inocência, a reserva da vida privada, o direito ao bom nome e a proibição de tratamentos desumanos ou degradantes -, e até a condenação, não interessam para nada. Só assim se compreende que a PGR nunca tenha até hoje tornado claro que considera inadmissível a divulgação de escutas e de vídeos e áudios de interrogatórios, que nunca tenha tomado qualquer medida para a impedir em tempo útil – ou seja, quando esta está a decorrer ou é anunciada – e que leve, como foi noticiado nesta semana, quase três anos para investigar uma queixa relativa a esse ilícito.
Que as autoridades judiciárias se marimbam para os direitos de personalidade já sabíamos; mas pelos vistos marimbam-se também para o sucesso da investigação. São fornecedoras de conteúdos para alimentar audiências e encher cofres de empresas.
Refiro-me à divulgação pela CMTV, em novembro de 2015, dos vídeos dos interrogatórios do ex ministro Miguel Macedo. A PGR anunciou abertura de inquérito no final desse mês; a decisão de levar a julgamento três funcionárias da CMTV, todas com carteira de jornalista, data do início do mês passado. E a notícia desta pronúncia surge no preciso momento em que a CMTV está a divulgar áudios de interrogatórios a suspeitos do homicídio de Luís Grilo, que ainda está em fase de investigação, portanto em segredo de justiça.
Diz a PGR, questionada pelo DN, que foi aberto inquérito a esta nova divulgação. Mas recusa esclarecer quando, que crimes estão em causa e de quem foi a iniciativa – sua ou se decorreu de queixa. Para além disto, não vimos qualquer outra manifestação pública de incomodidade por parte de quem tem a obrigação de zelar e pugnar pela legalidade. Ao contrário, aliás, do que se passou quando a SIC passou vídeos dos interrogatórios do Marquês – quando a ministra da Justiça, a Ordem dos Advogados e a Associação Sindical de Juízes se pronunciaram, desaprovando.
Tal é tanto mais difícil de entender quando, se parece claro que as autoridades judiciárias tendem a marimbar-se para as garantias constitucionais e especificamente para os direitos de personalidade – tanto assim que gravam em vídeo inquirições sem avisar os inquiridos, e estou em condições de o afirmar pois sucedeu comigo enquanto testemunha -, não se espera que se marimbem também para o sucesso da investigação. Mas até isso já devemos dar de barato: ao invés de servirem para apurar a verdade, os interrogatórios pelos vistos servem é para passar na TV e alimentar audiências.
Esta mercantilização da justiça – porque é de lucrar com ela que se trata – adquiriu tais foros de normalidade que a generalidade dos meios ditos jornalísticos reproduzem o que ouvem na CMTV sem o mínimo de veleidade de fazer jornalismo, ou seja, sem sequer informarem o público de que aquilo que reproduzem está em segredo de justiça e mesmo após essa fase estará em segredo por via do artigo 88.º do Código de Processo Penal (o qual qualifica como crime de “desobediência simples” a reprodução de “peças processuais ou documentos incorporados no processo, até à sentença de primeira instância”, assim como de “imagens ou tomadas de som relativas à prática de qualquer ato processual”, exceto se essa reprodução tiver sido autorizada por autoridade judiciária e pela pessoa a quem sejam relativas).
Para tornar oficial o que é oficioso, a empresa do Correio da Manhã avança de novo com uma lista própria às eleições da Comissão da Carteira de Jornalista. E é justo que vença, porque já ganhou. Um dia há de, como no Brasil, formar governo.
Percebe-se: o mais certo é que quem reproduz o que ouve na CMTV não saiba que existe tal proibição (então, se ninguém impede aquilo, é porque não deve ter mal, certo?); mesmo que o saiba, não vai tornar claro que tem consciência da ilicitude. Dirão pessoas mais chatas que ainda assim um jornalista tem de conhecer as suas obrigações profissionais e legais, que incluem “respeitar a presunção de inocência” e abster-se “de recolher declarações ou imagens que atinjam a dignidade das pessoas através da exploração da sua vulnerabilidade”. Mas se nem os tribunais nem o regulador ético da profissão (a Comissão da Carteira de Jornalista) impõem o respetivo cumprimento, é um jornalista mal pago e precário (todos hoje o são) que vai enfrentar a direção recusando-se a fazer “notícias” com o que passa na CMTV?
Claro que não. Até porque grande parte dos jornalistas já não distinguem o “interesse público” do “interesse em publicar”: a sobrevivência substituiu o dever de informar, e a ética é, como disse um dia Teresa Guilherme, para quem quer morrer de fome. Assim, e para tornar oficial o que é oficioso, a empresa do Correio da Manhã avança de novo com uma lista própria às eleições da Comissão da Carteira de Jornalista. E é justo que vença, porque já ganhou. Um dia há de, como no Brasil, formar governo.
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