Este artigo publica-se em 2 partes.
O Livro Negro Do Passado, Do Presente E Do Futuro Das Relações De Trabalho Sob O Capitalismo - Parte 1
Introdução
Em primeiro lugar sublinhemos que a recuperação económica de que os governos, as instituições supranacionais como a UE, o patronato em geral e os meios de comunicação ao serviço de todos eles falam é a recuperação capitalista. Trata-se de proceder a um relançamento da economia e de um ataque em força aos direitos e conquistas dos trabalhadores à boleia da pandemia, usada fundamentalmente como pretexto porquanto, durante a pandemia, os lucros das grandes empresas cresceram como nunca, as fortunas aumentaram rapidamente nas mãos de um cada vez menor número de ricos, as farmacêuticas registam lucros obscenos à conta da fabricação de vacinas, da espoliação dos povos com os altos preços que cobram por elas. E falamos de “povos” porque os Estados, com o dinheiro dos impostos cobrados maioritariamente às classes e camadas laboriosas alinham com o mecanismo que torna os monopólios farmacêuticos cada vez mais monstruosos. Veja-se o caso da UE com as encomendas sempre aos mesmos grupos quando poderia obter vacinas mais baratas e eficazes junto de outros países que as produzem como Cuba, a China ou a Rússia. Já nem falamos nos povos que não têm direito a vacinas...
Trata-se de aumentar cada vez mais a produtividade do trabalho assalariado, de encontrar novas formas de produzir (mais) mais-valia, do lançamento de grandes projetos e negócios à conta da “energia verde”, da “defesa do ambiente”, da “digitalização” e de somas astronómicas de capitais disponibilizados cujo resgate vai recair sobre os trabalhadores, de desmantelar conquistas e direitos que vinham de períodos anteriores, trata-se do aprofundamento da ofensiva contra o direito do trabalho no que ele consagra como direitos dos trabalhadores.
É no contexto da disponibilização de fundos da UE a Portugal, que o governo resolveu pôr em discussão pública o «Livro verde do futuro do trabalho».
Tendências que vinham de trás
O pensamento dominante - a ideologia burguesa vigorar enchem a comunicação social, fazem um verdadeiro bombardeamento sobre os cidadãos com a maravilha nunca vista da digitalização da economia, a felicidade de trabalhar a partir de casa, o sonho da perfeita conciliação da vida familiar com o trabalho, tópicos estes que têm vindo a ser potenciados a propósito do PRR e da chamada “bazuca” europeia.
Em boa verdade, sob a aparência de ultramodernidade, mantém-se a velhíssima receita nascida nos tempos da revolução industrial que inaugurou capitalismo. A tendência do desenvolvimento capitalista, rege-se pela sua lei básica do máximo lucro conseguido à custa da exploração da força de trabalho humano. O constante aumento da produtividade do trabalho é o que eleva cada capitalista acima da concorrência fazendo crescer a produção, aumentar quantidade de mercadorias produzidas no menor tempo possível fazendo baixar o seu preço de produção e, assim, concorrer em melhores condições com os outros capitalistas. Isto é válido para mercadorias palpáveis como para mercadorias imateriais.
E, apesar de o capitalismo ter entrado na sua fase imperialista, manifestando algumas leis particulares desta fase, designadamente a distorção da concorrência provocada pela existência de monopólios, assumindo aspetos completamente diferentes, transformações ao nível da ficção científica, com incorporação da técnica e da ciência mais avançadas, com uma infinita velocidade, em todo o globo, estas leis fundamentais continuam a atuar. Nos primórdios do capitalismo substituía-se o tecelão por uma máquina a vapor e hoje substitui-se um trabalhador por um robô. Também nesses primórdios se colocavam teares em casa dos trabalhadores para que toda a família trabalhasse, o maior número de horas possível e até as camas estavam junto da máquina para não perder “pitada” do trabalho da família. Consequência: a mesma – diminuição do número de postos de trabalho, desemprego. Seria muito reacionário que os trabalhadores se opusessem ao desenvolvimento das forças produtivas. Ao contrário, trata-se, para eles, de fazer reverter a seu favor as imensas possibilidades do seu desenvolvimento.
Depois da crise de sobreacumulação e do rebentamento da bolha especulativa verificada em 2008 e anos seguintes, para recuperar dessa crise e das consequências económicas da pandemia, usando-a como pretexto, o capital aproveita para lançar novos ciclos de reprodução, através do velho sistema do aumento da exploração do proletariado e da exploração colonial das riquezas dos países mais dependentes e produtores de matéria-prima. A recuperação da crise, mais uma vez, vai recair sobre os ombros dos trabalhadores. Diz o LVFT a págs 14: E isto em duas dimensões de tempo, ou seja, naquelas que são as respostas às necessidades de curto prazo a uma crise económica imprevisível e causada por uma pandemia, mas também a preparação das pessoas e das empresas para os próximos anos e para que estejamos coletivamente bem posicionados numa economia global cada vez mais competitiva e em rápida transformação»…. Fica claro que a pandemia é uma alavanca para o fortalecimento do poder do capital.
Sem nos determos muito sobre a matéria diga-se, e são os porta-vozes do imperialismo que o admitem, que o capitalismo ocidental deu-se conta de que dependia excessivamente de países como a China para onde grande parte da indústria foi transferida à conta de mão-de-obra mais barata, pelo que é provável que se verifique alguma reindustrialização nas economias ocidentais. Mas essa reindustrialização, alavancada por potentes investimentos estatais (sim, são investimentos estatais que serão postos ao serviço das grandes indústrias que agora já não exigem “menos Estado”) verificar-se-á na base de novas melhorias tecnológicas que aumentam a produtividade e lançam mais milhões de trabalhadores no desemprego. Estima-se, segundo o LVFT que «14% dos empregos nos países da OCDE e 17% dos empregos europeus estão sujeitos a um elevado risco de poderem vir a ser automatizados por completo e outros 32%, quer na OCDE quer na União Europeia, estão sujeitos não a obsolescência, mas a mudanças significativas»
Porém, o preço baixo da mão-de-obra do oriente não foi a única causa da desindustrialização no capitalismo ocidental. Tratou-se de eliminar as enormes concentrações de operários, poderosas promotoras da sua organização e da formação da sua consciência de classe. Um perigoso número de operários estava concentrado sob um mesmo espaço. Na década de 80 em Portugal, podemos ver o que aconteceu quando a Lisnave, a Setenave, a Mague e tantas outras empresas encerraram. Aumentou o desemprego; o preço da mão-de-obra baixou com reflexo nas condições de vida das famílias trabalhadoras e houve fome; enfraqueceu-se o movimento sindical e as Comissões de Trabalhadores destas e de muitas outras empresas desapareceram; diminuiu acentuadamente a influência do partido de classe com reflexos bem visíveis nos resultados eleitorais.
Na década seguinte, deu-se uma maior sofisticação das formas de dividir os trabalhadores sob a forma de reorganização do trabalho e do tempo de trabalho. Apareceu então a chamada externalização de serviços. Umas empresas expressamente criadas prestavam serviços às grandes empresas cujo objeto muitas vezes fora arrancado à empresa principal, por exemplo, a manutenção das linhas elétricas da EDP, a instalação de redes de comunicação em casa, ou serviços de limpeza empresas prestados por trabalhadores que antes tinham o seu vínculo com a empresa principal etc., etc. O número de trabalhadores concentrados foi diminuindo, a contratação coletiva tornou-se cada vez mais dificultada, os operários dispersaram-se e perderam os contactos entre si. Foi destruída a grande organização fabril do operariado que facilitava a sua organização como classe.
Apareceram as empresas de aluguer de mão-de-obra hoje multiplicadas por milhares. A precaridade dos vínculos laborais destes trabalhadores e a irregularidade na sua forma de prestação de trabalho (hoje aqui, amanhã ali) quase impossibilita qualquer perspetiva de organização sindical.
Apareceram ainda as ideias peregrinas como os bancos de horas e a desregulamentação do tempo de trabalho sob variadíssimas formas, mas especialmente sob a forma de turnos mesmo em empresas que não necessitam deles, aproveitando o funcionamento dos equipamentos, dos espaços e da força de trabalho 24 sobre 24 horas.
São apenas alguns exemplos. Com a digitalização, “a verdura” da economia, o “nomadismo digital” e todos esses conceitos que hoje se difundem prometendo a felicidade na terra para os trabalhadores, a situação hoje continua a ser esta mesma sob uma diferente forma.
Sublinhe-se mais uma vez que, para o patronato, cuja riqueza provém do trabalho expropriado ao seu legítimo dono, o trabalhador, o preço da mercadoria força-de-trabalho impacta diretamente os seus lucros, pelo que salário (quanto lhe paga pelo exercício da força de trabalho) e o tempo de trabalho (durante quanto tempo pode usufruir dela) se encontram no âmago da relação capitalista de produção. A luta de classe travada pelo aumento do salário e pelo encurtamento ou contra o aumento da jornada de trabalho atinge o patronato no coração.
As políticas dos governos do capital: PS, PSD E CDS
Coube ao governo PSD/CDS dar continuidade à política iniciada pelo governo do PS/Sócrates imposta pelo imperialismo europeu na sequência da crise de 2008. Esta crise já vinha na sequência de outras, que por sua vez vinham na sequência de outras – não há capitalismo sem crises de vária natureza - e cuja origem se perde na noite dos tempos da adesão de Portugal à CEE e da contrarrevolução nacional e mundial. Cabe hoje ao PS dar continuidade à política do governo PSD/CDS em circunstâncias aparentemente mais mitigadas e suscetíveis de serem mais maquilhadas até pelo tipo de apoio parlamentar de que o atual governo dispõe.
Referindo-se ao Livro Verde diz a CGTP-IN: «... podemos afirmar que se filia na mesma orientação e prossegue a mesma linha de desregulação e flexibilização das relações laborais e de desvalorização do direito do trabalho que tem caracterizado a política laboral desde a década de 80 do século passado, passando pela aprovação do Código do Trabalho de 2003 e pelas sucessivas revisões operadas em 2009, 2013-2014 e 2019».1
Não se sonhava ainda com a pandemia e já o governo do PS não queria ouvir falar de alterações à legislação do trabalho introduzida pelo PSD/CDS a pedido de várias famílias do dinheiro. Isso era claro, mesmo no momento em que o PS resolveu esquecer o que o dividia do PCP e o PCP esquecer o que o separava do PS e se deu início a uma cooperação a três, depois a dois e, tudo indica, novamente a três no próximo OE (o BE a dar ao rabinho e a espetar as orelhinhas), naquilo que lhes era “comum”. Não houve qualquer reversão na legislação reacionária do trabalho. Tudo o que era do interesse do patronato continuou e há-de continuar se Deus quiser, enquanto a luta de classes for a feijões: a negação o princípio do tratamento mais favorável, a caducidade da contratação coletiva, a precaridade, o regabofe da organização do tempo de trabalho, o campo livre à ação dos modernos negreiros, as empresas de aluguer de mão-de-obra, o trabalho escravo nas plataformas, as várias formas de precaridade que recente legislação do PS veio a agravar, aumentando o tempo do período experimental para 180 dias. Em todas estas áreas o governo é também exemplar no tratamento que dá aos seus trabalhadores: igual ou pior do que o do patronato privado.
Eis senão quando surge a pandemia e todos os problemas se agravam sendo as vítimas principais os trabalhadores, entre eles aqueles com vínculo precário, grande número de jovens mas não só, e outros sem qualquer vínculo.
O foguetório da bazuca e o Livro verde do futuro das relações de trabalho
Como se vê pelo nome, Livro do futuro concentra a atenção nesse tempo, mistificando o facto de o presente já conter inúmeros problemas para os trabalhadores que o governo e o patronato não querem resolver (obviamente por defenderem interesses de classe comuns a um e a outro) a que acrescem novos problemas no “futuro”, a maioria dos quais é já uma realidade presente.
O documento é um repositório de lugares-comuns a propósito da “revolução digital” e suas consequências, e um elogio ao governo pela atenção que tem dado a este problema nas quatro vertentes que analisa: os “desafios estratégicos que interpelam a discussão sobre o futuro do trabalho”: (1) a transição digital; (2) a demografia; (3) o combate às desigualdades; e (4) a transição climática.
Toda a exposição vai no sentido da subordinação às diretrizes da UE, OCDE e, no que respeita ao trabalho, do aprofundamento da flexibilização dos vários aspetos da relação entre trabalhador e a empresa, entre este e os proprietários dos meios de produção: o patronato ( esta palavra foi abolida do léxico para esconder a relação de exploração).
Para não se alimentarem expectativas, uma qualificação breve de tal “Livro”: um exercício de rematada hipocrisia e embuste dizendo que combate aquilo que na verdade promove, com largas pinceladas de fantasia quanto à aplicabilidade das novas tecnologias no tecido empresarial português, um programa de admissão, na prática, daquilo que o patronato pretende e uma vénia aos interesses dos grandes monopólios e potências da UE.
Quanto à implementação das novas tecnologias, o Livro verde diz algo interessante, mas de modo nenhum surpreendente : « ... algumas empresas estão mais bem posicionadas para desenvolver ou usar IA [Inteligência Artificial] [...], face às dificuldades que grande parte das PME tem na adoção de IA (nº PME: cerca de 1 380 000).
Finalmente, haverá que dizer, sobre a utilidade de documentos deste tipo, que o papel aguenta tudo, que muitos deles são manobras de diversão e que as coisas se decidem na prática de acordo com a relação de forças de classe, sem esquecer, que o governo está na barricada do patronato.
O que há a esperar do futuro no mundo do trabalho que o Livre Verde reconhece?
O futuro dos postos de trabalho e os despedimentos.
Quanto à extensão real e potencial do problema é o Livro Verde que admite que “Muitas das principais questões suscitadas pelo impacto das novas tecnologias no mercado de trabalho passam pela possibilidade de agravamento de bolsas de desemprego tecnológico devido ao potencial de automação de partes significativas das tarefas hoje realizadas por pessoas” e que «….um estudo realizado pela CIP e Nova SBE em 2019 permitiu concluir que 52% do tempo laboral despendido em Portugal é em tarefas repetitivas com 70% de potencial de automação e que apenas 13% dos trabalhadores desempenha tarefas não rotineiras e de elevada qualificação».
E prevê até, quais as regiões e setores mais afetados: «As localizações mais afetadas pelo potencial de automação são o Centro e o Alentejo e os setores identificados nesse estudo como tendo maior potencial de automação são a produção fabril, o comércio, a agricultura, as pescas, os transportes e armazenamento e a indústria mineira.»
Veremos qual será o impacto da introdução das novas tecnologias no emprego em Portugal. Mas não é necessário entrar em linha de conta com esse fator para constatar que, em nome da recuperação a TAP está a despedir 2 000 trabalhadores, que, em nome do ambiente, se encerrou a refinaria de Matosinhos e em nome da eficiência está a banca a despedir trabalhadores (aqui, sim, os trabalhadores da banca estão a ser substituídos pelos computadores dos clientes que fazem grande parte do trabalho bancário).
Diz ainda o Livro verde, tipificando as situações em que a digitalização se fará mais sentir: “A automação digital tende a substituir também os trabalhadores com qualificações intermédias, que desempenham tarefas mais rotineiras em áreas tão distintas como as vendas ou o trabalho administrativo”. (sublinhado nosso), mostrando a incidência dos despedimentos precisamente em setores que já hoje estão fragilizados.
Reconhece ainda que se vai intensificar a polarização do mercado de trabalho, ao permitir a substituição de trabalhadores com qualificações intermédias e que desempenham tarefas rotineiras pela automação e robotização potenciando o crescimento simultâneo e paralelo de trabalhadores com qualificações elevadas e salários elevados e outros com menos qualificações e salários mais baixos.
E também a faixa etária e composição de género: «... prevê-se que os impactos da IA se irão fazer sentir mais fortemente em grupos sociais como os jovens e as mulheres, uma vez que o risco de automação é superior entre os trabalhos desempenhados por estes (p. 72). O LVFT jura que vai promover a igualdade de género, mas a dura realidade é que toda esta reorganização do trabalho vai recair sobre as mulheres: acumular tarefas profissionais em casa com o tomar conta dos filhos, tratar da casa, ir às compras – tarefas que continuam a ser femininas – remunerações inferiores, ausência de perspetiva de carreiras profissionais. Se tudo isto não for travado, estaremos perante um retrocesso civilizacional sem precedentes.
«[...] relevante para o ajustamento do mercado de trabalho europeu é a previsão de que 22% das atividades atuais (53 milhões de empregos) poderão ser objeto de automatização até 2030. Os trabalhadores que correm o maior risco pelo avanço da automação são precisamente aqueles mais em risco com a crise pandémica, sendo que a crise pode ter acelerado alguma desta substituição», diz o Livre verde.
O LVFT reitera que o impacto das mudanças com impulso ou dimensão tecnológica nos mercados e no mundo do trabalho será muito profundo e considera que esse impacto também pode “gerar e fazer crescer diferentes atividades profissionais” para sossegar consciências filistinas quanto aos duros números do desemprego que atrás admitem. É interessante ler o que ele diz:
«[...] 438 regiões com 30% da população, localizadas sobretudo na Europa de Leste e na Europa do Sul, têm assistido a um decréscimo da população ativa, a um envelhecimento da população e ao decréscimo das habilitações. Deste modo, se o impulso para o teletrabalho não for suficientemente forte para alterar os padrões de urbanização, as 48 cidades mais dinâmicas da Europa podem capturar mais de 50% do potencial crescimento de emprego, aumentando a tendência de concentração geográfica.» (p. 164)
Com ou sem digitalização, e este é um problema totalmente do presente, muitas empresas vão encerrar portas por não aguentarem a concorrência e as dívidas. É o caso de muitas pequenas e médias empresas de vários setores. Sairão deste movimento mais um largos milhares de despedimentos. Recordemos que o sr. António Saraiva da CIP fez um apelo (como se o sistema funcionasse com apelos) à concentração de empresas (e aqui o homem tem razão), para que sejam mais fortes nos mercados e possam sobreviver. Atente-se também que os créditos bancários são atribuídos no pressuposto de uma viabilidade futura, pelo que muitas empresas ficam à partida destinadas a desaparecer.
...
Em breve publicaremos a parte 2.
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