As notícias que agora nos chegam mostram-nos não apenas como as actividades culturais são facilmente arma de arremesso em momento de campanha, mas também nos alertam para a facilidade com que podem ser instrumentalizadas.
Na semana passada uma actriz escreveu nas suas redes sociais que o espectáculo que se encontrava a ensaiar havia sido adiado pela autarquia, devido a uma denúncia de um partido da oposição à Comissão Nacional de Eleições (CNE).
Numa breve pesquisa na Internet perceberão que esta notícia saiu apenas em alguns meios de comunicação que se dedicam a acompanhar vidas de figuras públicas, e o olhar que faziam sobre o caso era o de uma actriz em particular que viu o seu trabalho subitamente cancelado. Foi também noticiado pelo Diário do Distrito, reproduzindo quase integralmente a publicação da actriz, e acrescentando um ou dois comentários de outras colegas de profissão. Este jornal escolheu para título da notícia: “Adiamento de ‘Medeia’ em Alcochete revolta actriz Carla Chambel“, com as tags “Famosos” e "Autárquicas 2021”.
O caso é tão insólito quanto grave, mas parece-me importante que dediquemos algum tempo ao acontecimento.
O espectáculo em causa era Medeia, uma tragédia grega escrita por Eurípides no séc. V a.C., levada a cena pelo Teatro Livre, que havia já estreado este ano no Teatro Romano, em Lisboa, com o apoio da EGEAC e da autarquia de Alcochete. A apresentação de uma récita no Fórum Cultural de Alcochete já deveria ter sido realizada mas, como tem acontecido com centenas de espectáculos por todo o país, foi reagendada devido à pandemia.
Estava já a equipa em ensaios para esta reposição, quando lhes foi comunicado que a apresentação, que deveria ter acontecido no passado dia 10 de setembro, teria de ser novamente adiada. Acontece que, desta vez, a culpa não era de um vírus que colocava o mundo em suspenso, mas sim, fruto de uma queixa de um partido da oposição ao do executivo à CNE, que acusava a programação cultural de propaganda eleitoral.
Então, a Câmara Municipal de Alcochete cancelou e adiou todas as actividades culturais e desportivas até às eleições autárquicas, que acontecerão no próximo domingo, dia 26 de setembro. Nesta lista de cancelamentos súbitos, incluem-se também eventos programados em rede com outros municípios. No caso deste espectáculo, a autarquia pagou as despesas do material adquirido até à data, e conseguiu-se (não sem um grande esforço da equipa para conseguir voltar a conciliar agendas de várias pessoas) um novo dia para a sua apresentação, depois das eleições.
Não fossem algumas capturas de ecrã durante a semana passada, e quase não haveria vestígios de que estes eventos estiveram alguma vez programados, e não fossem as revistas cor-de-rosa a noticiar a “indignação da actriz”, e não seria fácil saber nem do adiamento dos eventos, nem o que motivou esta decisão.
Não sou jornalista, e não tenho qualquer capacidade para aprofundar os factos deste assunto. Nas poucas notícias que há, não fica claro se os cancelamentos foram uma decisão da autarquia como resposta à queixa apresentada, ou se foi uma recomendação da CNE. Ficam-me ainda algumas perguntas que gostaria de ver respondidas, e outras tantas que me parecem servir de alerta para o futuro.
Faz sentido suspender a programação cultural de um município durante a campanha eleitoral? É o projecto cultural do município tão frágil assim, que possa ser confundido com promoção partidária? Se as actividades culturais são consideradas assim tão perigosas para serem canceladas com esta leviandade, não deveria a cultura ser levada mais a sério durante o resto do ano, desenvolvendo um projecto cultural comprometido, financiado pelas autarquias – como é aliás sua missão – mas totalmente independente de qualquer poder local?
No último texto que aqui escrevi, no mês passado, alertava para as vantagens de cargos de direcção artística de instituições públicas ser feito através de concurso ao invés de nomeação directa. Dizia ainda que estava em andamento o processo de credenciação de várias dezenas de teatros e cineteatros por todo o país, e que em Outubro irá abrir um concurso para o co-financiamento da programação desses espaços municipais com o governo central, a Rede de Teatros e Cineteatros Portugueses (RTCP). Neste momento há mais de cinquenta equipamentos por todo o país que se poderão candidatar.
Infelizmente fomo-nos habituando a encontrar frequentemente autarquias com vereadores e vereadoras da cultura sem qualquer capacidade para o cargo, sem pensamento sobre política cultural, sem nenhuma estratégia.
As notícias que agora nos chegam mostram-nos não apenas como as actividades culturais são facilmente arma de arremesso em momento de campanha, mas também nos alertam para a facilidade com que podem ser instrumentalizadas.
Não deixa de ser curioso que este acontecimento tenha vindo a público com um dos textos mais antigos da humanidade, feito milhares de vezes, em milhares de contextos. Perguntam-me frequentemente se acho que o teatro é político. Pode ser e pode não ser. Mas fazer teatro é, claramente, um acto político. Até mesmo quando não se pode fazê-lo.
A autora escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.
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