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Guardião dos direitos humanos, homem de "lágrima fácil", Jorge Sampaio teve que tomar decisões difíceis como Presidente da República e viveu por dentro alguns dos momentos históricos mais relevantes das últimas décadas.
Uma vida dedicada à política, que começou na oposição à ditadura do Estado Novo, nas trincheiras do movimento académico e continuou com a defesa presos políticos. Homem de "lágrima fácil", Jorge Sampaio teve que tomar decisões duras como Presidente da República e viveu por dentro alguns dos momentos históricos mais relevantes das últimas décadas. O lado político e pessoal de um guardião dos direitos humanos e europeísta convicto, preocupado com o legado deixado às novas gerações.
1. “Fartei-me do Santana primeiro-ministro”
Durão Barroso aceitou o convite para presidente da Comissão Europeia e entregou a liderança do Governo a Santana Lopes. O Presidente Jorge Sampaio aceitou a solução, sem convocar eleições, e deu posse ao novo primeiro-ministro, em julho de 2004. A decisão valeu-lhe críticas no seio da sua família política socialista. Mas poucos meses depois, lançou a "bomba atómica" política: dissolveu o Parlamento e convocou eleições, devido a uma sucessão de "casos" no Governo Santana.
“A insustentável situação a que se chegou e que certos comportamentos e reações dos últimos dias só têm contribuído para confirmar, mostra que as tendências de crise e de instabilidade se revelaram mais fortes que o Governo e a maioria parlamentar, que se tornaram incapazes de as conter e inverter. Neste quadro, que revelou um padrão de comportamento sem qualquer sinal de mudança ou possibilidade de regeneração, entendi que a manutenção em funções do Governo significaria a manutenção da instabilidade e da consistência. Entendi ainda que se tinha esgotado a capacidade da maioria parlamentar para gerar novos governos. Assim, e em face a uma situação cuja continuação seria cada vez mais grave para Portugal, entendi em consciência que só a dissolução parlamentar representava uma saída. Impõe-se a devolução da palavra ao eleitorado. É o que faço”, disse num discurso ao país a 10 de dezembro de 2004.
A polémica em torno do XVI Governo Constitucional foi revisitada por Jorge Sampaio na sua biografia política, publicada em 2017. O antigo Presidente não mostrou qualquer arrependimento.
“Fartei-me do Santana como primeiro-ministro, estava a deixar o país à deriva - mas não foi uma decisão ‘ad hominem’. (...) Hoje faria o mesmo. De vez em quando é preciso dar voz ao povo – e percebi qual era o sentimento do povo”, declarou Jorge Sampaio nas suas memórias.
2. Timor independente
Jorge Sampaio tomou posse como Presidente da República em março de 1996 e ajudou a impulsionar o movimento para o fim da ocupação indonésia de Timor-Leste, uma causa que a população portuguesa também abraçou e viveu intensamente.
"Objetivo único e exclusivo: que haja um ato de autodeterminação para a população e Timor, qualquer que seja a sua resposta. Esse ato de autodeterminação tem de ser livre e aceite pela comunidade internacional Não me desvio um milímetro disto. Esse é o mandato que Portugal tem, que eu tenho, esse é o mandato que eu tenciono cumprir, dentro do possível", declarou Sampaio em dezembro 1996.
O chefe de Estado, o Governo e a diplomacia portuguesa fizeram pressão junto da comunidade internacional – que despertou para a situação em Timor com o massacre de Santa Cruz, em 1991 - para a realização de um referendo de autodeterminação. A consulta popular acabou por acontecer a 30 de agosto de 1999 e os timorenses votaram massivamente a favor da independência.
3. Cimeira das Lajes. O último a saber?
Jorge Sampaio era Presidente da República e Durão Barroso primeiro-ministro quando Portugal acolheu a famosa Cimeira das Lajes, a antecâmara da invasão do Iraque.
O encontro de alto nível juntou nos Açores, em março de 2003, o Presidente norte-americano George W. Bush, e os primeiros-ministros britânico e espanhol, Tony Blair, Jose Maria Aznar, respetivamente.
A biografia de Sampaio dedica um capítulo a este momento da história, em que refere que Jorge Sampaio foi o "último a saber" da cimeira, tendo sido avisado à última hora. Durão Barroso falou com Sampaio no dia 14 e a cimeira aconteceu a 16 de março.
O então Presidente da República disse ao primeiro-ministro que não lhe cabia autorizar nada e pensava que se tratava de uma reunião para tentar evitar um conflito armado com o regime de Saddam Hussein.
"Eu não tinha que autorizar ou deixar de autorizar, dado os poderes que o Presidente tem em política externa. Desde setembro que ele sabia a minha opinião. Respondi-lhe: 'Se me diz que é uma derradeira e essencial tentativa para a paz e evitar a guerra no Iraque, nada a opor", declarou Jorge Sampaio.
Versão diferente tem Durão Barroso, que garantiu ter posto o chefe de Estado ao corrente da situação assim que recebeu o pedido.
"O meu contacto com o Presidente da República deu-se quase imediatamente, por telefone, após telefonema que recebi de Aznar, solicitando-me que se realizasse em Portugal a reunião com o Presidente dos EUA e o primeiro-ministro do Reino Unido. O então Presidente, Jorge Sampaio, não só não foi o último a saber, foi na realidade a primeira a pessoa a saber e mesmo a única entidade que eu consultei antes da decisão tomada", assegurou o ex-primeiro-ministro e presidente da Comissão Europeia.
4. Vida para além do Orçamento
Muitas vezes e durante anos citado de forma incorreta, foi o próprio Jorge Sampaio a esclarecer que nunca disse que há vida para além do défice. Na verdade, o antigo Presidente falou em Orçamento.
“O problema orçamental da economia portuguesa, merecendo embora exigente e necessária atenção não é o único. Há mais vida para além do Orçamento. A economia é mais do que finanças públicas. O aumento do investimento, da produtividade e da competitividade da economia portuguesa é fundamental”, disse o Presidente da República na sessão comemorativa do 25 de Abril no Parlamento, em 2003.
Durão Barroso era o primeiro-ministro e Manuela Ferreira Leite a ministra das Finanças, e os tempos eram de contenção da despesa pública.
A frase de Jorge Sampaio foi recuperada ao longo dos anos, nomeadamente durante a intervenção da troika, em que Portugal foi sujeito a apertadas medidas orçamentais e de redução do défice.
5. A candidatura que deixou Guterres "à rasca"
A passagem é contada no segundo volume da sua biografia, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira. Jorge Sampaio revela que o então secretário-geral do PS, António Guterres, ficou "absolutamente à rasca" quando anunciou a sua candidatura à Presidência da República, à margem do partido.
"Peguei no telefone, fez-se um silêncio absoluto e todos os que estavam ouviram a conversa: 'Oh Guterres, é só para lhe dizer que vou anunciar a minha candidatura dentro de dias", contou o histórico socialista nas suas memórias políticas. Sampaio, ex-presidente da Câmara de Lisboa, tinha sido informado por um amigo que o PS se estaria a preparar para apoiar outro candidato.
Apanhado de surpresa, António Guterres respondeu: “Eh pá! Você não nos vai fazer uma coisa dessas! Com certeza que o apoio, mas o partido ainda não está preparado, é preciso discutir melhor. Não pode adiar uns dias?".
Jorge Sampaio respondeu que não ao líder socialista e viria a anunciar publicamente a candidatura em fevereiro de 1995.
“O Guterres ficou absolutamente à rasca, porque tinha uma gestão interna difícil de fazer. Não esperavam que lhes comunicasse assim de repente e cortei-lhes qualquer hipótese”, recordou Jorge Sampaio, que haveria de derrotar o antigo primeiro-ministro Cavaco Silva e ser eleito Presidente da República, sucedendo a Mário Soares.
"Sucederei no exercício da mais alta magistratura da Nação ao Presidente Mário Soares. Um amigo por quem tenho profunda consideração e respeito, um político impar na história política deste século. Esta é para mim uma honra acrescida. Quero-lhe prestar hoje simbolicamente a minha homenagem terminando estas minhas palavras com a fórmula do seu compromisso com os portugueses, em 1985. Quero unir os portugueses e servir Portugal. Viva Portugal", afirmou Sampaio discurso de vitória nas presidenciais de 1996.
6. A entrega de Macau
Jorge Sampaio foi o Presidente da República que concluiu o processo de transferência da soberania de Macau para a China, a 20 de dezembro de 1999.
Portugal virava uma página com 400 anos de história em Macau, naquela que era considerada a última colónia europeia na Ásia depois de o Reino Unido abrir mão de Hong Kong, dois anos antes.
Dez anos depois da transferência da soberania de Macau para a China, Jorge Sampaio fazia um balanço positivo do processo.
“A transferência de Portugal para a China foi excelente, foi bem discutida, bem pensada, a experiência de Hong Kong também serviu para alguma coisa. Era necessário, por um lado, fazer com que os direitos, liberdade e garantias da comunidade macaense ficassem salvaguardados e, por outro lado, a 50 anos, se desse o quadro do que poderia e deveria ser a Região Administrativa Especial de Macau, pelas duas partes. Ao mesmo tempo, que as vicissitudes que uma negociação comporta não afetasse aquilo que para mim, estrategicamente, era o mais importante, para além de Macau, que eram as relações com a República Popular da China”, disse em entrevista ao programa “Diga lá Excelência”, da Renascença e do “Público”, em 2009.
Numa retrospetiva realizada com mais distanciamento histórico, Sampaio disse na biografia lançada em 2017 que Portugal “falhou completamente” a missão em Macau e deixou críticas ao último governador, Vasco Rocha Vieira.
"É verdade que o nosso sistema foi mais brando que o de Hong Kong, mas tive sempre o sentimento de que falhámos completamente a nossa missão. No entanto, eu não podia ter feito mais. Só eu sei o que sofri, literalmente. Dei uma luta de morte, apenas por razões de patriotismo e de alguma decência, para fazer as coisas bem feitas (…) Gostei muito de conhecer os macaenses, mas nunca gostei de Macau. Em 500 anos nem ao menos conseguimos ensinar Português e ficámos com a fama de tipos que foram para lá enriquecer", lamentou Sampaio nas suas memórias políticas.
7. A causa dos refugiados
Nomeado alto representante para a Aliança das Civilizações, Jorge Sampaio foi o primeiro político português a tomar a iniciativa de ajudar as vítimas da guerra na Síria. Em 2013, fundou a Plataforma Global para Estudantes Sírios.
Em entrevista à Renascença, em fevereiro de 2016, confessou-se envergonhado com a falta de respostas da Europa e com o comportamento de alguns países em relação aos refugiados que foge de zonas de conflito e aos migrantes.
"Se, nos próximos meses, não houver fundos que ajudem as pessoas a fixarem-se e a ficarem onde estão, obviamente que virão para a Europa. A Europa está confrontada com um problema que tem a ver com alguns dos seus eixos fundadores de grande importância e estoira o sistema. É delicado de repente haver um fluxo dessa natureza. Eu, todavia, continuo a pensar que há meios para, rapidamente, ordenadamente avaliar quem deve ficar e quem não deve ficar, fazer essa distinção e dar destino a essas pessoas que trazem capacidades engenhosas, nomeadamente as que vêm da Síria. Algumas poderão ficar, para outras terão que se encontrar destinos alternativos. Agora, quando vemos cada um a seguir o seu próprio caminho, de forma desordenada, Schengen é posto em causa, todas as conquistas da Europa são postas em causa. A própria Alemanha começa a ter problemas entre os partidos que suportam o Governo, o que vem provar que, perante uma dimensão muito significativa, não foram encontradas respostas organizadas", disse Jorge Sampaio em entrevista à Renascença.
8. Heróis de infância
As duas grandes fontes de inspiração de Jorge Sampaio foram o pai Arnaldo Sampaio, médico e responsável pelo seu interesse na política, e a mãe Fernanda Bensaúde Branco, professora e uma referência que ajudou a moldar o seu caráter.
Durante a infância viveu nos Estados Unidos e em Inglaterra. Quando voltou para Portugal envolveu-se no movimento académico, que desafiava a ditadura, e foi advogado de vários presos políticos.
"Era dividido. Falo mais do meu pai – o que é injusto. Às vezes faço uma rememoração das coisas que digo e o meu pai é mais citado, sobretudo em conversas com jornalistas. Também porque foi o politizador directo. Mas a minha mãe foi uma referência imensa. Felizmente, viveu até tarde. Era um rochedo. Sempre discuti literatura com a minha mãe, com o meu pai discutia política. Houve dois ministros da Saúde que trabalharam com ele, que eram obviamente de direita, do Antigo Regime, e que o nomearam para diversas coisas; mas sabiam que era da oposição. Nos arquivos da PIDE estão coisas relativas ao meu pai. Fui ver, não há muito tempo. (...) Alguns dos meus críticos, ou alguns dos meus amigos mais fundos, dizem que eu era muito corretozinho. Onde eu ganhei asas foi como membro da associação de estudantes. A minha vocação, se é que a há, foi nessa direção. Por isso é que nunca pensei ser romancista e o meu irmão, provavelmente, pensou-o sempre", contou Jorge Sampaio em entrevista a Anabela Mota Soares, publicada no Público em 2010.
9. Alerta de populismo
Em novembro de 2016, com a eleição de Donald Trump como Presidente dos Estados Unidos, Jorge Sampaio era um homem ainda mais preocupado do que era costume. Num ensaio publicado no jornal "Público", lançou um apelo para travar a "corrida para o abismo" potenciada também pelo Brexit, alertando que não haverá paz duradoura se a desconfiança persistir.
“É impossível não olhar já para as eleições de 2017 em França e na Alemanha como próximas etapas prováveis desta corrida para o abismo”, escreveu o antigo Presidente.
Sampaio defende que, no actual contexto europeu e internacional, “reconstruir a confiança” constitui “um desafio grande, moroso, complexo, mas incontornável”.
"Não há economia, nem mercado, nem política, nem democracia sem esse cimento de base, a confiança. Não há paz duradoura se a desconfiança minar as relações entre comunidades, povos e nações, se o pacto social for rompido”, sublinhou.
10. O jogo que fez o regime tremer
Adepto do Sporting Clube de Portugal confesso por causa da mítica equipa dos “Cinco Violinos”, Jorge Sampaio gravou na memória uma célebre final da Taça de Portugal, entre Académica de Coimbra e Benfica, em plena crise estudantil de 1969. Faltavam cinco anos para a revolução de 25 de Abril.
Os estudantes de Coimbra reivindicam mudanças em tempo de ditadura. Alberto Martins, que tinha sido democraticamente eleito presidente da Associação Académica de Coimbra (ACC) após quatro comissões nomeadas pelo regime, pede para intervir durante uma sessão onde estava presente o Presidente da República, Américo Tomás, e acaba detido nessa mesma noite de abril.
Os estudantes continuaram a protestar, apesar da resposta violenta da polícia e das detenções. A 1 de maio, a Universidade de Coimbra era encerrada pelo Ministério da Educação e os alunos decidiram avançar com uma greve aos exames de junho.
Foi neste contexto que a Académica chegou à final da Taça de Portugal e o futebol servia para os estudantes de Coimbra manifestarem o seu descontentamento nas bancadas.
Jorge Sampaio, opositor da ditadura e advogado de presos políticos, esteve nesse jogo no Estádio Nacional e, em entrevista ao Canal 11. da Federação Portuguesa de Futebol, lembrou o dia em que o Estado Novo tremeu.
“Recordo a final da Taça de Portugal entre a Académica e o Benfica, em 1969. Eu sou do Sporting, mas não sou maluco, acho que é preciso serenidade, mas tinha havido a crise académica em Coimbra e o estádio estava cheio de polícia. Já era advogado nessa altura e houve uma comparência para apoiar a Académica. Estava tudo um pouco com a Académica que exibiu cartazes ao intervalo, todos vestidos com as capas pretas”, assinala Jorge Sampaio.
A equipa da Académica entrou vestida com as tradicionais capas negras, em sinal de apoio ao movimento estudantil, e nas bancadas, apesar da repressão, foram levantados cartazes onde se podiam ler mensagens como “Melhor ensino, menos polícia” ou “Universidade Livre”.
Foi um dos momentos que assinalou o princípio do fim do Estado Novo, que caiu em 1974. Nos dias que se seguiram ao 25 de Abril, Jorge Sampaio esteve na libertação dos presos políticos da prisão de Caxias, juntamente com outros ativistas e familiares.
Um dos momentos marcantes do percurso de Jorge Sampaio, que haveria de fazer o seu caminho na política: primeiro, fazendo parte do IV Governo provisório, ajudou a fundar o Movimento Esquerda Socialista (MES) e a Intervenção Socialista, antes de aderir ao PS. Foi eleito deputado em 1979 e dez anos depois chegou à liderança do PS e a presidente da Câmara de Lisboa. Foi Presidente da República, entre 1996 e 2006, e os últimos anos de vida foram dedicados a várias causas: tuberculose, Aliança das Civilizações e refugiados.
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