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Há alguns meses, um trabalho notável de Inês Serra Lopes publicado no Expresso sobre “o negócio milionário da justiça arbitral do Estado” punha o dedo na ferida. Cito, com a devida vénia, o destaque da peça: “esta é a justiça secreta, opaca, que não se vê, não se conhece, da qual ninguém nos dá conta, que é cara e, sobretudo, que é feita sempre pelos mesmos protagonistas. E através da qual se decide o destino do dinheiro público”.
De quando em vez somos confrontados com as consequências deste estado de coisas através de algumas notícias vindas a público, dando conta de que o Estado foi condenado em tribunal arbitral a indemnizar empresas beneficiárias de parcerias público-privadas em dezenas de milhões de euros, sem apelo nem agravo, e sem que se saiba os fundamentos da decisão e quem a tomou, dada a existência de cláusulas de confidencialidade.
Para que se tenha alguma noção dos valores que estão em causa, valendo-me de novo do trabalho de Inês Serra Lopes, entre 2010 e 2019, o Estado foi condenado a indemnizar grupos económicos privados, em consequência de decisões arbitrais, em mais de 588 milhões de euros. E analisada a Conta Geral do Estado de 2020, verifica-se que o montante controvertido em processos arbitrais envolvendo o Estado e beneficiárias de PPP em autoestradas e hospitais era da ordem dos 890 milhões de euros.
Ficamos então a saber que o Estado, ao abdicar de submeter os litígios emergentes de contratos públicos aos tribunais, submete-se a uma forma de justiça privada que lhe é invariavelmente desfavorável, com graves prejuízos para o interesse público e com enormes proventos para os interesses económicos privados envolvidos. No final do primeiro trimestre de 2018, o Estado já tinha perdido 661 milhões de euros em litígios com concessionárias de PPP rodoviárias decididos por via de arbitragem.
O recurso à arbitragem por parte do Estado foi inclusivamente criticado com veemência num Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, ao qual o Estado recorreu, inconformado com a decisão de um tribunal arbitral, mas viu negado o recurso na medida em que o compromisso arbitral assumido pelo próprio Estado deixava-o sem fundamento legal para poder recorrer das decisões dos árbitros.
O caso do Navio Atlântida, construído nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, foi um dos mais tristes exemplos das consequências lesivas do recurso à arbitragem por parte do Estado. Por via da arbitragem, a empresa pública foi condenada a ficar com o navio, que seria supostamente imprestável, e a pagar uma indemnização de 40 milhões de euros. Como se sabe, o navio viria ser vendido à Douro Azul por 8,7 milhões euros (menos de um terço do custo da viagem do empresário ao espaço), que o vendeu cinco meses depois por 17 milhões a uma empresa norueguesa. Afinal, não era assim tão imprestável.
Mais recentemente, em artigo publicado no jornal Público, o Presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses criticou, com inteira razão, o recurso do Estado à arbitragem, chamando a atenção para o potencial corruptor que envolve o facto de recursos milionários do Estado serem jogados em decisões tomadas por árbitros que não se sabe quem são, quanto ganham, como e porque foram nomeados, a que interesses particulares estão ligados e quais os fundamentos das suas decisões.
Perguntar-se-á o leitor, como é isto possível. É possível porque a lei o permite. A lei da arbitragem voluntária foi aprovada em novembro de 2011 a toque de caixa da troika, a pretexto do mau funcionamento da justiça. Era preciso agilizar as decisões, custasse o que custasse. A lei foi aprovada apenas com os votos favoráveis do PSD e do CDS (e certamente com o apoio entusiástico dos atuais dirigentes do Chega e da IL), mas com os votos contra do PS, do PCP e do PEV e a abstenção do BE, e nesse processo legislativo foi rejeitada a proposta do PCP, apresentada na especialidade, que visava precisamente proibir o Estado de recorrer à arbitragem.
Perguntar-se-á ainda o leitor, como é possível que, apesar dos escândalos vindos a público, a lei não tenha sido alterada. A resposta é simples. A lei não foi alterada porque o PS, o PSD, o CDS e a IL (na ausência do Chega) rejeitaram em 19 de novembro de 2021 (há menos de um ano) o projeto de lei do PCP n.º 799/XIV, apresentado no âmbito do pacote legislativo anticorrupção, que propunha proibir o Estado de recorrer à arbitragem em matéria administrativa e fiscal.
Assim, o escândalo continua. Que os privados possam recorrer a meios alternativos de resolução de litígios que os envolvam, recorrendo à arbitragem para dirimir conflitos entre si, é um problema entre privados que podemos aceitar sem dificuldade.
Coisa muito diferente é ser o próprio Estado a não resolver a situação caótica dos tribunais administrativos e fiscais e depois aceitar submeter os diferendos entre si e grandes grupos económicos a uma arbitragem blindada, secreta, mas em que o campo parece sempre inclinado contra os interesses do Estado e a favor dos interesses privados dos litigantes e porventura dos próprios árbitros.
Em nome da mais elementar decência na gestão dos recursos públicos é preciso acabar com este escândalo. Não é admissível que alguém afirme a sua vontade política de combater a corrupção e feche os olhos perante o verdadeiro esbulho de recursos públicos que representa a admissibilidade do recurso à arbitragem para dirimir litígios decorrentes da contratação pública.
Em nome dessa decência, deveria ser o próprio Governo a proibir todas as entidades sob sua tutela de assumir compromissos arbitrais. Poderia e deveria fazê-lo, mas independentemente disso, a Assembleia da República tem a obrigação de legislar sobre esta matéria. Assim todos assumam as suas responsabilidades.
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