Uma biografia sobre o presidente da Ucrânia mostra um retrato pouco abonatório: contas offshore, controlo dos media e incompetência. Os jornalistas falam de casos de «corrupção à escala industrial».
O romance de amor entre a comunicação social Ocidental e o presidente da Ucrânia parece ter tido melhores dias. Os órgãos de comunicação social Welt, na Alemanha, e Exxpress, na Áustria, dão grande destaque à publicação de um livro sobre o chefe do regime de Kiev que saiu no passado fim-de-semana, de autoria dos jornalistas de investigação Steven Derix e Marina Shelkunova: Zelensky, uma Biografia Actual.
Nas páginas do livro é feito um retrato de um homem que afirma combater a corrupção e os oligarcas, mas que tem contas offshore e contas de campanha pagas por estes mesmos oligarcas. Um líder que tudo fez para dominar a totalidade da comunicação social ucraniana e relata decisões presidenciais muito pouco competentes do actual líder ucraniano.
As críticas aparecem numa altura que jornalistas bem-informados nos Estados Unidos da América afirmam que a administração Biden, principal fornecedor de armas da Ucrânia, está muito descontente com Zelensky e manifesta crescentes dúvidas sobre a forma como está a conduzir a guerra.
«A guerra da Ucrânia ainda não terminou. E, em privado, responsáveis governamentais dos EUA estão muito mais preocupados com a liderança da Ucrânia do que estão a deixar passar. Existe uma profunda desconfiança entre a Casa Branca e o presidente Volodymyr Zelensky da Ucrânia - consideravelmente mais do que tem sido relatado.», garante o jornalista Thomas Friedman, no The New York Times, com muitas fontes no governo e serviços de segurança dos EUA, e vencedor, por três vezes, do Pulitzer.
O especialista garante que há muita coisa mal explicada e escondida em Kiev e que infelizmente Zelensky não parece ser flor que se cheire. «Há coisas engraçadas a acontecer em Kiev. A 17 de Julho, Zelensky despediu o procurador-geral do seu país e o líder da sua agência de segurança interna [Ivan Bakanov] - o abalo mais significativo no seu governo desde a invasão russa em Fevereiro. (…) Mas ainda não vi nenhuma reportagem que explique de forma convincente o que se passou. É como se não quiséssemos olhar demasiado de perto para debaixo da manta em Kiev, com medo de que corrupção que possamos ver, quando investimos tanto lá.».
Essas desconfianças têm sido silenciadas por grande parte da comunicação social, até porque factos pouco claros, como a utilização por parte de Zelensky de offshores e de ter sido apanhado na investigação dos Pandora papers, já são conhecidas há mais de 10 meses e foram completamente abafadas depois do início da guerra.
O caçador de oligarcas, mas pouco
No dia 2 de Julho, Zelensky publicou na sua conta do Twitter esta afirmação tonitruante: «Os oligarcas passaram à história». Isto após ter lançado um pacote legislativo que, entre outras coisas, obrigava os oligarcas a divulgarem os seus rendimentos e os impedia de financiar partidos políticos ou participar em grandes privatizações da propriedade estatal.
Em consequência da nova legislação, o magnata da comunicação social Rinat Akhmetov transferiu as suas licenças de radiodifusão para o Estado. Petro Poroshenko, ex-presidente e candidato derrotado por Zelensky, também vendeu os seus três canais de televisão: Canal 5, Kanal e Espresso. «A principal razão para introduzir esta “lei anti-oligarquia” é ganhar controlo sobre os meios de comunicação social», garante Poroshenko, citado no livro.
Vícios privados, públicas virtudes
Zelensky conquistou a sua popularidade como actor. Na série de televisão «O Servidor do Povo», nome que vai usar para o seu partido na vida real, encarna um modesto professor de história que se candidata e ganha as eleições presidenciais para combater a corrupção.
Enquanto vende a imagem que é um lutador contra os oligarcas, na realidade ele está claramente ligado ao oligarca ucraniano Igor Kolomoisky, o dono da TV 1+1, onde o seu programa tem aparecido desde 2012.
«De acordo com uma investigação liderada por Volodymyr Ariev, deputado do bloco Petro Poroshenko, o início desta cooperação televisiva coincidiu com grandes transacções financeiras entre o Privat Bank, o maior banco da Ucrânia que na altura era propriedade de Kolomoisky, e Zelenskiy e outros membros da equipa do Kvartal 95. De 2012 a 2016, 41 milhões de dólares foram canalizados do banco através de uma série de empresas intermediárias para as contas das empresas Zelensky and Co. Ariev afirma que a Kolomoisky utilizou as empresas de Zelensky para a lavagem de dinheiro.», garante o German Council on Foreign Relations.
O facto de Zelensky ter contas offshore não é uma revelação nova. O facto não só tinha sido provado pelas investigações do consórcio internacional de jornalistas que analisou os Pandora papers, mas até pela comunicação social ucraniana. Em 2019, o site ucraniano Slidstvo.info revelou que o então comediante, juntamente com os irmãos Schefir e outro empregado do Studio Kwartal 95, possuiam contas offshores nas Ilhas Virgens Britânicas e Belize. No centro desta complicada estrutura empresarial está a Maltex Multicapital Corp. registada nas Ilhas Virgens.
A Maltex teria recebido um total de 40 milhões de dólares desde 2012, da parte de empresas detidas por Igor Kolomojskyj. A empresa também parece possuir apartamentos no centro de Londres no valor de 7,5 milhões de dólares. Pouco antes das eleições presidenciais, Zelensky transferiu as suas acções da Maltex Multicapital Corp para Serhij Schefir. O objectivo destas contas offshores não é clara. «Será que Zelensky se evadiu aos impostos? Ou estaria o Studio Kwartal 95 envolvido no branqueamento de dinheiro criminoso para o banco privado de Kolomojskyj?» perguntam os jornalistas de investigação Steven Derix e Marina Shelkunova no seu livro Zelensky, Uma Biografia Actual.
Já em Outubro de 2021, o Guardian tinha revelado pormenores do envolvimento de Zelensky em esquemas pouco claros, investigados no âmbito do Pandora Papers, que explicam os factos publicados no livro.
Antes de se tornar presidente, Zelenskiy declarou alguns dos seus bens privados. Entre eles incluíam-se automóveis, propriedades e três das empresas offshore de que era co-proprietário. Uma, Film Heritage, que detinha juntamente com a sua esposa, Olena, uma antiga escritora do Kvartal 95, está registada em Belize.
Mas os documentos dos Pandora papers mostram mais bens offshore que Zelenskiy não declarou. Film Heritage tinha uma participação de 25% na Davegra, uma empresa holding cipriota. A Davegra, por sua vez, é proprietária da Maltex Multicapital Corp, uma entidade anteriormente desconhecida, registada no paraíso fiscal das Ilhas Virgens Britânicas (IVB). Zelensky, os irmãos Shefir, e Yakovlev detinham cada um 25% de participação na Maltex.
A 13 de Março de 2019, duas semanas antes da primeira volta das eleições na Ucrânia, Zelensky deu a sua participação de 25% na Maltex a Serhiy Shefir, segundo mostram os documentos. Não é claro se Shefir pagou a Zelensky. Ivan Bakanov, amigo de infância do presidente que foi até há poucos meses chefe da SBU, agência de segurança ucraniana, testemunhou esta transferência secreta e assinou os documentos offshore.
Cerca de seis semanas depois, após a vitória esmagadora de Zelensky, um advogado em representação do grupo Kvartal 95 assinou outro documento. O documento estipulava que Maltex continuaria a pagar dividendos do património cinematográfico de Zelensky, apesar de já não deter qualquer participação na empresa.
Por sua vez, a esposa de Zelensky, Olena, é agora a declarada proprietária benéfica do Film Heritage.
O documento chave (datado de 24 de Abril de 2019 ) diz que Maltex detém acções em empresas que produzem e distribuem filmes televisivos. Uma razão para a criação de Maltex foi a «acumulação eficiente de lucros comerciais em termos fiscais»; outra, afirma, foi a «protecção legal». Borys Sheifir disse que a Bakanov tinha sobretudo criado estes «esquemas financeiros» offshore a fim de proteger a empresa das «autoridades e bandidos».
As revelações sobre a Maltex são embaraçosas para Zelensky, dado o seu compromisso de reprimir aqueles que enviam riqueza para o estrangeiro. Em Setembro de 2021, o parlamento da Ucrânia aprovou um projecto de lei anti-oligarca. A votação teve lugar um dia depois de assassinos desconhecidos terem tentado matar Shefir. Um pistoleiro tinha aberto fogo sobre o seu carro nos arredores de Kiev, ferindo o seu motorista.
Num artigo de opinião para a Atlantic Council, Zelensky disse que o seu objectivo final como presidente era destruir «a ordem oligárquica tradicional» e substituí-la por um «sistema mais justo». Os críticos, contudo, dizem que Zelensky não conseguiu reformar o Estado e abraçou os mesmos caminhos sombrios que os seus antecessores. Os auditores da UE advertiram no mês passado que a «grande corrupção e a captura do Estado» pelos interesses privados continuava generalizada na Ucrânia.
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