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O novo acordo de rendimentos assinado pelo Governo, pelas associações patronais e pela UGT (que pode ser lido aqui) tem sido caracterizado como um ponto de viragem na evolução dos salários em Portugal. António Costa disse que este era um "marco de confiança" que dá "previsibilidade do contributo que cada um tem que dar para alcançarmos estes objetivos e [...] estabilidade no percurso que vamos ter de percorrer". No entanto, se analisarmos em detalhe as contas do Governo, não é difícil identificar os aspetos problemáticos que põem em causa a "previsibilidade" anunciada.
O primeiro prende-se com o objetivo traçado pelo Governo: trazer o peso dos salários no PIB de volta aos valores pré-Troika. De forma resumida, o peso dos salários no PIB expressa a parte do rendimento produzido ao longo do ano que é entregue aos trabalhadores - ou, por outras e melhores palavras, a fatia do bolo que cabe aos trabalhadores. Em Portugal, este indicador sofreu uma quebra acentuada desde a adesão ao euro, passando de 60,4% em 2001 para 51% em 2016.
Apesar da ligeira recuperação registada no período da Geringonça, o peso dos salários no PIB em 2019 ainda se encontrava 3,3 pontos percentuais abaixo da média da Zona Euro (52,7% em Portugal e 56% na Zona Euro). E é preciso ter em conta que a aparente subida em 2020 está relacionada com a queda abrupta do PIB e não com uma valorização salarial extraordinária. O objetivo definido pelo Governo - voltar aos valores pré-crise - deixaria o peso dos salários bastante abaixo do que se registava quando aderimos à Zona Euro. E tudo aponta para que este indicador registe, este ano, uma nova quebra significativa, como já foi aqui descrito.
O segundo problema está relacionado com os pressupostos utilizados pelo Governo para as contas atuais. A fórmula do executivo é relativamente simples: para se aumentar a parte dos salários no PIB, é preciso que os salários registem um aumento médio superior à soma da inflação e do aumento da produtividade:
Aumento salarial necessário = Inflação + Produtividade + "Adicional Salarial"
Para fazer as contas do aumento necessário, o Governo assume uma inflação de médio prazo de 2% e um crescimento da produtividade de médio prazo de 1,5%. Para nenhum destes pressupostos é apresentada uma justificação robusta do ponto de vista macroeconómico, já que é simplesmente impossível traçar previsões de médio prazo num contexto de enorme incerteza como o atual.
Apesar disso, é importante notar que a proposta do Governo nem sequer é consistente com as estimativas das principais instituições que avaliaram a economia portuguesa. Se se tiver em conta as estimativas do Conselho de Finanças Públicas e da OCDE para a evolução da inflação e da produtividade no próximo ano, conclui-se que os salários teriam de crescer acima de 5,2% (no caso da OCDE) ou 6,1% (no caso do CFP) para que o seu peso no PIB aumentasse. O aumento projetado no acordo é de apenas 5,1%, o que significa que o peso dos salários no PIB deverá voltar a cair em 2023.
O terceiro problema prende-se com os instrumentos utilizados pelo Governo para promover o crescimento salarial, que se baseiam em incentivos fiscais por via da redução da taxa de IRC e da possibilidade de deduzir prejuízos na base tributável por um período ilimitado de anos. Em Portugal, quase metade das empresas não paga IRC e a receita é maioritariamente proveniente de um pequeno grupo de grandes empresas. Ou seja, reduzir o IRC beneficia sobretudo as empresas que menos precisariam de incentivos. E é preciso notar que a adesão das empresas aos aumentos salariais delineados é meramente facultativa.
Este problema é mais profundo, uma vez que a opção do Governo pelos benefícios fiscais se baseia numa determinada visão sobre o modelo de crescimento adequado para a economia portuguesa. Ao contrário do que muitos economistas, à direita e ao centro, afirmam repetidamente, não há evidência empírica que permita estabelecer uma relação entre reduções dos impostos sobre as empresas e maior investimento e crescimento económico.
Neste documento, não há sequer uma reflexão sobre as prioridades de investimento para o desenvolvimento económico. O fraco crescimento dos salários em Portugal ao longo da última década está associado ao perfil produtivo do país, excessivamente assente em setores de baixo potencial produtivo e baixas remunerações, como o turismo, a restauração, a construção ou o imobiliário. Inverter esta trajetória implica a definição de uma política industrial que promova setores de atividade com mais ganhos de produtividade e maior incorporação de conhecimento e tecnologia. Ao apostar apenas em benefícios fiscais pouco consequentes, o Governo volta a deixar o desenvolvimento produtivo nas mãos do mercado. O país já conhece bem os resultados.
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