Fala-vos um convertido.

Ali por alturas do Carnaval do ano passado, chegou a pandemia e eu, cego de dúvida e medo, caí desamparado no vórtice das fake news da extrema-direita nas redes. Comi de tudo: que o vírus escapou do laboratório, que isto fazia tudo parte do Great Reset e que a OMS estava comprada pela China e pelo Bill Gates. Aproveitaram-se da minha vulnerabilidade e incapacidade cognitiva e apanharam-me, mentiram-me, ludibriaram-me. Acreditei em tudo e passei pelo inexplicável embaraço de partilhar com as pessoas aquilo em que acreditava, chegando mesmo a censurá-las quando não aceitavam os meus dogmas.

Todavia, descansai. Fala-vos um convertido. Doutrinei-me, eduquei-me e, como São Paulo, vejo agora a luz com todo o seu incandescente esplendor divino. Onde havia perigosa desconfiança de autoridade e cepticismo na obediência cega aos interesses das grandes corporações, há agora uma enorme crença nas hierarquias, fidelidade ao poder político e confiança inabalável nas diegeses oficiais. Agora, aquilo que eu achava ser uma óbvia e descarada farsa com interesses nada obscuros – até bastante explícitos – é na verdade o maior problema que a humanidade já teve de encarar e qualquer coisa é pouca para o combater. Dir-me-ão que destruímos a economia e a sociedade sem efeitos práticos no andamento do vírus, que não quer saber o que são concelhos, matrizes ou se a FNAC vende livros. Rio-me com confessa condescendência: eu também já achei isso. O que estas pessoas teimam em ignorar é que, se não tivéssemos destruído a economia e a sociedade, estaríamos muito pior. A completa aniquilação da economia e do nosso modo de vida era uma necessidade incontornável. Ignorar isso é desonestidade intelectual.

“Diogo, como sabes isso? Os sítios do mundo que não adoptaram medidas draconianas estão melhores do que nós”. Ao perguntarem-me isto, já falharam. Isto era um teste. Creem vocês que Abraão pretendia matar Isaque? Fé, irmãos, tende fé. Ao colocarem essa pergunta, estão a começar a dar passos muito arriscados no rumo do abismo negacionista. Eu não posso apagar o meu embaraçoso passado, mas rogo-vos: não cometam os mesmos pecados que eu cometi.

Vejo agora que aquilo que eu erroneamente interpretava como atropelos intoleráveis à minha liberdade e à soberania que exerço sobre o meu próprio corpo são, na verdade, imperativos essenciais ao meu bem-estar, saúde e segurança. Só temos de os deixar protegerem-nos e eles proteger-nos-ão. Qualquer resistência é contraproducente para a nossa própria saúde. Enquanto negacionista, eu era o cão a quem era preciso desfazer o comprimido para ele comer, porque não entende que é para o seu próprio bem. Se não tencionais ser o cão que outrora fui, só tendes de aceitar a autocracia política no vosso coração e deixar o espírito ser guiado em segurança por burocratas corrompidos. É tudo uma questão de fé.

Os meus tempos de negacionista foram confusos e desapropriados. Admito: acreditei em coisas que não lembram ao diabo. Que o uso de máscara na comunidade é um placebo, de relevância marginal, usado exclusivamente para amedrontar o gado. Que usá-la na rua era uma inimaginável estupidez hipocondríaca. Que era um escândalo a opacidade dos laboratórios relativamente ao número de ciclos dos testes PCR. Que os especialistas que apareciam na televisão a exigir mais restrições eram inimputáveis e mentirosos apparatchiks, que jamais eram confrontados com as suas comprovadas mentiras. Cheguei a ser – digo-o com vergonha – contra os passaportes sanitários. Dizia que a constituição estava a ser ignorada, que as vacinas só foram aprovadas emergencialmente, que tinham – por admissão das farmacêuticas – efeitos completamente desconhecidos no longo prazo e que, portanto, impor a sua toma comportava níveis inconcebíveis de ilegalidade e desumanidade. Eu vomitava regularmente toda essa lengalenga do vosso amigo maluquinho negacionista. Esse maluquinho era eu. E se evoquei toda a coragem para o admitir aqui – tentando por essa via sufocar o embaraço que é algum dia ter pensado pela minha cabeça – é por ter consciência de que o meu relato pode ajudar a tirar outras pessoas do perigoso obscurantismo que é não seguir as massas. Se há coisa que aprendemos com a História, é que as massas estão geralmente certas e que a disrupção que melhora as sociedades vem sempre da maioria acrítica. Não aprender com a História é um erro que não podemos cometer.

Em retrospetiva, admito, é embaraçoso e, se o arrependimento matasse, morreria mais depressa do mesmo do que da Covid. Condenei os jornalistas, por descartarem pornograficamente o seu dever de cepticismo e distanciamento do poder e considerava que, por sobrevivência e subserviência, não passavam de baratos e incompetentes propagandistas. Com as lentes do negacionismo, teria até julgado que esta descarada campanha na Comunicação Social para vacinar as crianças era jornalismo putrefacto ao serviço de uma agenda que eles próprios – hipnotizados pela sua própria narrativa e condenados à sua insipiência – não conseguem explicar. Agora sei que colocar em causa as autoridades representa um perigo para a democracia, para a saúde de todos nós e, como tal, a comunicação social servir de megafone do poder é senão responsabilidade cívica.

Julguei até, imaginem só, que o desaparecimento da gripe – anunciado com a leviandade de uma mera nota de rodapé – era o mais óbvio e rocambolesco engodo de toda esta realidade alternativa. Agora, com a ajuda dos especialistas televisivos, percebo ser uma realidade médica extremamente verosímil, fruto do uso generalizado de máscaras, que não fez muito em relação à SARS-CoV-2, mas que involuntariamente dizimou por completo uma doença que varria mais portugueses do que a doença para a qual tomámos essa opção. Uma feliz descoberta acidental, como o tipo que inventou o micro-ondas porque o seu chocolate derreteu. A bonança durante a tempestade.

São, felizmente, tempos idos e rogo o vosso perdão. Vejo agora o mundo com a nitidez que só a submissão passiva proporciona. Reconheço finalmente que espírito crítico e desconfiança do poder são inimigos da sociedade e, claro, do bem maior: a saúde pública. Envergonhado pelo que fui, orgulhoso pelo que me tornei, aqui apresento o meu ato de contrição. Agora, é hora de ir atrás dos não-vacinados. Deixo-vos a minha garantia: sob a minha supervisão, não haverá alma assintomática não-certificada que ouse colocar os pés fora de casa.



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