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segunda-feira, 2 de agosto de 2021

Três décadas de liberalização económica

 


» Uma análise indiana que pode ser estendida ao resto do mundo

Prabhat Patnaik [*]




Fazem trinta anos desde a adopção pela Índia das políticas neoliberais, em 1991 – embora alguns datem a sua introdução ainda mais cedo, em 1985. Os jornais estão cheios de avaliações dos impactos destas políticas sobre a economia e muitos liberalizadores, desde Manmohan Singh até por aí abaixo, subitamente tornaram-se visíveis a louvarem a sua obra. Na melhor das hipóteses eles lamentam que os benefícios da liberalização tenham sido desigualmente distribuídos. Manmohan Singh disse recentemente que "uma vida saudável e dignificada para todos os indianos deve ser priorizada". Alguém pode perguntar o que é que o impediu de fazer isso quando estava ao leme do Estado.

Uma tal avaliação, de que a liberalização promoveu muito a taxa de crescimento do PIB e portanto melhorou a vida de quase todo indiano, levantando vastas massas das garras da pobreza absoluta, apesar de ter aumentado a desigualdade de rendimento e riqueza no país, seria aceite habitualmente não só pelos devotos da liberalização como também pelos seus críticos, incluindo mesmo alguns na esquerda. As diferenças, aparentemente, referem-se apenas ao peso que cada um dá à igualdade em relação ao crescimento. Os liberalizadores argumentariam mesmo que os malefícios da desigualdade desapareceriam se a taxa de crescimento na economia reanimasse e aumentasse, pois os "espíritos animais" dos capitalistas que determinam quanto investimento fazem têm de ser promovidos. E o governo Modi afirmaria que promover os "espíritos animais" dos capitalistas é precisamente o que está a fazer através das suas políticas anti-laborais e anti-campesinato, algumas das quais o Congresso, apesar de não ter uma análise diferente, curiosamente se opõe. Assim, a alegação das instituições de Bretton Woods de que existe um amplo "consenso" sobre as políticas neoliberais entre os principais partidos políticos parece também estender-se à avaliação dos seus efeitos na economia ao longo das últimas três décadas.

Contudo, toda esta percepção é errada devido a pelo menos duas razões. A primeira, vê o sector capitalista da economia como sendo mais ou menos independente, destacado do resto da economia, cujo principal efeito sobre o seu ambiente circundante é simplesmente atrair cada vez mais trabalho do mesmo – e o lamento é que não tenha feito isso suficientemente. Na realidade, contudo, a acumulação dentro do sector capitalista invariavelmente choca-se com mundo exterior existente de múltiplas formas. Ele atrai não só trabalho do mundo ao mundo exterior a si, o que numa economia com reservas maciça de trabalho é uma coisa boa, como também terra e outros recursos incluindo recursos orçamentais (exemplo: subsídios a capitalistas para promoverem os seus "espíritos animais" ocorrem a expensas de subsídios para a agricultura camponesa que tradicionalmente tem contribuído para a sua viabilidade). E o crescimento do sector capitalista também puxa a procura para longe dos sectores tradicionais.

Portanto, a acumulação de capital invariavelmente mina a economia de pequena produção circundante (um processo a que Marx chamou de "acumulação primitiva de capital"), mesmo quando retira pouco trabalho da mesma. Ao contrário do que diz a teoria económica burguesa convencional, nomeadamente que uma taxa rápida de acumulação de capital simplesmente absorverá as reservas de trabalho, reduzindo dessa forma o desemprego e a pobreza (e se assim não fizer então a panaceia está numa taxa de acumulação de capital ainda mais rápida), tal acumulação mina a economia circundante de pequenos produtores sem absorver muito trabalho. Isto significa um aumento do desemprego e da pobreza. E se a taxa de acumulação de capital for aumentada, então isso apenas piora esta tendência ao invés de aliviá-la.

Isto é de facto exactamente o que tem acontecido, reflectindo-se mesmo nas próprias estatísticas do governo. O enfraquecimento da agricultura camponesa sob o regime neoliberal, o qual lhe retirou toda a protecção dada durante o período dirigista anterior, é óbvio. Manifesta-se na queda da lucratividade da agricultura camponesa; manifesta-se também no facto de entre os censos de 1991 e 2011, o número de "cultivadores" (tal como definido pelo censo) ter diminuído em 15 milhões; e é dolorosamente evidente pelos suicídios de mais de 300 mil agricultores durante as últimas três décadas.

Não surpreendentemente, a magnitude da pobreza, no sentido mais elementar do acesso às calorias, e não apenas da desigualdade, aumentou desde o início das reformas neoliberais. A percentagem de pessoas com acesso a menos de 2200 calorias por pessoa por dia na Índia rural (que era a referência oficial original para a pobreza rural), aumentou de 58 em 1993-94 para 68 em 2011-12 (ambos os anos do inquérito de grandes amostras do NSS ). Os números correspondentes para a Índia urbana, onde a referência original era de 2100 calorias por pessoa por dia, são respectivamente 57 e 65.

As questões tornaram-se ainda piores desde 2011-12. O inquérito por amostragem de 2017-18 do NSS revelou números tão surpreendentes que o governo Modi decidiu suprimi-los por completo e também descontinuar estes inquéritos na sua forma antiga. No entanto, algumas informações escaparam antes de os resultados serem suprimidos e estes mostram que entre 2011-12 e 2017-18, a despesa de consumo per capita em todos os itens em termos reais caiu 9% na Índia rural. Nada como isto havia alguma vez acontecido em tempos normais (ou seja, exceptuando grandes falhas nas colheitas) na Índia independente.

O assalto à agricultura camponesa sob o neoliberalismo está realmente a intensificar-se. A sua manifestação mais recente, sob a forma de três leis agrícolas destinadas a promover os interesses do grande capital à custa dos camponeses, é tão prejudicial que trouxe grandes massas camponesas dos estados vizinhos para Deli, exigindo a sua retirada.

Deixem-me agora passar à segunda falha na percepção neoliberal. O investimento dos capitalistas não depende apenas de alguma coisa intangível chamada "espíritos animais", mas está enraizado em cálculos tangíveis que fazem sobre as perspectivas de crescimento nos mercados. É verdade que a resposta a tais cálculos dentro de limites pode depender do seu estado de optimismo ou pessimismo (o qual é captado pela expressão "espíritos animais"), mas claramente se o mercado não estiver a crescer ou se o crescimento abrandar, então o investimento dos capitalistas sofre, não importa quantos subsídios lhes sejam concedidos.

Agora, o neoliberalismo ampliou a desigualdade de rendimentos por toda a parte, incluindo a Índia: de acordo com Piketty e Chancel, a percentagem dos 1% de topo da população no rendimento nacional total era de apenas 6% em 1982, mas aumentou para 22% em 2013-14 (o valor mais alto desde há quase um século). Como os trabalhadores consomem mais dos seus rendimentos do que os ricos, uma ampliação da desigualdade de rendimentos equivale a uma transferência de rendimentos do primeiro para o últimos, o que tem o efeito de reduzir o consumo e, consequentemente, a procura agregada, a qual por sua vez reduz o investimento e o crescimento. Em suma, o neoliberalismo é afligido por uma tendência estagnacionista, a qual, para o mundo capitalista como um todo, havia sido mantida sob controle por "bolhas" na economia dos EUA, primeiro a "bolha dotcom" nos anos 90 e depois a "bolha habitacional" na primeira década deste século. Com o colapso da "bolha habitacional", a economia mundial entrou numa crise prolongada que não tem solução sob o neoliberalismo (que se opõe à intervenção do Estado na "gestão da procura").

Isto afectou também a economia indiana onde, mesmo antes da pandemia, a taxa de desemprego em 2019 era a mais alta já verificada durante 45 anos. Istto tem duas espécies de efeitos sobre o povo: uma, que agravou consideravelmente as condições de vida dos trabalhadores, mesmo antes da pandemia, os quais já estavam a ser prejudicados pelo perseguição do neoliberalismo. A recente queda drástica do emprego e do consumo sublinha este facto.

Em segundo lugar, a crise levou ao cimentar de uma aliança entre o grande capital e grupos fascistas Hindutva, os quais apoiam o governo Modi. Uma tal aliança não é específica da Índia. Em períodos de crise, o grande capital promove e financia a ascensão política de grupos fascistas com os quais forma uma aliança. Ele assim o faz como um meio de alterar o discurso, destinado a difamar o "outro", a fim de distrair o povo da sua difícil situação económica. Se bem que tais grupos no poder cumpram as ordens do grande capital, eles derivam a sua força política não de qualquer solução económica para a crise que ofereçam mas sim de afastar a atenção para longe do âmbito económico.

O neoliberalismo, em suma, embora esmagasse os trabalhadores mesmo quando experimentava um crescimento elevado, quando entrou em crise aumentou o esmagamento e anunciou um arranjo que é inimigo das premissas básicas da constituição indiana, tais como democracia, laicidade e igualdade social.

Os devotos da liberalização não percebem que, embora possa ter aumentado a taxa de crescimento do PIB, ela tem piorado as condições dos trabalhadores e minado os princípios fundadores sobre os quais uma nação indiana moderna pode ser construída.

01/Agosto/2021

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2021/0801_pd/three-decades-economic-liberalisation

Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/

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