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terça-feira, 10 de agosto de 2021

Otelo Saraiva de Carvalho e o espírito do 25 de Abril (PARTE 2)

 

Otelo Saraiva de Carvalho e o espírito do 25 de Abril (2/3). Por Júlio Marques Mota

 

Coimbra, em 4 de Agosto de 2021

 

Nota de editor:

Em virtude da extensão do presente texto, o mesmo será publicado em três partes


 

2ª parte – A Eurotragédia

A partir daqui, do problema do fraco desenvolvimento das forças produtivas, iremos pois responder à sua questão sobre o que é o espírito de Abril mas para lhe responder tanto o podemos fazer centrando-nos em 74 como em 2021, pois do ponto de vista relativo aos outros países da OCDE não estaremos longe de Abril de 74, e as aspirações dos portugueses de hoje não serão muitas diferentes das que constituiriam o espírito do 25 de Abril. Sendo assim, este trabalho fica-nos facilitado com a utilização da obra notável de Ashoka Mody, EuroTragedy, publicada em 2018 e por muitos considerado o livro do ano na sua área. Uma obra que iremos seguir longamente [2] nesta resposta ao meu amigo ML.

Com efeito, sobre Portugal pois é dele que estamos a falar, relata-nos este ex-alto funcionário do FMI, do Banco Mundial e atualmente professor em Princeton:

“Ao longo da crise, as desigualdades económicas aumentaram à medida que a percentagem de trabalhadores que dependem de empregos involuntários a tempo parcial ou que trabalham com contratos temporários aumentou acentuadamente. Estas tendências têm tido o seu maior peso nos jovens portugueses. O indicador mais cruel desta realidade é o aumento dramático da taxa de pobreza de “risco persistente” entre portugueses entre os 18 e os 24 anos de idade, de 10% em 2007 para mais de 20% em 2015. Durante o mesmo período, a pobreza persistente diminuiu entre aqueles com mais de sessenta e cinco anos.

Na revisão de 2017, a OCDE observou que apenas cerca de 45 por cento da população portuguesa entre os 25 e 64 anos de idade completou os últimos anos do ensino secundário, uma taxa inferior à de todos os membros da OCDE com exceção do México e da Turquia que lhe ficam atrás.  Na Polónia e na República Checa, por exemplo, a taxa de conclusão é de 90 por cento. As crianças portuguesas repetem frequentemente as disciplinas e abandonam prematuramente a escola. Como podem elas competir com os trabalhadores da Europa de Leste que têm muito melhor formação e auferem salários muito mais baixos? O sistema de formação profissional de Portugal é fragmentado e ineficaz. Tal como em Itália, a baixa escolaridade tem persistido de uma geração para outra. E os cortes nas despesas públicas impostos pela austeridade inverteram mesmo os modestos esforços feitos antes da crise para ajudar a economia a sair da sua armadilha de baixo crescimento. Sem o capital humano necessário, as empresas portuguesas fazem pouca investigação e há poucas ligações com investigadores universitários. Num mundo que está a correr para adotar tecnologias cada vez mais sofisticadas, Portugal tem ficado ainda mais para trás.” Fim de citação.

Portugal é membro da União Europeia e é no contexto da zona euro que devemos encarar o que serão as aspirações das populações da zona euro e as dos portugueses em particular. Com a análise destas é fácil perceber que muitas delas, em 2021, são as mesmas que em 1974. Deixo ao leitor o cuidado de chegar a esta conclusão. Sendo assim e centrados nas aspirações em volta do desenvolvimento das forças produtivas, olhemos para a Europa como um todo, para a França e Portugal como casos específicos da realidade europeia e depois descreva-se o que poderão ser os sonhos dos europeus em geral e dos portugueses, em particular. Para o efeito, sobre esta temática vejamos o que nos diz Ashoka Mody na obra acima citada e que aqui seguimos de muito perto.

 

“1. Desenvolvimento das Forças produtivas na União Europeia

O problema era que embora a criação do euro tenha dado um novo impulso aos bancos da zona euro, pouco fez para impulsionar o crescimento da produtividade, que permaneceu fraco. Como Robert Gordon, da Northwestern University, observou, a Europa “ficou parada na estação quando o comboio da produtividade da América partiu . Entre 1995 e o início dos anos 2000, as empresas americanas empregaram mais trabalhadores e utilizaram avanços técnicos para os tornar mais produtivos.  Mas as empresas europeias falharam essa janela. Nem a produtividade alemã e francesa tinha conseguido acompanhar os progressos dos EUA. A Itália e a Espanha tiveram um desempenho ainda pior.

As autoridades europeias tinham reconhecido que o ritmo lento do crescimento da produtividade era um problema surgido após a introdução do euro. Na cimeira de Lisboa de 23-24 de Março de 2000, os líderes da zona euro tinham-se comprometido ostensivamente a “reforçar” a inovação e “modernizar” a educação e assim tornar a economia da Europa “a economia baseada no conhecimento mais competitiva e dinâmica do mundo”. Eles enumeraram 102 objetivos específicos a alcançar pelas autoridades nacionais até 2010, com o objetivo de aumentar o crescimento do PIB em um ponto percentual por ano.

Seguiu-se uma enxurrada de atividade. Pouco depois realizou-se o “Competitiveness Council, Directorates for Enterprises and Information Society, Innovation platforms, Growth Plans, and High- Level Working Groups“. Estes comités e processos cerimoniais tornaram-se fins em si mesmos. Como poderia ter dito um antropólogo, Clifford Geertz, as autoridades europeias fizeram outra “viragem  involuntária”. Os economistas Guido Tabellini e Charles Wyplosz criticaram os objetivos quantitativos ao estilo soviético estabelecidos no âmbito da Agenda de Lisboa. Comentaram com pesar: “Os governos querem mostrar que fizeram algo, e no entanto nada de substancial é mexido. Parece uma piada, mas não é”. Olivier Blanchard, do MIT, descreveu a fanfarronada de Lisboa – fazer da UE a economia mais dinâmica e competitiva do mundo- como uma ideia largamente vazia e patética” .

Havia uma outra possibilidade. Talvez, como os promotores do euro tinham prometido, a utilização da moeda única desencadeie decisões empresariais que venham a proporcionar um grande ganho de produtividade. O economista Andrew Rose, da Universidade da Califórnia, Berkeley, acreditava que tais ganhos eram prováveis. Ele previu que “a moeda única ” iria induzir mais comércio dentro da zona euro, o que, disse ele, iria aumentar a concorrência e forçar os empresários a melhorarem o seu desempenho. Usando técnicas econométricas modernas, questionou-se sobre como é que os países em anteriores uniões monetárias se tinham saído bem. Extrapolando essa experiência anterior, Rose estimou que o euro poderia duplicar, ou mesmo triplicar, o comércio entre os estados-membros. Rose não tem a certeza de porque é que uma moeda única aumentaria o comércio em tão grandes quantidades… Reconheceu que a redução dos custos de transação e a diminuição da volatilidade das taxas de câmbio não poderiam gerar dividendos tão grandes . Com pouco mais a dizer, disse: “É mais sensato concluir que simplesmente não sabemos porque é que uma moeda comum parece facilitar tanto o comércio. No entanto, o euro, Rose insistiu duas vezes nisso- no inicio do seu artigo e novamente no final – iria proporcionar “benefícios indiscutíveis” .

Rose captou a atenção de muita gente. Em relatórios para os governos britânico e sueco, repetiu a alegação de que, ao adotarem a moeda única, os seus países poderiam também duplicar ou mesmo triplicar o comércio com os países da zona euro.  Rose dizia às duas nações europeias que se mantinham a defender a sua política interna que estariam a perder grandes benefícios económicos ao não aderirem à zona euro .

Ben Bernanke, um professor de economia da Universidade de Princeton até 2002, quando foi nomeado governador da Reserva Federal, era cético em relação às conclusões defendidas por Rose. Em Fevereiro de 2004, Bernanke indicou que vários países, incluindo a Alemanha, estavam a reduzir – e não a aumentar – a sua quota de comércio com outros membros da zona euro. A quota do comércio dentro da zona euro, disse ele, tinha ficado “notavelmente abaixo” do pico atingido nos primeiros anos do século XX. A quota de comércio da Itália tinha diminuído ainda mais, mas a Alemanha e os franceses estavam também a exportar menos para a zona euro.

As oportunidades crescentes de aumento do comércio situavam-se fora da Europa, especialmente com os dinâmicos Estados Unidos e com as economias de mercado emergentes… Por conseguinte, a conclusão mais razoável foi que o euro não teve qualquer efeito sobre os padrões comerciais. O estudo econométrico mais relevante é publicado somente muito mais tarde. Esse estudo dizia que os países que aderiram à zona euro tinham desde há muito tempo laços fortes entre si, e uma vez que esses laços antigos fossem levados em conta, a influência da zona euro nas trocas comerciais era essencialmente nula; e mesmo mais tarde, Rose, com o coautor Reuven Glick da Reserva Federal de S. Francisco ofereceu um mea culpa alegando que era errado ter extrapolado a partir de dados sobre outras uniões monetárias e que as conclusões de benefícios comerciais resultantes de uma moeda única não se aplicavam à zona euro.

Não houve soluções mágicas para o problema de produtividade da Europa. Gordon recomendou uma revisão dos sistemas educativos e de I&D e esforços para atrair estrangeiros qualificados, desenvolver a criação de fundos de investimento privado e promover o capital de risco . Um relatório escrito por importantes economistas europeus tinha chegado à mesma conclusão: para colmatar a lacuna existente face aos Estados Unidos, as prioridades tinham de manter “mais reconversões no aparelho produtivo, maior ligação com o financiamento pelos mercados, e maior investimento em ambos, I&D e ensino superior”.  Estas eram tarefas importantes e urgentes. As fronteiras da investigação e das competências educativas estavam a expandir-se rapidamente.  As nações asiáticas, até muito recentemente com salários baixos, estavam a investir vastos recursos na educação, e os seus empresários estavam a dar grandes passos no desenvolvimento das suas capacidades tecnológicas. Na Europa, as instituições e a coordenação da UE tinham pouco a oferecer. Cada nação membro tinha de fazer urgentemente os seus próprios trabalhos de casa e embarcar no que estava destinado a ser uma viagem de longo curso.

 

2. Desenvolvimento das forças produtivas em França e Portugal

Cada economia precisa de mecanismos para lidar com a adversidade. A taxa de câmbio de um país é um desses mecanismos. Mas os países da zona euro não têm as suas próprias moedas para poderem utilizar a desvalorização como um instrumento de política económica face a uma recessão ou crise. A desvalorização ajuda a estimular as exportações, que criam empregos na economia nacional.

Ao mesmo tempo que todos os países europeus deixaram de ter as suas moedas nacionais, os estados-membros do sul têm a desvantagem adicional de também sofrerem de um baixo crescimento da produtividade. Na adversidade de uma crise ou recessão o crescimento robusto da produtividade pode funcionar como um mecanismo de sobrevivência, porque gera confiança entre os mutuários de que o crescimento económico em breve será retomado apesar da adversidade e, por conseguinte, eles serão capazes de pagar as suas dívidas. Em contraste, quando o crescimento da produtividade é baixo recessões e crises colocam devedores e os seus credores sob grande tensão financeira. Essas tensões reduzem o volume da despesa e enfraquecem a confiança no futuro. As condições como as da crise persistem e a recuperação demora muito mais tempo. No contexto de recessão e de crise, as autoridades da zona euro preferem políticas monetárias e orçamentais rígidas o que teve um impacto mais severo no Sul. A política restritiva não deixou aos países do sul nenhuma opção realista de crescimento para sair da crise, e o período prolongado de recessão ou de crise, reduziu ainda mais o seu potencial de crescimento.

Nas primeiras discussões sobre a adesão à zona euro, muitos questionaram o sentido de incluir a Grécia, Itália, Portugal, e a Espanha na zona da moeda única. A decisão de avançar e incluí-los na zona euro baseou-se na crença de que estes países tomariam medidas políticas ativas para reforçar a sua economia de modo a poderem resistir melhor aos choques económicos . A crença otimista revelou-se infundada. Uma vez dentro da zona euro, a sua economia teve um desempenho ainda pior do que em anos anteriores. Fundamentalmente, durante grande parte da primeira década do euro, as suas taxas de crescimento da produtividade foram próximas de zero e, em grandes períodos de tempo foram mesmo negativas. Este fraco desempenho da produtividade refletia sistemas educativos e de I&D fracos e, consequentemente, a incapacidade de produzir uma gama de produtos de alta qualidade necessários para competir com nações avançadas nos mercados internacionais .

Mesmo o crescimento francês da produtividade total dos fatores nos primeiros dez anos da zona euro – entre 1999 e 2008 – foi próximo de zero. Com as taxas francesas de I&D a ultrapassar um pouco as de outros países do sul, o sistema educativo francês ficou atrás do de outras economias avançadas; a produção tecnológica, medida pelas patentes, definhou.

As causas mais profundas do baixo crescimento da produtividade da zona euro meridional residiam em deficiências institucionais endémicas. Nos casos grego e italiano, as deficiências manifestaram-se em corrupção generalizada, que sugou energias criativas. Em todos os países, a fraqueza institucional era evidente nos incentivos significativos para que as pessoas trabalhassem na “economia subterrânea”. Assim, as pessoas incapazes de encontrar emprego remunerado na economia formal trabalhavam à margem da lei para ganhar a vida. De modo intrigante, a França, em consonância com a recente manifestação do seu declínio, foi um dos poucos países europeus onde a percentagem da economia subterrânea aumentou após 2015.

 

A França desloca-se decisivamente para o Sul

A França mudou do norte para o sul da zona euro desde o início da crise global: acentuou a divisão económica e política “europeia” e tornou cada vez menos provável que a Europa pudesse reagrupar-se como uma força económica e política coerente.

Talvez a França devesse estar sempre no sul e o seu estatuto anterior a norte fosse uma ilusão. Essa ilusão tinha convenientemente mantido viva outra ficção: que a Alemanha e a França, agindo em conjunto como iguais, impulsionariam a integração europeia. No entanto, durante muito tempo, a França teve uma economia fraca e uma sociedade dividida. O historiador económico Kindleberger argumentou já em 1978 que a França tinha perdido vitalidade económica, os “interesses instalados” influentes fizeram exigências privilegiadas ao orçamento do governo francês. À medida que o leque de tais interesses instalados se expandia – lóbi agrícola, trabalhadores nas empresas públicas, funcionários públicos, exigência de melhores reformas, os ricos (que têm acesso aos benefícios fiscais para a manutenção de castelos, coleções de vinho, obras de arte) – criou-se progressivamente uma montanha  de exigências sobre  apoios financeiros do governo, o que veio a justificar-se como necessário para manter o consenso social.

As despesas governamentais ultrapassaram a marca dos 50% do PIB no início dos anos 80 e subiram para o nível extraordinário de 56% do PIB até 2017. O aumento das despesas não conseguiu construir um consenso social. Em vez disso, à maneira dos medicamentos que melhoram o desempenho, impulsionaram o crescimento do PIB francês durante grande parte da década de 1980 e novamente durante grande parte da primeira década do euro.  Este crescimento impulsionado pelos estímulos orçamentais ajudou a disfarçar o constante declínio da competitividade internacional da França.

A crise financeira expôs a incapacidade de um maior número de empresas francesas de competir com concorrentes internacionais. Sem a ajuda de um franco desvalorizado, como nos anos anteriores ao euro, as empresas enfrentaram lucros decrescentes e travaram o investimento. O rácio da dívida do governo atingiu cerca de 100% do PIB e o problema crónico do desemprego juvenil em França agravou-se.

Observando o aumento alarmante da dívida do governo francês, a par da deterioração da competitividade internacional da economia francesa, Jean-Claude Juncker observou: “Temos um problema real com a França. A França gasta demasiado e gasta-o em coisas erradas”.

Os franceses ainda fazem algumas coisas espantosamente bem. A França, tal como a Itália, é e continuará a ser um líder mundial em bens de luxo de alta costura. Os altos funcionários franceses formados pelas instituições de elite do país, são uma presença deslumbrante em instituições internacionais e fóruns de discussão. Mas a economia francesa tem demasiados “elos fracos”.

O mais crítico dos elos fracos da França é um sistema educacional incapaz de preparar um grande número dos seus cidadãos para uma vida honrada. No Programa de Avaliação de Estudantes Internacionais (PISA), os testes conduzidos pelos trinta e cinco membros das escolas francesas da OCDE apresentam um atraso especial em ciências e matemática. Os resultados dos testes dos estudantes franceses são consideravelmente mais baixos do que nos países económicos do norte e muito aquém do conjunto das principais nações asiáticas. Estas pontuações relativamente baixas do PISA francês refletem quotas particularmente elevadas de estudantes “de baixo desempenho”. Estudos mostram que tal fraqueza na qualidade do ensino escolar diminui as perspetivas de crescimento.

Mais chocantemente, a França faz pior do que todos os países da OCDE na resposta às necessidades dos estudantes com desvantagens económicas, sociais e culturais.  Após a publicação dos resultados do PISA em Dezembro de 2016, Annie Genevard, que fez parte da comissão de assuntos culturais e educação do parlamento francês e que em 2009 recebeu o mais alto prémio civil da França, a Legion d’Honneur, tuitou que “A França mantém o triste título de campeã das desigualdades sociais na escola”.

O sistema universitário francês perpetua estas desigualdades ao promover uma elite social em vez de contribuir para o crescimento e a igualdade de oportunidades. As elites vão para as “grandes écoles” que recebem um financiamento desproporcionadamente elevado, enquanto todas os outros vão para as universidades subfinanciadas e sobrelotadas.

As consequências têm sido graves. As crianças de pais com um elevado nível de educação e de rendimentos têm tido as melhores oportunidades educacionais, e num mundo globalizado com rápidas mudanças tecnológicas, foram as que mais ganharam com o crescente “prémio de qualificação” da educação. Por conseguinte, aqueles que se encontram nos escalões superiores da economia com as suas competências mais elevadas tiveram a oportunidade de subir cada vez mais depressa, enquanto o sistema educativo pouco fez para tornar a subida mais fácil para aqueles que se encontram nos escalões inferiores.  Inevitavelmente, as desigualdades têm aumentado nas últimas gerações.  As crianças francesas nascidas em circunstâncias menos favoráveis ainda têm as menores oportunidades de progresso económico e social e carregam o medo legítimo de que podem ficar em pior situação que os seus pais . A tendência da juventude francesa para abandonar o mercado de trabalho e deixar de se formar é apenas uma manifestação deste disfuncionamento social. O sistema político francês criou vastos direitos fiscais ostensivamente, para promover a coesão social. Mas o fracasso em aumentar a igualdade nas oportunidades educativas enraizou a fragmentação social.

 

Portugal

Em resumo, parecia que Portugal iria emergir mais forte da sua crise. Em Setembro de 2012, o Ministro das Finanças alemão Schäuble elogiou o governo português por implementar reformas “dolorosas” com um “ritmo mais rápido do que o esperado”. Em Novembro, Schäuble ficou ainda mais entusiasmado. “Portugal está a fazer um trabalho extraordinário numa situação difícil”, disse aos repórteres. “Portugal está no caminho certo. Portugal continuará no caminho certo, não tenho dúvidas quanto a isso”.

A retórica otimista e a pura retórica  estão no ADN de qualquer bom decisor político. Mas, como vimos ao longo deste livro, as autoridades da zona euro confiam numa medida invulgar, a de confiar mais  nas palavras do que nos atos. Constrangidas pela sua incapacidade de agir, nunca perdem a esperança de que as palavras sejam a tarefa que só os atos podem acompanhar.  Uma vez que é impossível tirar um país de um buraco económico e financeiro impondo austeridade orçamental e reformas estruturais, os dirigentes europeus declaram repetidamente o sucesso na esperança de que os mercados financeiros acenem com uma nova aurora.

A realidade era que a pesada austeridade estava a ter o seu preço em Portugal. Enquanto Schäuble tentava falar sobre a economia portuguesa, os impostos mais elevados e os cortes nos pagamentos da segurança social tinham diminuído os rendimentos disponíveis de muitas famílias. Os mutuários estavam a falhar no pagamento das suas dívidas, e os bancos enfrentavam uma “perspetiva sombria” . Em Julho de 2013, o Ministro das Finanças Vitor Gaspar demitiu-se, dizendo que a sua reiterada incapacidade de cumprir as promessas tinha “minado” a sua “credibilidade como ministro das finanças” .

Contudo, em menos de um ano, em Maio de 2014, quando o governo português decidiu que era altura de pôr fim ao “resgate”, disse novamente Schäuble,” a implementação do programa Steadfast permitiu a Portugal colocar a sua economia novamente no bom caminho, colocar as finanças públicas num caminho de sustentabilidade, e reduzir os desequilíbrios que se tinham vindo a acumular antes da crise. Ele acrescentou que a decisão portuguesa de sair do plano de ajuda foi uma prova de que “a estratégia europeia de resolução da crise está a funcionar”. Schäuble apostou e elogiou o sucesso português na esperança de poder lançar a culpa do crescente desastre da Grécia sobre o governo grego e não nas políticas económicas europeias.

Para além de Schäuble, a maioria dos analistas foi cautelosa quanto ao caminho de Portugal para o futuro. Na sua primeira “revisão pós-programa”, em Novembro de 2014, o FMI escreveu: “Portugal ainda enfrenta um desafio premente de crescimento”.

Sobre o mercado de trabalho, o desemprego permanece a níveis historicamente sem precedentes, e o subinvestimento está a corroer o volume de capital disponível do país . O investimento foi baixo porque as empresas portuguesas, tendo-se enchido de dívidas antes do início da crise, ainda estavam sob um pesado fardo de dívida. O FMI conseguiu efetivamente atingir uma nota de esperança, prevendo que a taxa de crescimento anual do PIB aumentaria de cerca de 1 para 1,5%, e que o rácio da dívida pública diminuiria constantemente do seu nível de 130 por cento do PIB. Mesmo essa cintilação de otimismo esfumou-se. Em Setembro de 2016, o FMI disse que a breve recuperação económica estava “a esgotar o vapor”, o sistema bancário estava “atormentado pela baixa rentabilidade e pelo aumento das créditos mal parados [ou não rentáveis] e as contas públicas estavam sob grande pressão. O crescimento do PIB não tinha aumentado; o peso da dívida tinha-se mantido praticamente inalterado.

Quando o PIB português subiu no primeiro trimestre de 2017, Schäuble viu uma vez mais o vislumbre de um renascimento da economia portuguesa. Desta vez, descreveu o Ministro das Finanças português Mário Centeno como “o Ronald do Ecofin”, comparando Centeno com a estrela do futebol português.

Talvez o otimismo de Schäuble acabe por se revelar presciente. Entretanto, Portugal tem um trajeto traiçoeiro para percorrer. Apesar dos progressos, os bancos portugueses têm um elevado volume de créditos não rentáveis, apenas os bancos italianos enfrentam um volume de créditos não rentável mais severo. A rentabilidade dos bancos portugueses é lenta, a sua qualidade de ativos é má, e o capital que detêm pode revelar-se insuficiente para a próxima crise. Em 2017, o PIB per capita português estava aproximadamente ao mesmo nível que em 2001. Desde 2011, o nível – e não apenas a taxa de crescimento – da produtividade total dos fatores diminuiu. Por outras palavras, a economia portuguesa está a utilizar os recursos de forma menos eficiente do que no passado. Assim, num círculo vicioso, o crescimento anémico manteve os encargos da dívida elevados e os bancos fracos, o que manteve o crescimento baixo.

Ao longo da crise, as desigualdades económicas aumentaram à medida que a percentagem de trabalhadores que dependem de empregos involuntários a tempo parcial ou que trabalham com contratos temporários aumentou acentuadamente. Estas tendências têm tido o seu maior peso nos jovens portugueses. O indicador mais cruel desta realidade é o aumento dramático da taxa de pobreza de “risco persistente” entre portugueses entre os 18 e os 24 anos de idade, de 10% em 2007 para mais de 20% em 2015. Durante o mesmo período, a pobreza persistente diminuiu entre aqueles com mais de sessenta e cinco anos .

Na revisão de 2017, a OCDE observou que apenas cerca de 45 por cento da população portuguesa entre os 25 e 64 anos de idade completou os últimos anos do ensino secundário, uma taxa inferior à de todos os membros da OCDE com exceção do México e da Turquia que lhe ficam atrás. Na Polónia e na República Checa, por exemplo, a taxa de conclusão é de 90 por cento. As crianças portuguesas repetem frequentemente as disciplinas  e abandonam prematuramente a escola. Como podem elas competir com os trabalhadores da Europa de Leste  que têm muito melhor formação  e auferem salários muito mais baixos? O sistema de formação profissional de Portugal é fragmentado e ineficaz. Tal como em Itália, a baixa escolaridade tem persistido de uma geração para outra. E os cortes nas despesas públicas impostos pela austeridade inverteram mesmo os modestos esforços feitos antes da crise para ajudar a economia a sair da sua baixa armadilha de crescimento. Sem o capital humano necessário, as empresas portuguesas fazem pouca investigação e há poucas ligações com investigadores universitários. Num mundo que está a correr para adotar tecnologias cada vez mais sofisticadas, Portugal tem ficado ainda mais para trás.

 

(continua)

 

Notas

[2] Por facilidade de leitura, e porque não são relevantes na economia do texto, retirámos as referências de notas de pé de página contidas no texto de Ashoka Mody.



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