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quarta-feira, 5 de maio de 2021

1º de Maio de 1962: Relatos de uma antifascista de 14 anos

 


Não, este povo não é um povo de carneiros. Quem viu hoje estes milhares de operários revoltados, gritando pela melhoria das suas miseráveis condições de vida, expondo-se, conscientemente, a ser morto, ferido ou preso, nunca poderá continuar com tal ideia. Por Helena Cabeçadas.acebook
Helena Cabeçadas, com 14 anos, e o seu pai.











Hoje, dia 1 de Maio, dia do trabalhador.

De há muito que estavam marcadas para este dia manifestações de protesto em todo o país, contra a miséria e a opressão a que estava submetido o nosso povo. Não queria, de forma alguma, deixar de ir. Estava farta da minha inactividade, queria participar em algo mais do que nos plenários e reuniões dos estudantes, de caracter revolucionário, é verdade, mas nada mais do que palavras.

Hoje era diferente. A tropa estava toda de prevenção e sabia-se que a polícia tinha ordem para atirar a matar. O ministro da saúde mandara colocar novas equipas de médicos em todos os postos, o que era significativo. Além disso, no Norte do país tinha havido pancadaria da grossa, já ontem. Dizia-se que em Lisboa era provável que não houvesse nada, que era um povo de carneiros, que se amedrontariam com todos estes preparativos…

Queria ver com os meus próprios olhos. Consegui convencer a mana Graça a ir, vontade não lhe faltava, mas tinha receio, embora não o dissesse. Ainda pedimos ao pai para nos levar com ele, pois percebemos que se estava a preparar para ir, mas não nos consentiu. Sabendo que a mãe adoptaria a mesma atitude, pisgámo-nos sem nada dizer.  Passámos por casa da Magú e ela acompanhou-nos, entusiasmada. É uma tipa às direitas, a Magú.

Um pouco antes da Praça do Comércio o autocarro parou, o trânsito estava interrompido. Descemos e dirigimo-nos para lá. Um rugido imenso chegou até nós, soltado por centenas e centenas de bocas. Corremos para o Terreiro do Paço, em sentido contrário ao da massa humana, que fugia. Nessa maré encontrámos um conhecido da Magú, dos plenários de Direito, que nos advertiu que a polícia carregava sobre a multidão, sendo uma loucura avançar e levou-nos com ele, acompanhando agora a onda. Metemos por uma das ruas da Baixa, sempre em correria.  Encontrando uma loja aberta, para lá nos enfiámos de roldão. Através dos vidros da loja observei a massa humana que corria, operários na quase totalidade, rostos duros, expressões revoltadas. A polícia meteu por outra rua e saímos da loja. Deparou-se-nos logo um homem com a cara toda esfacelada pelas coronhadas dos polícias, completamente inundado em sangue vermelho e brilhante. Toda a coragem da Graça se volatilizou, só queria entrar numa loja, ir para casa. Felizmente a Magú e o amigo mantinham-se animados e, sem basófia, posso dizer que não senti medo. Senti, sim, um entusiasmo enorme, uma vontade imensa de acompanhar a multidão revoltada, embora soubesse que, com ela, estava o perigo.

Em correrias loucas, para um lado e para outro, enfiando-nos em lojas ou escadas, tropeçando nuns e noutros, lá nos íamos dirigindo para o Rossio, local marcado da concentração. A certa altura, surge-nos, vinda do Rossio, uma multidão a correr em sentido contrário ao nosso: a polícia carregava do lado de lá também, passavam homens ensanguentados. Pessoas desvairadas que, apanhadas de surpresa, a fazer as suas compras, não sabiam para onde se virar. Seguimos para os lados do elevador de Santa Justa. Grupos compactos de jovens rapazes, na sua maioria operários e alguns estudantes, passavam gritando a plenos pulmões: “Assassinos! Assassinos!”.

Não sei bem como, empurrados por todos os lados, encontrámo-nos no Rossio. Aí a polícia era imensa, de metralhadoras em punho, em carros monstruosos azuis, lançando sobre a multidão gases lacrimogéneos, rajadas de metralhadoras e jactos violentos de água a alta pressão e de uma substância azul, desconhecida, recentemente importada da Alemanha e cujos efeitos se desconheciam ainda.

Enfiámo-nos numa tabacaria, juntamente com umas dezenas de pessoas. O dono imediatamente abre uma porta e grita-nos que subamos. Não era necessário dizê-lo, aliás; investimos todos pela porta, subindo desordenadamente pela escada acima. A escuridão era completa, a Graça a cada passo tropeçava e eu empurrava-a com quantas forças tinha. Atrás ouviam-se os rugidos dos polícias que invadiam a tabacaria. A Graça cai e fica ali estendida, e eu sobre ela, sofrendo ambas as pisadelas da multidão que subia, aterrorizada, e que, sendo a escuridão quase absoluta, nem sequer nos via. Ouvi, lá em baixo, as rajadas de metralhadora, as pessoas a tropeçarem em nós, que ficávamos para trás. Senti então o medo invadir-me, avassalador. Lá nos conseguimos, num esforço supremo, levantar e continuámos a subir às cegas, andares e andares, até que chegámos ao último, perante uma porta fechada! Senti a Graça quase a desmaiar. Sangue viscoso e quente pingava-me da mão. Todos estavam silenciosos, só se ouviam as respirações ofegantes.

Lá para baixo o barulho diminuíra, sinal de que a polícia se afastava. Um suspiro de alívio distendeu todos os peitos e, a pouco e pouco, fomos descendo. Dentro da tabacaria era como se um vendaval tivesse passado: homens, revistas, jornais, paredes, estavam azuis, em virtude da tal substância azul. As ruas estavam encharcadas e as paredes dos prédios estavam azuis. A polícia tinha recuado e tudo parecia já mais calmo. O amigo da Magú, que nos tinha acompanhado sempre, disse-nos que era melhor irmos agora para casa, pois a situação já estava calma. Inesperadamente, nova arremetida brutal da polícia. Em pânico, enfiamo-nos novamente na providencial tabacaria, cujo dono era um tipo bem simpático. Desta vez a polícia avançou para a Praça da Figueira, onde se notava maior ajuntamento e aliviou a nossa banda. Ouviam-se apitos de ambulâncias. Via-se gente agarrada pela polícia, com uma pistola apontada à cabeça.

Sorrateiramente, a Magú a tudo tirava fotografias, arriscando-se a ser presa. O Rossio encontrava-se agora relativamente calmo e o nosso cavalheiro despediu-se. Nós seguimos em frente, com a intenção de tomar o autocarro para casa. Mal o rapaz se afastou senti-me logo um bocado desamparada e fugiu-me parte da coragem, acontecendo o mesmo com a Graça e a Magú. Com a sua simpatia e solicitude, o rapaz transmitia-nos uma sensação de protecção e segurança, que agora nos faltava. E para qualquer dos lados que quiséssemos avançar só havia polícia. Desorientadas, ficámos para ali a girar sem saber para onde ir. As lojas, àquela hora, já estavam fechadas. Um polícia enorme, com uma fisionomia bestial, berrou-nos: “Fora daqui, imediatamente”. “É isso mesmo que pretendemos” respondemos delicadamente. Voltou para nós as suas ventas brutas, um olhar odiento e gritou, no auge da fúria. “Fora daqui, senão…” Deu-me uma vontade enorme de o insultar, mas contive-me.

Enfiámo-nos na primeira tasca que encontrámos aberta, já cheia de malta. Não víamos maneira de nos safar dali. Àquela hora já os pais deviam ter verificado que nem a Magú se encontrava na nossa casa, nem nós em casa da Magú e deviam estar ultra aflitos. Lembrámo-nos então que talvez o pai estivesse no Café “Nicola” ou no “Portugal”, ali mesmo no Rossio. De mãos dadas, cheias de cagufa, atravessámos as ruas, ocupadas somente por polícia e alcançámos por fim o passeio, já pejado de gente. Atingidos os cafés, não encontrámos pai nenhum. Os autocarros e os eléctricos não andavam e os táxis também não. Já estávamos desesperadas quando nos lembrámos do Metro. A agitação continuava agora um pouco mais para trás e conseguimos alcançar os Restauradores e a entrada do Metro, onde nos enfiámos, finalmente, sãs e salvas.

Aí, pus em evidência o meu dedo em sangue (uns golpezitos insignificantes, mas que deitavam bastante sangue), o que suscitou olhares de admiração sobre a minha pessoa. Perguntaram-me logo dois moços, todos excitados, se tinha sido ferida pela polícia, ao que respondi que sim, claro.

É verdade, imaginem o que havia de me acontecer no meio desta confusão? As “piroleiras”[1] , nem mais nem menos! Por isso, e também pelas emoções, é claro, tive a certa altura um medo danado de desmaiar, pois me senti um pavor. Lá consegui dominar-me, nem sei bem como.

Mas foi um dia maravilhoso, este dia, cheio de emoção.

Não, este povo não é um povo de carneiros. Quem viu hoje estes milhares de operários revoltados, gritando pela melhoria das suas miseráveis condições de vida, expondo-se, conscientemente, a ser morto, ferido ou preso, nunca poderá continuar com tal ideia.

Há, é verdade, uma força bruta que procura esmagar o nosso povo. Mas é um povo que sabe revoltar-se contra os que o oprimem!

 

Lisboa, 1 de Maio de 1962
Helena Cabeçadas

 

[1] Designação que nós, adolescentes, dávamos ao “período”/menstruação



www.esquerda.net

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