As negociações estavam encaminhadas: no início deste mês o Governo autorizava que a TAP adiantasse mais três milhões de euros à sua participada em apuros Groundforce, para ajudar a pagar os salários de Fevereiro. Durante uma semana a TAP e o ministério liderado pelo ministro Pedro Nuno Santos tinham negociado com Alfredo Casimiro, o accionista maioritário da Groundforce: a troco do dinheiro, Casimiro daria as suas ações na empresa como garantia, cedência que começou por recusar, mas que depois admitiu publicamente estar pronto a fazer.
"Self made man" e negociador instável: Alfredo Casimiro está em guerra com o Governo e a TAP.
Só que quando os advogados da TAP receberam a cópia do contrato assinado pelo empresário, já perto da meia-noite do último dia do prazo acordado, viram que faltava algo: não havia referência ao penhor das ações. A reação foi de incredulidade total.
Era já madrugada quando Alfredo Casimiro confirmou, ao telefone, que não podia cumprir porque, afinal, as ações não eram suas - estavam dadas como penhor ao Montepio, o banco que lhe emprestou dinheiro para comprar a Groundforce.
Dias depois, a gravação ilegal e divulgação de uma das reuniões negociais com o ministro - que apresentou uma queixa-crime contra o empresário - faria ruir o que restava da relação com a TAP e o Governo. A empresa de 2.400 trabalhadores que gere o handling dos aeroportos - o processamento dos passageiros, bagagens, carga, entre outros - tem a maior parte dos salários de Fevereiro em atraso e está num impasse.
O Governo quer tirar o controlo das mãos de Alfredo Casimiro, com um aumento de capital de quase 7 milhões de euros, através da TAP. Casimiro afirmou ao "ECO" que tem capacidade para acompanhar esse aumento de capital desde que feito "nos termos da lei", uma referência vaga que abre a dúvida sobre a sua real intenção. Até ao fecho desta edição, não tinha respondido à proposta da TAP.
Todos os sinais contrariam a tese de que Alfredo Casimiro consiga acompanhar o aumento de capital. Um exemplo são as rendas em atraso nos escritórios. O dono do grupo Urbanos arrendou em 2012 através da sua holding pessoal, a Gepasa, escritórios no imponente edifício da estação de comboios do Rossio, em Lisboa.A renda mensal próxima dos cinco mil euros deixou, contudo, de ser paga há mais de um ano e meio.
A IP, sabe a SÁBADO, enviou uma carta registada com aviso de recepção ao inquilino em Fevereiro, na qual ameaça com o despejo. A IP limita-se a referir que o contrato está em vigor e que actua "pelos meios que lhe estão disponíveis quando exista eventual atraso" nas rendas. Fonte oficial de Alfredo Casimiro admite o atraso, "do qual resultou uma negociação que tem vindo a ser cumprida".
A fragilidade do império empresarial de Casimiro tem anos: a Urbanos, que cresceu de negócio de mudanças para um grupo de logística, está desde 2017 sob um plano especial de revitalização acordado com os credores (na altura de 44 milhões de euros), que incluem a banca e o Estado. A situação de ruptura foi conhecida em 2016, só quatro anos depois de o empresário ter entrado na Groundforce - uma compra que fez sem gastar dinheiro.
Comprar sem dinheiro
Como é que o dono da Urbanos chegou à Groundforce? Tudo começou num problema legal. A TAP tinha a maioria do capital da Groundforce (comprara em 2008 à banca a parte que fora da espanhola Globalia, com quem se detendera), posição que era ilegal: a Autoridade da Concorrência chumbou-a porque violava a directiva europeia de 1999, que impedia que uma operadora dominante tivesse mais de metade do principal operador de handling. A licença da Groundforce para operar terminava no final de 2011 e a empresa não podia concorrer à renovação sem o problema legal resolvido - ou seja, corria o risco de fechar. O concurso internacional para a venda da maioria do capital da Groundforce foi perdendo interessados, um grupo espanhol que ficou esticou em demasia a corda nas negociações e a TAP decidiu repescar propostas: a da Urbanos, que tinha concorrido só ao segmento de carga, e da Swisspor.
Os suíços rejeitaram alterar a proposta que a TAP achava desvantajosa e a companhia aérea escolheu a Urbanos, que "mostrou-se disponível para ir ao encontro das pretensões da TAP em termos económico-financeiros" e que dava "flexibilidade" para poder comprar toda a empresa num processo de "privatização total", lê-se na explicação escrita dada à tutela dos transportes.
Ao contrário dos outros operadores, apurou a SÁBADO, a Urbanos praticamente não fez a chamada "due dilligence", ou seja, a análise profunda das contas da empresa que ia comprar. Mesmo em cima do prazo, a TAP pediu autorização ao Governo PSD/CDS para vender à Urbanos e teve-a: o preço mínimo seria de 3 milhões de euros e o máximo de 6 milhões, dependendo de uma percentagem de 20% a aplicar sobre os resultados operacionais em 2012 e em 2013. Com base nos resultados da empresa, o preço terá rondado 4,5 milhões de euros. Três anos antes, a TAP pagara 31,6 milhões de euros pela participação.
Alfredo Casimiro entra em 2012 sem pôr um cêntimo: as suas ações ficam dadas como penhor à TAP, que cria uma conta dedicada (escrow) na qual ficariam os dividendos que Casimiro recebesse da Groundforce e que seriam para pagar a sua entrada. Na gíria isto é "pagar com o pêlo do cão". Mas a história não termina aqui. O acordo de venda contemplava o pagamento desde a data da assinatura até Maio de 2014 de um "fee [comissão] anual de gestão" pela Groundforce à Urbanos de 1,5% da faturação da Groundforce - este valor era calculado e pago mensalmente. A TAP confirma à SÁBADO que acabou por ser pago até Março de 2015 o que terá representado, segundo cálculos da SÁBADO com base nos resultados da Groundforce, pagamentos de pelo menos 4,7 milhões de euros (excluindo o IVA) - ou seja, um valor idêntico ou mesmo superior ao preço que a Urbanos pagou para entrar na empresa.
Centenas de trabalhadores da Groundforce protestaram esta semana em frente ao Palácio de Belém, em Lisboa.
A SÁBADO pediu à TAP que precisasse quanto tinha pago ao todo à Urbanos, mas a companhia não respondeu a esse ponto em concreto. Alfredo Casimiro respondeu à SÁBADO que "foi por imposição da Autoridade da Concorrência que se criou um incentivo para garantir uma gestão independente da TAP". Contudo, a decisão em que a Autoridade da Concorrência não se opõe à compra apenas refere que o comprador deve "ser independente, quer jurídica, quer economicamente, da TAP, e deter a capacidade e o incentivo para desenvolver o negócio a alienar de uma forma viável e competitiva".
A SÁBADO sabe que a administração da Groundforce foi informada pelo banco que processava o pagamento da comissão de gestão, que os valores que chegavam a 150 mil euros (e incluíam IVA) eram por vezes levantados em dinheiro ao balcão - a administração da empresa limitava-se a confirmar que o valor era devido ao abrigo de um contrato. Fonte oficial do empresário diz que a "informação é falsa e descabida".
O preço tinha prazo de pagamento, segundo os termos referidos pela TAP no documento enviado ao Governo: Maio de 2014. Alfredo Casimiro recorreu a uma garantia do Montepio, na altura liderado pelo seu amigo Tomás Correia, para pagar à TAP - foi o banco que, depois de conhecido o preço final, pôs o dinheiro, com o penhor das ações a ficar então no Montepio. O pagamento só foi saldado na totalidade, contudo, em Março de 2018, indica fonte oficial da TAP à SÁBADO - ou seja, cerca de seis anos depois da entrada do empresário na Groundforce.
A imprensa noticiou em 2015 que uma denúncia anónima levou o Ministério Público a investigar se o preço tinha sido efectivamente pago. A Procuradoria-Geral da República respondeu à SÁBADO que o inquérito foi arquivado em 2016. O empresário diz à SÁBADO que a Pasogal, o veículo que criou para comprar a Groundforce, pagou "nos valores e prazos acordados". A TAP confirma que a Pasogal pagou tudo o que devia.
Despesas estranhas
Alfredo Casimiro nasceu em 1966 numa família de classe média baixa que vivia em Odivelas, na periferia de Lisboa. Numa entrevista ao Público em 2010 surge um retrato do "self made man" com infância austera em bens materiais e uma ascensão posterior através da iniciativa: foi aluno da Casa Pia (onde ficou amigo de Guilhermino Rodrigues, que liderou a Groundforce entre 2013 e 2017), passou pelas Testemunhas de Jeová por influência da mãe, arrancou com a empresa de mudanças Urbanos em 1990, enquanto tinha um emprego numa empresa de Palmela.
Na entrevista - numa "casa imensa, de linhas despojadas, no country club de Belas", que mantém - afirma que foi no final dos anos 90 que percebeu que estava rico, tendo comprado um Mercedes descapotável como presente a si mesmo. Nas décadas seguintes forjaria relações boas com banqueiros - do Montepio ao BES de Ricardo Salgado - e com gestores como Nuno Vasconcelos e Rafael Mora, da malograda Ongoing. As suas boas relações com a maçonaria são comentadas nos bastidores da côrte lisboeta. André Luiz Gomes, advogado de Joe Berardo, é seu advogado.
Fontes que privaram com o empresário nos últimos anos afirmam que é uma pessoa dura e agressiva no trato.
A sua entrada na Groundforce, num sector que não conhecia, trouxe algumas particularidades. Depois de anos de prejuízos, a Groundforce sob nova gestão reviu o acordo de empresa com os sindicatos, baixando custos, e beneficiou do aumento do turismo: entre 2013 e 2019 o volume de negócios subiu 48% e a empresa acumulou lucros de 28,7 milhões de euros.
A Groundforce beneficiou também do atraso enorme na atribuição de licenças (ver caixa), que significou que a empresa esteve sete anos (a duração de uma licença) a operar sem ter de vencer um concurso de renovação da licença. Mesmo com todo este contexto, com custos de financiamento historicamente baixos e com acesso a medidas como o lay-off, a Groundforce chega a 2021 a chumbar no teste de sobrevivência imposto pela pandemia.
Nos últimos oito anos saíram vários administradores da empresa e, segundo apurou a SÁBADO, houve tensão a espaços por questões ligadas à gestão. Tornou-se frequente a apresentação por parte do empresário de despesas que não tinham a ver com a atividade da empresa - como pareceres jurídicos, gastos com viagens e outros - que motivaram protesto e declarações de voto em ata de alguns administradores (nomeados pela TAP), diz à SÁBADO fonte conhecedora do processo. Fonte oficial do empresário nega a apresentação de despesas indevidas, dizendo que não estão referidas em ata, e lembra que Alfredo Casimiro "abdicou até à data de hoje da remuneração a que tinha direito" como presidente do conselho de administração.
Texto publicado na edição impressa da SÁBADO hoje nas bancas, alterado com informação enviada pela TAP e pela Procuradoria-Geral da República na quarta-feira 18 de Março, depois do fecho da edição.
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