José Cardoso Pereira e António Joaquim Lopes recriam um jogo de alquerque em Monsaraz.
Reutilizados em monumentos ou dispersos na calçada, há evidências por todo o lado dos jogos que encantaram as sucessivas civilizações.
Fotografias: Hugo Marques
Alea jacta est ou, traduzido do latim, os dados estão lançados. Esta frase foi proferida em 49 a.C. por Júlio César nas margens do Rubicão. Como César, gerações ao longo da história acreditaram que a sorte pode mudar o rumo dos acontecimentos tal como quando lançamos os dados num jogo. É possível que o jogo exista desde as primeiras sociedades neolíticas.
Sem certezas absolutas, alguns achados arqueológicos sugerem essa possibilidade, nomeadamente fragmentos de tabuleiros encontrados na Jordânia e no Irão. Investigações recentes revelaram maior prudência, atribuindo uma possível génese do jogo ao mundo copta e, consequentemente atribuindo-lhe uma datação bastante mais recente, possivelmente entre 300 e 600 depois de Cristo. A Mesopotâmia e a Fenícia são outros possíveis berços para outros jogos de tabuleiro, tal como a civilização romana.
Em 1999, em Montemor-o-Novo, a autarquia local organizou uma sessão de reconstituição de jogos tradicionais pela população sénior da cidade. Num tabuleiro de alquerque, vários jogadores praticaram o Jogo da Raposa e das Galinhas, durante o qual uma raposa tenta capturar as aves, ao passo que estas procuram encurralar a predadora. Alguns profissionais de ludoteca e historiadores na audiência não deixaram de sorrir. A cena poderia ter lugar na Antiguidade.
O alquerque (ou alguergue) é um dos jogos mais antigos que se conhecem. Praticava-se no Egipto e tornou-se popular no Norte de África.
Foi talvez trazido para a Península Ibérica pelos muçulmanos e aqui ganhou raízes. Afonso X, o Sábio, dedicou-lhe vasta reflexão quando, em 1283, mandou escrever o Livro de Jogos.
Hoje, especialistas em jogos de tabuleiro encontram-no nos contextos mais díspares, do Afeganistão ao Sri Lanka, das Ilhas Britânicas à Noruega. Vem à memória a reflexão de um dos grandes investigadores desta área, Roger Caillois: «A estabilidade dos jogos é notável.
Os impérios e as instituições desaparecem, os jogos ficam, com as mesmas regras e, por vezes, com as mesmas peças.»
Ignorada durante várias décadas, a relação das culturas humanas com o ludismo vem ganhando força em Portugal nos últimos vinte anos por força dos trabalhos de investigação de uma pequena comunidade de historiadores. De norte a sul, quando se começou a fazer um levantamento rigoroso dos tabuleiros de jogo gravados em pedra ou em suporte cerâmico, rapidamente se constatou a riqueza desse material. Muitos estão escondidos à vista de todos, assim se saiba o que procurar.
Lídia Fernandes é a coordenadora do Museu de Lisboa – Teatro Romano e investiga o tema dos tabuleiros de jogo. Organiza anualmente um roteiro na capital sobre estes registos.
Enquanto muitos observam o céu, esta arqueóloga especializou-se em olhar para o solo ou para as paredes dos monumentos.
Cada parede, cada degrau, podem esconder mais um elemento dessa velha narrativa.
A Igreja do Menino Deus, no bairro lisboeta de Alfama, é um sítio perfeito para começar um roteiro. Construída em 1711, tem acesso limitado ao público, mas o que nos interessa hoje é o exterior – mais concretamente os degraus do lado sul de acesso à porta de entrada.
Num espaço ínfimo, encontram-se quatro tabuleiros de jogo, correspondentes ao alquerque de doze e, num caso, ao alquerque de três, ou três em linha. Porquê ali?
A interpretação deste tipo de registo, quase sempre afastado de evidências cronológicas que ajudem a balizá-lo no tempo, é uma tarefa inglória. Naturalmente, a gravação a estilete tem de ser posterior à data de construção do monumento, mas isso permite apenas concluir que as inscrições foram produzidas depois de 1711. Em alguns casos, o tabuleiro sobrepõe-se a inscrições (como sucede com uma estela epigráfica da colecção do Museu Lisboa – Palácio Pimenta), o que permite também considerar que nunca poderia ter sido anterior à mesma. A partir daí, entramos no jogo das conjecturas.
O átrio de entrada de uma igreja é o espaço de congregação da população antes e depois do serviço religioso. Ali se juntam os fiéis e é natural que, após a missa, alguns permanecessem no local, desanuviando a mente e usando a imaginação para testar as possibilidades do alquerque. Enquanto o fotógrafo regista a inscrição, uma freira observa-o à distância, com alguma timidez. Aproxima-se a medo e, após perceber que o motivo de interesse daquele homem debruçado sobre um degrau de calcário é o jogo ali desenhado, confidencia com alegria que na meninice, no Sabugal, o alquerque era uma das suas brincadeiras favoritas. Os anos passam, mas os jogos ficam!
Leite de Vasconcelos, pioneiro da arqueologia e da etnografia em Portugal, interessou-se pelos tabuleiros de jogo que foi encontrando de norte a sul do país no final do século XIX. Cedo intuiu as dificuldades desta área de investigação, registando: «Uns considerarão as covinhas como meros ornatos, outros como receptáculos do sangue de vítimas, como cartas geográficas ou astronómicas, como relógios de sol, como mesas de jogo; tudo o que à imaginação humana aprouve!»
E, no entanto, de escavação em escavação e de intervenção de restauro em intervenção de restauro, arqueológos e historiadores foram esbarrando com esta realidade. No Castelo de São Jorge, surgiram tabuleiros do alquerque e tabuleiros modernos de futebol. Na fachada lateral do Templo Romano de Évora, Lídia Fernandes atribuiu cronologia romana para um tabuleiro ali identificado. Salete da Ponte documentou igualmente tabuleiros que emergiram na cidade romana de Conímbriga, provando a popularidade dos jogos lúdicos na Antiguidade.
“O mesmo tabuleiro pode ser jogado ao longo do tempo, permanecendo em uso por várias gerações”, diz Lídia Fernandes. Só na cidade de Lisboa foram identificados 21 tabuleiros de jogo na zona antiga, distribuídos entre o claustro da Sé, o Palácio Penafiel, a Igreja do Menino Deus e outros lugares. No parapeito da antiga prisão do Castelo de Vila Viçosa, encontraram-se igualmente oito tabuleiros de jogo, tal como no Mosteiro de Santa Maria do Olival, em Guimarães, nos dois claustros do Convento de Cristo em Tomar, na Domus Municipalis de Bragança ou na Igreja da Senhora do Soveral, em Borba.
Alguns contam histórias sugestivas. Decerto que o tabuleiro do Templo Romano de Évora não foi criado para ser jogado na vertical, tal como hoje está. É provável que a sua idealização remonte à época de estaleiro do monumento e a um momento de lazer entre operários que trataram depois de estucar por cima do seu atrevimento. Noutros contextos de maior clausura, a narrativa é igualmente sugestiva. No Mosteiro de Santa Maria do Olival, em Guimarães, os oito tabuleiros nos corredores do claustro permitem um vislumbre do quotidiano da comunidade religiosa. “Não se trata de alguém de fora praticar aquele passatempo. É certamente uma actividade comum, desempenhada nas horas livres no mosteiro”, comenta Lídia Fernandes.
Estas palavras acorrem à mente na escadaria da Igreja de Nossa Senhora da Lagoa, em Monsaraz. Ali, a pedido da National Geographic, dois homens com longa experiência de vida predispõem-se a simular uma partida de alquerque tal como ele se jogava na sua infância. Com um sorriso, antes da partida, confidenciam que aproveitavam as ausências do padre local para poderem jogar sem atiçar a ira do sacerdote, que considerava uma blasfémia um jogo tão próximo do adro da igreja.
“Os jogos são um instrumento de relações sociais e de interacções entre pessoas, num tempo em que a socialização é posta em causa pelo mundo digital”, conclui Lídia Fernandes. Talvez o regresso ao universo destes passatempos lúdicos seja um pequeno contributo para a libertação dos algoritmos que comandam as nossas vidas.
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