quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Reflexões sobre violência revolucionária

 












Por Warley Nunes

PODER POPULAR – MG

A sociedade burguesa nasceu jorrando sangue e lama de seus poros (Marx).
Dizem violento o rio que quando transborda tudo inunda, mas não dizem que é violenta as margens que o oprimem (Bertold Brecht).

Com a revolta popular deflagrada na cidade de Minneápolis (EUA) após o assassinato cruel pela polícia do americano George Floyd, o tema da violência em protestos voltou a ganhar destaque nos noticiários. Os analistas dos principais veículos da mídia hegemónica se esforçam para tentar criminalizar as ações dos manifestantes. O presidente dos EUA Donald Trump acaba de editar uma medida que considera a reação ANTIFA como grupo terrorista, já as hordas fascistas da Ku Klux Klan e os “cidadãos de bem” seguem livres marchando com seus capuzes brancos e suas tochas ameaçando a vida de todos aqueles por eles considerados inimigos. Eis a essência da democracia burguesa, que alguns, mesmo no campo do marxismo, definiram como um valor universal. Nesse sentido, refletir sobre o papel da violência como uma forma legítima de autodefesa e de reação dos explorados e oprimidos contra a violência do estado e das milícias fascistas se faz necessário, pois, ao que tudo indica, estamos entrando numa quadra histórica em que se intensifica ainda mais o acirramento das lutas de classes.

Desde Maquiavel temos ciência de que a política se funda no uso da força e que o poder das armas é decisivo na resolução dos conflitos sociais. Ao contrário do que pensam os ideólogos liberais, o ordenamento social não se estrutura em um mítico pacto social, ou no habermasiano “agir comunicativo baseado no entendimento racional”. A ordem burguesa e suas relações de produção e propriedade se sustentam pela violência sistemática dos aparatos repressores do Estado sobre os trabalhadores, pelo despotismo nos locais de trabalho e pelo consentimento conquistado a partir da disseminação da ideologia dominante por um conjunto de aparelhos privados de hegemonia que cooptam os setores subalternos para o bloco burguês.

Todavia, não são só os apologistas da ordem que condenam as ações radicais realizadas pelo movimento dos trabalhadores. 

Quem não se lembra, nas jornadas de junho de 2013, dos pacifistas, que entoavam a reacionária palavra de ordem do “sem violência”, enquanto os manifestantes eram massacrados pela polícia. 

Desse modo, há que se considerar que, sempre que explosões sociais radicais emergem, a esquerda reformista tenta quebrar o radicalismo das ações adestrando a luta aos limites da ordem. É o estereótipo da manifestação pacífica e ordeira. 

O centrismo de hoje vê nas ações radicais da esquerda um prelúdio do golpe de Estado. Nessa estranha lógica, a passividade da esquerda gera por consequência a passividade da extrema-direita: ledo engano. Marx nos disse que, na conjuntura que sucedeu a derrota da revolução de 1848 na França, a palavra golpe não saía dos noticiários e dos pronunciamentos das forças sociais em presença, mas quando o golpe bonapartista aconteceu ninguém percebeu.

Para Marx a pequena-burguesia tenta quebrar o radicalismo da luta proletária amoldando-a aos limites das regras democráticas. 

Vejamos no que consiste a especificidade da política social-democrata: reivindicavam-se instituições republicanas democráticas, não como meio de suprimir dois extremos, o capital e o trabalho assalariado, mas como meio de atenuar a sua contradição e transformá-la em harmonia. Quaisquer que sejam as medidas propostas para alcançar esse propósito, por mais que ele seja ornado com concepções mais ou menos revolucionárias, o teor permanece o mesmo. Esse teor é a modificação da sociedade pela via democrática, desde que seja uma modificação dentro dos limites da pequena-burguesia [1].

O objetivo último da social-democracia é transformar a sociedade burguesa em algo suportável, atenuar os conflitos de classe em vez de se pôr a tentar resolvê-los. Portanto, qualquer ação que extrapole os limites das lutas democráticas é por eles rechaçada como extremismo.

Em contextos de convulsões sociais que podem evoluir para uma situação revolucionária (crise das cúpulas, aumento da miséria das massas, os de cima não conseguem mais se manter no poder e os debaixo não conseguem mais viver como antes), intensas mobilizações dos de baixo fazem a velha ordem sacudir. 

Nós, os comunistas, devemos compreender historicamente que as táticas violentas de luta são instrumentos legítimos e necessários de ação das massas, resultado de uma sociedade atravessada pela luta de classes. Marx, na famosa Mensagem ao Comitê Central da Liga dos Comunistas, apontava: Bem longe de coibir os assim chamados excessos, os exemplos da vingança popular contra indivíduos ou prédios públicos odiados que suscitam apenas lembranças odiosas, deve-se não só tolerar esses exemplos, mas também assumir pessoalmente a liderança da ação” [2]. Vemos aqui que Marx orienta as vanguardas dos trabalhadores a assumir a liderança destas ações ditas extremas.

Sob tal ótica, Marx nos disse que a violência revolucionária é um meio de encurtar o nascimento da nova sociedade. “A carnificina inútil desde as jornadas de junho e outubro, a enfadonha festa de sacrifício desde fevereiro e março, o canibalismo da própria contrarrevolução convencerão o povo de que só há um meio para encurtar, simplificar, concentrar as terríveis dores da agonia da velha sociedade e as sangrentas dores do nascimento da nova sociedade, só um meio — a violência revolucionária” [3]. Portanto, como nos faz parecer a interpretação de Marx: a violência é a parteira que conduz ao nascimento do novo, não constituindo um fim em si mesmo, ou seja, a violência revolucionária é um momento no qual o proletariado concentra suas ações visando defender-se da contrarrevolução na exata medida em que faz o processo avançar.

Contudo, Marx não é um apologista da violência pela violência, como alguns grupos sectários de esquerda pensam. Sabemos que as armas da crítica não substituem a crítica feita com as armas, todavia essa não é a única via utilizada em uma revolução, pois, uma revolução, para ter a chance de derrotar a contrarrevolução, tem de combinar ações de massas, acúmulo de lutas institucionais, e essas têm de se conformar em uma dualidade de poderes, isto é, em um poder autônomo dos debaixo que, mediante a insurreição popular, derrube o poder burguês. 

Não se conhece na história uma revolução que venceu seus inimigos de classe utilizando-se exclusivamente de meios pacíficos. Como descreve Engels: Uma revolução é certamente a coisa mais autoritária que se possa imaginar; é o ato pelo qual uma parte da população impõe a sua vontade à outra por meio das espingardas, das baionetas e dos canhões, meios autoritários como poucos; e o partido vitorioso, se não quer ser combatido em vão, deve manter o seu poder pelo medo que as suas armas inspiram aos reacionários [4]. Necessariamente, a situação levará as classes em luta ao uso da força, pois, a guerra civil é a continuidade das lutas de classe por outros meios.

O que aprendemos com as recentes revoltas populares é que essas começam de forma espontânea, são imprevisíveis, mas de repente irrompem no palco da história abalando o edifício social. Marx se referiu às revoluções como uma toupeira que fica no subsolo escavando e, quando menos se imagina, a sociedade desaba. As insurreições são fruto do acúmulo de opressões às quais as massas estão submetidas, e o segredo de toda mudança substancial no jogo de forças se dá quando a vanguarda revolucionária em presença combina ação espontânea das massas com direção consciente.

Uma situação revolucionária pressupõe a relação recíproca entre condições objetivas e subjetivas, como afirma Lenin. As objetivas são dadas independentemente da vontade das forças em presença e são condicionadas pela decomposição da velha ordem, já as subjetivas dependem da organização da vanguarda, da preparação dos planos táticos e sua vinculação com o objetivo estratégico. A despeito do culto contemporâneo do espontaneísmo e das ações de cunho autonomistas, afirmamos que, sem direção consciente e revolucionária, o movimento não chega até últimas consequências e corre o risco de se perder na tática-processo, não indo além das reivindicações imediatas das massas [5].

REFERÊNCIAS

[1] MARX, Karl. O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. Boitempo, 2011.

[2] MARX e ENGELS. Revolução e contra-revolução na Alemanha. Boitempo, 2010.

[3] MARX, Karl. Vitória da Contra-Revolução em Viena. São Paulo: PUC SP Revista Margem, 2014.

[4] ENGELS, Friedrich. Sobre a autoridade. 2014. Disponível em: <http://www.hist-socialismo.com/docs/Sobre_a_autoridade_F_%20Engels_1873.pdf>. Acesso, jun. 2020.

[5] Sobre o culto fetichista do espontaneísmo e do autonomismo destinaremos um próximo texto. Pois, foge aos objetivos aqui abordados.

Revisão feita por Yan Victor.


pcb.org.br

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