quinta-feira, 29 de outubro de 2020

25 de Abril: a revolução que não foi assim tão branda



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Tornou-se um lugar-comum descrever o 25 de Abril de 1974 como uma revolução sui generis, sem derramamentos de sangue nem violências. O carácter pacífico dos acontecimentos revolucionários teve mesmo expressão simbólica nas flores postas por soldados e populares nos canos das espingardas que se mantiveram silenciosas durante todo o golpe militar. 

A imagem da "revolução dos cravos" correu mundo. Dois jornalistas espanhóis diriam que Portugal passou de "um lugar de escravos a uma pátria de cravos". Tratou-se de uma "branda revolução", observará, dez anos mais tarde, Willy Brandt.

O historiador Kenneth Maxwell afirmava ter sido "uma revolução asseada"; mas, cauteloso, não deixou também de avisar que "as flores murcham depressa". 

Nas páginas do suíço Le Courrier escrevia-se que "o golpe de Estado que ontem se viveu em Portugal não tem igual nos anais da história". A Time, por seu turno, falou num golpe "quase sem derramamento de sangue" e a Newsweek num "cavalheiresco golpe de Estado em Portugal", sublinhando que "mal se disparou um tiro". 

Pese a diferença da forma, o que diziam estas prestigiadas publicações norte-americanas pouco diferia do que escreveu, por essa altura, uma criança portuguesa de 11 anos, Custódio Joaquim da Silva, numa redacção intitulada "Como eu vejo o 25 de Abril":

"O 25 de Abril tem cravos vermelhos nas espingardas.
Não ouvi tiros.
Toda a gente estava contente.

Eu não quero que se acabe o 25 de Abril."

Porém, como todos os lugares-comuns, a ideia de uma revolução sem sangue só parcialmente é verdadeira. Sem falar nas mortes ocorridas durante o chamado PREC, o dia 25 de Abril é marcado pelo desaparecimento de cinco pessoas. 

Um dos mortos tinha 17 anos de idade. Chamava-se Fernando Carvalho Giesteira, era natural de Montalegre, empregado de mesa da boîte Cova da Onça, e vivia na Pensão Flor, ao Areeiro. Outro era José James Harteley Barneto, de 38 anos, casado, pai de quatro filhos, natural de Vendas Novas, escriturário do Grémio Nacional dos Industriais de Confeitaria, morador na Avenida João Branco Núncio, n.º 7, 1.º andar, na Flamenga. Faleceram ainda João Guilherme Rego Arruda, de 20 anos, natural dos Açores, estudante do segundo ano de Filosofia, morador na Avenida Casal Ribeiro, n.º 21, 5.º andar, e Fernando Luís Barreiros dos Reis, de 23 anos, natural de Lisboa, casado, soldado da 1.ª Companhia Disciplinar, em Penamacor, que se encontrava de férias na capital e que seria o único militar a morrer durante a revolução. Na manhã seguinte, as televisões filmaram o sangue espalhado no chão e as marcas de balas nos automóveis e, dias mais tarde, exibiram imagens dos funerais das vítimas, a que compareceram muitos cidadãos anónimos.

Houve ainda um outro morto, esse menos falado: tratava-se de um elemento da DGS, o servente António Lage, de 32 anos, que não exercia funções policiais. Foi baleado às 21h25 quando saía da sede da corporação e, provavelmente aterrorizado pelos populares, tentou fugir a correr. 

O servente Lage, que se encontrava a ser revistado pelos militares e procurou escapar num momento de pânico, foi o único "pide" a morrer. Ocupava o escalão mais baixo na estrutura hierárquica da Direcção-Geral de Segurança. Diz-se que a multidão impediu que fosse retirado do local pelos bombeiros, aos gritos de "Os pides morrem na rua!".

Os jovens manifestantes foram mortos cerca das 20h10 do dia 25 de Abril por balas disparadas a partir da sede da Direcção-Geral de Segurança, na Rua António Maria Cardoso, n.º 20, cantada em versos de Zeca Afonso: "Na Rua António Maria / da primaz instituição / vive a maior confraria / desta válida nação." Aos microfones do Rádio Clube Português, Júlio Isidro noticia que se registaram "incidentes" na Rua António Maria Cardoso pelas 20h30, tendo sido feridas algumas pessoas. "Aguarda-se a todo o tempo a intervenção das Forças Armadas", comentou Isidro, aproveitando para acrescentar que "estes incidentes vêm mais uma vez confirmar a necessidade de a população civil cumprir o pedido formulado pelo Movimento das Forças Armadas".

Corroborando o depoimento de Silva Pais à Comissão de Extinção da PIDE/DGS, em Maio de 1974, que também falara na ordem de disparar para o ar, Óscar Cardoso só não explica como é que os tiros da DGS, atirados para os céus de Lisboa, acabaram por matar dois civis que estavam na rua; não esconde, no entanto, que talvez "um ou outro agente, mais nervoso ou mais atemorizado com a situação, tenha atirado para baixo". O nervosismo desses agentes custaria a vida a quatro pessoas.

Às centenas, os populares iam acompanhando a queda do último bastião do regime, desrespeitando os repetidos apelos do Movimento das Forças Armadas para que permanecessem nas suas casas. Provavelmente, só um cidadão cumpriu as determinações do MFA e recolheu ao lar. Chamava-se Jorge Fernando Branco de Sampaio. Ao invés, Maria Filomena Mónica dirigiu-se de imediato ao local dos acontecimentos, na companhia de Vasco Pulido Valente. No Chiado encontrou rapazes envergando calças à boca de sino, com casacos de grandes abas, que abraçavam meninas de cabelos ao vento; uns e outros gritavam "Viva a liberdade". Junto à Paris em Lisboa, um soldado de arma em riste falava com um miúdo. 

Já perto de O Último Figurino, uma idosa, muito idosa, contemplava com espanto e surpresa um tanque estacionado na esquina da Rua Garrett. Ao princípio da tarde, Maria Filomena Mónica foi até à sede da PIDE mas, "ao contrário do que se passaria algumas horas depois, quando os polícias alvejaram a multidão, reinava a paz dos sepulcros". Recolheu então ao Gabinete de Investigações Sociais, onde foi informada pelo colega César Oliveira que a insurreição "era de esquerda". Antes de jantar, insistiu em passar por casa para, em homenagem aos capitães, calçar um par de botas.

Também Juvenal Esteves, famoso professor da Faculdade de Medicina que morava nas imediações do Chiado, foi no dia 25 ver as vistas da revolução. 

No Largo das Duas Igrejas deparou, estupefacto, com um casal de noivos e seus acompanhantes, à porta da Igreja da Encarnação, que se faziam fotografar a poucos metros de um blindado do Exército, como se nada fosse. Já em casa, ouviria as rajadas de tiros na António Maria Cardoso e, tempos depois, presenciou as actividades venatórias: 

"A "caça aos pides" durou alguns dias. Num princípio de anoitecer ao regressar a casa deparei com uma imensa multidão no Largo de Camões. Olhava fixamente para o telhado da Igreja do Loreto, profusamente iluminado por projectores. Constava que um pide se refugiara nos telhados. Encontrei um jovem colega a quem interroguei acerca da sua presença no momento. "Venho mostrar às minhas filhas o que será possivelmente um espectáculo único nas suas vidas!" 

Reobservei o panorama humano. Reinava intensa expectativa. Despedi-me pouco depois. Informaram-me posteriormente que, ao fim de longas horas de observação e pesquisa, a que a multidão assistiu firme, o pide não aparecera!"

Na manhã de 25, os clientes da Brasileira do Chiado estranharam a ausência de agentes da PIDE, habitualmente presentes no local em vigilância de oposicionistas. Cerca das 13 horas, vários manifestantes fizeram uma primeira e espontânea investida sobre a sede da DGS entoando o hino nacional e aos gritos de 

"Assa-ssi-nos! Assa-ssi-nos!", mas foram recebidos a tiros, que na altura provocaram cinco feridos. Na clandestinidade, Raimundo Narciso exorta a companheira, por telefone: "Assaltem a PIDE! Assaltem a PIDE! A PIDE é absolutamente essencial." Uma jovem comunista acerca-se do capitão Luz, que se mostrava preocupado com a existência de agentes da PIDE nos telhados, e declarou, decidida: 

"Somos quase duzentos, estamos armados e dispostos a ajudar-vos... disponha de nós." Luz pediu auxílio no controlo das coberturas dos edifícios, o que de imediato foi feito.

Por seu turno, os civis Pedro Coelho e João Barroso Soares avisaram Salgueiro Maia que era fundamental avançar sobre a António Maria Cardoso. Os relatos radiofónicos feitos na altura permitiam ouvir, entre tiros e a vozearia dos populares, gritos como "Há gajos da PIDE nos telhados!" O repórter que se encontrava no local confessaria, em dado momento, que tudo aparentava "um ar de opereta" e um militar do MFA, estacionado com as suas tropas no Largo da Misericórdia, teria o seguinte desabafo: 

"A nossa posição é um tanto ou quanto ridícula." Nos microfones da rádio, ouvem-se tiros e alguns civis dizem "a malta foi lá à PIDE", mas os agentes sitiados começaram por lançar um cão feroz sobre os assaltantes e acabaram a disparar sobre os bravos da António Maria Cardoso.

O temor da PIDE/DGS não era de todo injustificado. Sintomaticamente, já depois da rendição de Marcello Caetano, Spínola não assomou à janela do Quartel do Carmo, como reclamava a multidão, pois havia o receio de ser alvejado por um atirador furtivo da Direcção-Geral de Segurança. Não correra, às nove horas da manhã desse dia, o boato de que o general tinha sido preso? E não correria também o boato, de que a imprensa fez eco, de que no Chiado fora descoberta uma caixa armadilhada, ali deixada por agentes da DGS? Fora do domínio do boato e da ficção, um facto nem sempre referido: à saída do Quartel do Carmo, já depois da rendição de Caetano, o automóvel em que viajava Spínola foi apedrejado com violência e os estilhaços do vidro traseiro atingiram um dos passageiros, o tenente-coronel Dias de Lima, a crer no testemunho de outro dos passageiros dessa viatura, Carlos Alexandre de Morais, que atribuiu o incidente ao erro de alguns manifestantes, que julgaram que aí eram transportados, sob escolta, elementos da DGS.

Otelo Saraiva de Carvalho afirmou que a PIDE/DGS não era um alvo prioritário devido, em larga medida, ao facto de o MFA possuir poucas informações sobre ela. Num colóquio realizado por ocasião do 30.º aniversário do 25 de Abril confessou desconhecer sequer quais os meios de que a DGS dispunha: "Eu não sabia o que era a Legião, não sabia o que era a PIDE, a PSP ou a Guarda Nacional Republicana... O que valiam em termos de efectivos, de meios, de capacidade de intervenção, as forças que se oporiam às forças do Movimento." Os escassos elementos que Otelo possuía foram-lhe facultados pelo major Rosa Garoupa. Através de Silva Graça, recebeu ainda um tosco croquis do interior do Forte de Caxias desenhado por Jorge Sampaio, que lhe o fizera chegar "cheio de pânico e recomendações", na fase de preparação do golpe.

Além disso, a eliminação das missões às sedes da Legião Portuguesa, na Penha de França, e da PIDE/DGS, no Chiado, foi ditada, como relata Otelo, por imposição de Jaime Neves, que as considerava perigosas e só se dispunha a participar no golpe se tais acções não fossem incluídas na lista de prioridades. A explicação dada por Otelo Saraiva de Carvalho no seu livro Alvorada em Abril é, pois, substancialmente diferente da que apresentou logo a seguir ao 25 de Abril. Pura e simplesmente, o MFA não tinha os meios necessários para, além de derrubar o governo, atacar a António Maria Cardoso: "Não dispunha de forças capazes de se fraccionarem para o cumprimento da missão de Caxias, pelo que assumi o risco de não lançar o ataque quer ao Forte quer à sede da DGS na Rua António Maria Cardoso (...), pensando que, com a prisão dos elementos responsáveis do governo e do Presidente da República, à polícia política não restaria outro recurso senão a rendição total às forças do Movimento, não correndo os riscos desnecessários de uma eliminação física dos presos políticos. 

Ai deles se tal acontecesse!"Este erro de cálculo do estratega do 25 de Abril custaria a vida a quatro pessoas.

António Araújo, jurista e historiador, é autor de Matar o Salazar, o Atentado de 1937, Consciência de Situação ou Da Direita à Esquerda, e colabora regularmente no Diário de Notícias. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Morte à PIDE! A Queda da Polícia Política do Estado Novo
António Araújo
Tinta da China, 208 páginas


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