A pobreza não é um fenómeno da natureza nem uma inevitabilidade social. Desde que me recordo, todo o discurso político de todos os quadrantes assume como prioridade o combate à pobreza e jura dispor de programas capazes de a superar. Há alguns anos, a Assembleia da República aprovou mesmo uma Resolução, baseada numa proposta da Comissão Justiça e Paz, no sentido de que a pobreza seja considerada uma violação dos direitos humanos. Contudo, o que vemos é que os ricos estão cada vez mais ricos e os pobres são cada vez mais e cada vez mais pobres.
No final da passada semana, o país acordou com notícias que davam conta do aumento de furto de comida em supermercados, sinal de que a fome começa a atormentar o dia-a-dia de muitas famílias cujo baixo rendimento não lhes permite fazer face a uma inflação de começou a galopar e não lhes permite satisfazer a mais básica das necessidades humanas que é comer.
As estatísticas que vão sendo publicadas confirmam o aumento da pobreza a partir de 2019. Primeiro foi a pandemia, com todo o cortejo de despedimentos, de recurso ao lay-off ou de reduções salariais por sua causa, ou a seu pretexto. Agora, é o aumento da inflação provocada pelas sanções que os países da União Europeia decidiram impor à Rússia mas que, qual boomerang, afetam mais duramente os povos dos países que as impõem.
Importa reconhecer, por ser verdade, que os problemas da pobreza e das desigualdades sociais obscenas que nos afetam não nasceram com a pandemia nem com a guerra na Ucrânia. São muito anteriores. Se pensarmos dos últimos vinte anos, dado que seria muito fastidioso recuar até à fundação da nacionalidade, vemos que o nosso país oscilou entre períodos de recessão e períodos de crescimento anémico.
Se entre 2015 e 2019 se verificou uma sensível recuperação de rendimentos por parte de centenas de milhares de portugueses devido à fase da vida nacional que então teve lugar, é certo que essa recuperação, até por ter sido interrompida por vontade do PS, não conseguiu colmatar a perda de rendimentos que a maioria dos portugueses sofreu sobretudo a partir de 2002 e muito particularmente entre 2008 e 2015.
É dos livros que as desigualdades sociais são a marca de água do capitalismo. Enquanto sistema económico assente na contraposição entre o capital e o trabalho, entre quem detém os meios de produção e quem detém apenas a sua força de trabalho, a pobreza e as desigualdades são consequências naturais do funcionamento do mercado. Sendo o lucro das empresas a parte do salário não pago aos trabalhadores pelo que produzem, interessa ao patronato pagar os salários mais baixos que for possível para aumentar os seus lucros. Daí a necessidade de regular as relações de trabalho, dado que como se sabe, entre o forte e o fraco é a lei que liberta e a liberdade que oprime.
Em determinados momentos em que o liberalismo puro e duro se revelou económica e socialmente catastrófico, como no caso da crise de 1929, ou em que a luta dos trabalhadores obteve grandes conquistas sociais, como após a 2.ª Guerra Mundial, mesmo no quadro do capitalismo foi possível, por via da intervenção do Estado, adotar medidas redistributivas que melhoraram significativamente as condições de vida dos trabalhadores, através da consagração de direitos laborais, de sistemas públicos de segurança social e de direitos sociais fundamentais.
Todavia em Portugal, o “Estado Social” só começou a ser construído a meio da década de 70, com a Revolução de Abril. Trouxe consigo conquistas fundamentais no plano político, económico e social e conheceu também regressões. Quando o “estado social” começou a ser desmantelado na Europa a partir da “contrarrevolução” monetarista iniciada nos anos 80, as políticas de direita em Portugal seguiram esse caminho pela mão de Governos PSD/CDS, e PS.
A criação do Euro no final do Século XX, de acordo com os critérios impostos pela Alemanha, significou a imposição do neoliberalismo, não na ponta da baioneta, mas a toque de caixa dos mercados financeiros. Foram impostos critérios de “convergência” esmagadores para as economias mais débeis como a nossa e foi abolida a soberania dos Estados sobre a sua política económica, transferida para o Banco Central Europeu em Frankfurt, independente de qualquer controlo democrático, mas dependente do grande capital financeiro. Os Orçamentos dos Estados passaram ter de obter o visto de Bruxelas antes de serem submetidos aos parlamentos nacionais.
Não admira, pois, que não haja crescimento económico em Portugal desde a entrada no Euro. Aquilo que foi apresentado aos portugueses como algo que lhes traria prosperidade, tem vindo a revelar-se não só como um travão a essa prosperidade, mas como um fator de regressão económica e social. Privados de instrumentos próprios de política económica e monetária, os Estados, não podendo desvalorizar a moeda, desvalorizam salários e pensões. Em nome das “contas certas” impostas em Bruxelas e aceites em Lisboa, corta-se no investimento público, impede-se o crescimento da economia e combate-se supostamente a inflação por via das restrições salariais.
Insisto: a fome e a pobreza não são fenómenos da natureza. São violações dos direitos humanos. Não é aceitável, a título nenhum, que ao mesmo tempo que temos notícia de lucros astronómicos das empresas da área da energia ou da grande distribuição, em Portugal se empobreça a trabalhar, mas é exatamente isso que acontece.
O Governo reconhece que é preciso aumentar o salário mínimo, mas o PS vota com o PSD e a IL contra o projeto de resolução do PCP com esse objetivo. O Governo reconhece que é preciso aumentar pensões, mas inventa um truque para não as aumentar de acordo com a lei. O Governo reconhece que é preciso aumentar o salário médio, mas limita-se a dar borlas fiscais ao patronato para que aumente os salários, não tendo nenhuma garantia de que isso aconteça até porque continua a permitir que os patrões boicotem a contratação coletiva.
Assim, vamos continuar a ouvir lamentar o aumento da pobreza e das desigualdades por parte de quem apoia as suas causas, mas afaga a consciência lamentando as consequências.