domingo, 17 de outubro de 2021

Israel será o primeiro médico português a admitir ser cigano. “Sinto o peso de ser um exemplo”


 amensagem.pt /


A sala estava cheia. Israel Paródia, 21 anos, falava para uma turma de crianças numa escola da Amadora. Apresentou-se como estudante de medicina em Lisboa e “orgulhosamente cigano”. Com eles, partilhou uma fotografia onde envergava uma bata branca. E as perguntas, embora aliadas à inocência própria da idade, não tardaram. Dedos em riste: “Uma criança perguntou se me tinham emprestado a bata. Porque, para ela, só fazia sentido que eu tivesse pedido uma a alguém, para aquela fotografia, não que eu tivesse mesmo uma bata.”

Um cigano de bata branca parece não ser imagem comum nem na cabeça dos mais novos. E isso tem explicação nos históricos anos de perseguição e discriminação que semeiam a história desta comunidade em Portugal e no mundo.

Israel frequenta agora o terceiro ano de seis de Medicina, na NOVA Medical School (Faculdade de Ciências Médicas), em Lisboa. E deverá ser o primeiro português em medicina a dizer-se cigano. Mas não é o primeiro desta comunidade a sê-lo realmente. Quem o garante é Bruno Gonçalves, dinamizador e mediador da comunidade cigana em Portugal. “Sabemos que há mais. Mas, por receio de represálias, escolheram esconder. E eu, mesmo que tenha pena, percebo. Na hora de conseguir emprego, isso pode ser uma barreira, um muro, infelizmente”, diz.

Um muro de betão, tão extenso e alto, capaz de derrubar sonhos como este que Israel guarda desde os seus quatro anos, quando, agarrado aos livros de recordes mundiais Guiness, perguntara ao pai qual a profissão mais nobre do mundo. “Médico”.

A resposta ecoou na sua cabeça durante anos. Cedo, este menino nascido na pequena vila da Batalha, em Leiria, soube que o caminho terminaria na capital, onde estava a casa de todos os sonhos – a universidade. Por isso, durante anos, segurou bolsas de mérito e executa hoje a sua formação universitária ao abrigo da bolsa Gulbenkian Mais, que responde a jovens-prodígio estudantes nas mais diversas áreas.

A casa em Leiria, onde estudar era prioridade

A entrevista tardava em ser agendada. Israel leva bem a sério a missão de estudar e não seria a fotografia num jornal que lhe iria atrasar o passo. Em Medicina, chega a estudar 16 horas por dia. “Tem de ser”, nem questiona. São ensinamentos que traz da sua infância.

O que o difere de outros ciganos que tenham frequentado medicina está aqui mesmo, na infância. Diz sem pestanejar que os grandes responsáveis pelas suas ambições são “os pais”. Foram eles que “incentivaram os estudos”, dele e dos irmãos (a irmã mais velha e o irmão mais novo).

Israel chegou a Lisboa vindo de Leiria, onde começou a sonhar em ser médico, com apenas quatro anos. Foto: Rita Ansone

Em Leiria, nunca esteve inserido num bairro social, nunca faltou comida na mesa, mas essa memória feliz tem por detrás o sacrifício dos pais. O pai era só um menino quando teve que deixar os estudos cedo, no 6.º ano de escolaridade, para ajudar a mãe, viúva, na feira ambulante. Jurou para si que “com os filhos seria diferente” e disse-lhes enquanto cresciam: “estudar é uma prioridade”.

“Isto aconteceu quer comigo quer com a minha irmã”, diz Israel, a propósito de uma cultura onde, tradicionalmente, as mulheres deixaram os estudos mais cedo ou nunca lá chegaram, depois de prometidas aos seus noivos.

Se no ano letivo de 2016/2017 havia pelo menos 11 018 alunos de etnia cigana matriculados no ensino obrigatório, quase 20 anos atrás eram metade disso – 5921.

Os números ajudam-nos a perceber, afinal, do que falamos. O mais recente estudo nacional sobre as comunidades ciganas na educação, divulgado pelo Ministério da Educação em 2018, mostra que o número de jovens de etnia cigana nas escolas duplicou em 19 anos. Se no ano letivo de 2016/2017 havia pelo menos 11 018 matriculados no ensino obrigatório, quase 20 anos atrás eram metade disso – 5921.

Na ponta da língua, pai e avós guardavam a resposta para tudo. A maioria justificava a saída precoce da escola dos filhos e dos netos por consideraram que já tinham “aprendido o necessário” ou porque já “estavam noiva/os, casada/os, grávidas ou tinham sido recentemente mães/pais”. São as conclusões do Perfil Escolar da Comunidade Cigana, um documento que caracteriza os alunos matriculados nas escolas públicas do continente em 2016/2017,

A irmã de Israel, contudo, traçou um plano diferente dele – os estudos não foram uma paixão, está casada e, também, a viver em Lisboa. Não por força da tradição, “porque quis”, assegura o estudante. “Nós só seguimos os valores que queremos da comunidade. É ofensivo pensarem que somos todos iguais.”

A educação como ponto de partida

“Como em todo o lado, há famílias mais conservadoras”, diz o dirigente associativo Bruno Gonçalves. Hoje, “encontramos movimentos de mulheres ciganas que estão a lutar pela escolarização”. Como é o caso do trabalho desenvolvido na Letras Nómadas.

A pouco e pouco, espera-se ver a semente germinar flor, o que já acontece no programa Operacional de Promoção da Educação (OPRE), que surge com a ambição de evitar o abandono escolar precoce junto desta comunidade e que Bruno coordena. Há atualmente 40 estudantes envolvidos no programa, “mais mulheres do que homens”.

Bruno Gonçalves, coordenador do OPRE. Foto: Youtube

Israel é o segundo na sua família no ensino superior, o que pela força da tradição seria impensável anos atrás. Um primo seu estuda hoje Ciência Política.

“Começa tudo na educação.” A de todos, acredita o jovem futuro médico. “Se estivermos bem formados, estaremos mais perto de derrubar preconceitos.” E os destinatários do preconceito mais perto de estudar e, mais tarde, de ter lugar no mercado de trabalho.

Pelo menos uma parte da sua geração Israel já terá ajudado a mudar. Durante os anos de escola, garante nunca ter sentido discriminação por parte dos colegas, que nunca viram a sua cultura como um entrave fosse para o que fosse. Sempre foi o melhor aluno e um exemplo para os que partilhavam a sala consigo. Estes serão os pais de outros que irão sentar-se na carteira de uma escola já sem preconceitos.

Mas não nos deixemos enganar pelo exemplo: não é com uma turma que se muda o rumo da história. Os próprios pais de Israel têm uma bem diferente para contar. “A minha mãe, que se veste mais de acordo com a cultura (saias compridas e pretas), sofre muito com discriminação. Num cabeleireiro vazio, já lhe barraram a entrada. Tinham um sapo à porta.”

“É um povo historicamente nómada e que, à medida que foi entrando nos países, foi assimilando as suas culturas. Dentro da própria comunidade, existe diversidade. Nós não somos todos iguais, como se faz crer”

ISRAEL PARÓDIA, 21 ANOS

Bruno Gonçalves, autarca eleito pelo Bloco de Esquerda para a Assembleia de Freguesia de Buarcos e São Julião, na Figueira da Foz, forte presença pública representativa da comunidade cigana, confessa que a educação “é uma das melhores armas”, mas não resolve tudo. “Eu sou o Bruno, sou o autarca, sou o dirigente associativo. Mas quando entro num supermercado, continuo a ser visto pelo segurança só como um cigano.”

Nem o dicionário ajuda à definição. Faça o exercício de procurar a palavra. O que vai encontrar, além da reflexão sobre um povo historicamente nómada, é que “cigano”, no sentido pejorativo, pode ser adjetivo de “burlão”, “impostor”, “trapaceiro”, “velhaco”, “avarento” ou “sovina”. Até aqui a história tem de ser reescrita.

O peso da mudança

Israel Paródia está a ajudar a reescrever essa história, para os jovens ciganos e não ciganos. De vez em quando, ruma a escolas no concelho da Amadora, através do OPRE, para falar com crianças sobre as muitas aspirações que podem ter na vida. Parece clichê, mas ainda é importante dizer-se: “podem sonhar”.

O jovem estudante de 21 anos sempre foi o melhor aluno da turma, o que mudou parte de uma geração na gestão do preconceito. Foto: Rita Ansone

Nos ombros, leva uma responsabilidade acrescida, a de ser o primeiro a dizer-se estudante de medicina e cigano. “Sinto o peso de ser um exemplo”, admite. Embora não defina os seus sonhos em função disso.

Onde quer que vá, leva a palavra “orgulho”. Orgulho na sua cultura, diz vezes sem conta. Uma cultura normalmente abominada por quem a ela não pertence, mas que o estudante lembra ser, “no fundo, a cultura portuguesa de há alguns anos”. “Na questão do luto, por exemplo – vestir-se de preto da cabeça aos pés. É um povo historicamente nómada e que, à medida que foi entrando nos países, foi assimilando as suas culturas. Dentro da própria comunidade, existe diversidade. Nós não somos todos iguais, como se faz crer”, remata.

E acredita que os livros de história que lemos na escola influenciam estas crenças. “Há falta de conhecimento e só através deles é que conseguimos derrubar todos os preconceitos que existem à partida. Num livro de história não aparece nenhuma referência ao povo cigano.” Um povo que há mais de 600 anos atracou no extremo ocidental da Península Ibérica e chegou às cidades só depois dos 25 de Abril de 1974.

Desta herança cigana, diz aplicar sobretudo dois princípios: “o respeito pelos mais velhos” e a “união da família”.

O “parêntesis da sociedade”

O Comité Europeu de Direitos Sociais do Conselho da Europa reconheceu, no seu último relatório, a importância de determinadas medidas implementadas em Portugal que vão ao encontro da melhoria de vida da comunidade cigana. São elas a Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas e de programas de habitação como o 1.º Direito. Mas o mesmo Comité ainda considera a ação atual insuficiente para combater a discriminação em relação às pessoas de etnia cigana.

Os números provam a dificuldade. Dados de 2017 (do Alto Comissariado para as Migrações) mostram que há 37 mil pessoas ciganas em Portugal e sabemos agora que 37% ainda vive em bairros de lata ou acampamentos, em 70 municípios, segundo um outro relatório, divulgado em 2021 pelo Comité Europeu de Direitos Sociais. Os dados e estudos, no entanto, são ainda insuficientes para estimativas demográficas rigorosas, sobretudo perante a exclusão da etnia dos questionários e censos.

À dificuldade no acesso à habitação, junta-se a complexidade da entrada no mercado de trabalho, na educação (sobretudo de raparigas) e saúde.

“Ao longo da história, tiveram de fazer as suas próprias regras, paralelas às nossas, para sobreviver. Porque o preconceito até lhes tirou os mecanismos de defesa que nós temos”

Roque Amaro, docente ISCTE

Em entrevista à Mensagem, Roque Amaro, professor do ISCTE e uma vida dedicada ao trabalho de inclusão da comunidade cigana na sociedade, explicava a origem de todos estes muros. A chegada desta comunidade à Península Ibérica foi recebida com “preconceitos e estigmas”, uma reação ao desconhecido, que predominam até hoje, alguns até reforçados, e que “entraram quase nos genes das comunidades ciganas e nos nossos”.

O professor do ISCTE lembra-os como “o parêntesis da sociedade”, porque tiveram realmente de aprender a viver à parte. “Ao longo da história, tiveram de fazer as suas próprias regras, paralelas às nossas, para sobreviver. Porque o preconceito até lhes tirou os mecanismos de defesa que nós temos” – como o acesso às autoridades e à educação.

O que resultou num novo estereótipo: a violência. “É a única estratégia que têm. Sabem que temos medo deles e usam isso como defesa, a única defesa.” Nas suas investigações pela história da presença desta comunidade em Portugal, o investigador encontrou inclusive ordens de serviço da GNR em que se mencionava que os ciganos deveriam ser vigiados 24 horas por dia. Uma diretiva revogada nos anos 1980.

O vincar destas diferenças foi tanto, que o tecido rasgou. Mais de 90% das pessoas de etnia cigana não conseguem aceder a habitação privada. Nem ao mercado regular de trabalho. Com a pandemia, foram dos mais fragilizados: com o fecho de feiras, perderam os seus rendimentos e não foram criados apoios estatais que os cobrissem, ao contrário do que aconteceu noutras áreas e setores comerciais. Para muitos, restou apenas o RSI.

Durante a entrevista com Israel, em que este jovem surge com a sua faculdade atrás, tapada por andaimes e redes de segurança, a analogia sobre o que falamos parece fácil: uma sociedade em obras, a procurar reconstruir-se. Israel ajuda a colocar as pedras no sítio.


Catarina Reis 

Nascida no Porto há 25 anos, foi adotada por Lisboa para estagiar no jornal Público. Um ano depois, entrou na redação do Diário de Notícias, onde aprendeu quase tudo o que sabe hoje sobre este trabalho de trincheira e o país que a levou à batalha. Lá, escreveu sobretudo na área da Educação, na qual encheu o papel e o site de notícias todos os dias. No DN, investigou sobre o antigo Casal Ventoso e valeu-lhe o Prémio Direitos Humanos & Integração da UNESCO, em 2020.

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