sábado, 2 de janeiro de 2021

Cinco vilões que marcaram a nossa História

 visao.sapo.pt 

 

Luís Almeida Martins


No livro “A História de Portugal Contada Pelos Vilões”, que lançou há um ano, o jornalista Filipe Luís, editor-executivo da VISÃO, “revela” os pensamentos de 12 das figuras tradicionalmente mais odiadas de Portugal. Conheça cinco destas personalidades malditas e divirta-se com os extratos retirados da obra

Cinco vilões da História, em “ON” 4
Historia de Portugal contada pelos Viloes de Filipe Luis

D. Leonor Teles, “a Aleivosa”
(1350-1387)

Os portugueses nunca simpatizaram com a rainha consorte D. Leonor Teles (c. 1350–1386). Referimo-nos, é claro, aos minimamente instruídos, àqueles que, na velha Escola Primária, aprenderam que a sedutora mulher do rei D. Fernando, que viveu subjugado por ela desde que a conheceu, foi-lhe infiel na vida privada e traidora na vida pública. Uma imagem desgraçada.

O cronista Fernão Lopes foi o principal responsável por esta “má imprensa” da primeira rainha de Portugal nascida em território português. Porque o fez? Porque, escrevendo décadas mais tarde, defendeu e justificou a justeza do partido vencedor, contrário ao dela. “A Aleivosa”, como lhe chamou Lopes, assumiu a regência do reino depois da morte do marido, em 1383. Nessa altura, o seu amante, o conde galego João Fernandes Andeiro, adquiriu importância política, o que desagradou à burguesia, ao povo e a alguns setores da nobreza, que receavam que Portugal viesse a ser governado por estrangeiros – tanto mais que a filha única de D. Fernando e de D. Leonor Teles se casara com o rei de Castela, o que conferia a este soberano o direito de herdar a Coroa portuguesa. Foi nesse contexto que D. João, mestre da Ordem de Avis, surgiu como líder do partido dos descontentes e assassinou Andeiro com as próprias mãos, levando Leonor Teles a fugir.

O resto é história bem conhecida. Uma tropa improvisada, comandada pelo jovem Nuno Álvares Pereira, conseguiu desbaratar, em Aljubarrota, o poderoso Exército castelhano que vinha fazer valer a causa do rei de Castela. Se a sorte da batalha tivesse sido outra, Portugal não existiria hoje como Estado independente e… talvez ninguém se lembrasse já de Leonor Teles. Escutemos a sua defesa.

Confesso o erro de ter assumido, demasiado cedo, a minha relação amorosa como o conde de Andeiro. Já o meu marido, D. Fernando, que soubera de tudo, havia conspirado para matar o Andeiro. Há quem diga que, dessa missão, tinha encarregado o seu meio-irmão, João, o dissimulado Mestre de Avis e (nunca o adivinharíamos…) futuro rei de Portugal. 

Ou talvez este rumor, citado por Fernão Lopes, apenas sirva para legitimar, a posteriori, o que o Mestre, de facto, viria a fazer… (…) Agora, faltava-lhes gizar um plano para liquidar o conde de Andeiro, eliminando o principal apoio interno da regente – eu própria – e tomar o poder. Mas a eliminação de Andeiro, mais do que por razões de honra, impunha-se por razões políticas…

E eis que surge Álvaro Pais, ex-chanceler-mor (primeiro-ministro) de D. Pedro e, depois, do próprio D. Fernando. Alto-funcionário da Coroa, homem rico, burguês, influente e popular na cidade de Lisboa, ele nunca perdoara o ascendente da minha própria influência nos destinos do Reino. Álvaro Pais organiza uma rábula a que, no vosso século, chamariam “fake news”. Sem redes sociais à sua disposição, usaria arautos a cavalo para espalharem o alarme na cidade, proclamando a falsa informação de que “matavam o Mestre”.

(Neste ponto, em minha defesa, devo sublinhar que a manipulação das massas pela mentira não é má quando nos prejudica nem boa quando nos convém. Mas esse julgamento deixo-o à História, consciente de que ela é uma entidade que nem sempre faz justiça.)

Miguel de Vasconcelos, o protótipo do traidor
(1590-1640)

Os tais mesmos portugueses – e ainda são muitos – que antipatizam profundamente com D. Leonor Teles veem em Miguel de Vasconcelos (c. 1590-1640) o mais refinado de todos os traidores. Então não é verdade que foi ele que governou Portugal em nome do rei de Espanha durante o domínio filipino?

Bom, é verdade, mas apenas parcialmente. Só nos cinco anos finais do reinado português de Filipe IV de Espanha (Filipe III de Portugal) é que este homem de confiança do chefe do governo espanhol, conde-duque de Olivares, foi secretário de Estado (primeiro-ministro) da duquesa de Mântua, vice-rainha do nosso país. Esse período relativamente escasso foi, no entanto, suficiente para que o povo passasse a odiá-lo, uma vez que aplicou impostos pesadíssimos que descontentaram todas as classes sociais, incluindo a nobreza, chamada a combater sob a bandeira espanhola em teatros de guerras que não lhe diziam respeito, com todas as más consequências físicas e financeiras daí decorrentes. Até para reprimir a revolta da Catalunha foram arregimentados fidalgos lusos, dando consistência à política de progressiva integração de Portugal na Espanha defendida por Olivares (e que ia contra o modelo de autonomia administrativa que ficara disposto em 1580, quando o primeiro dos Filipes assumiu a Coroa portuguesa).

Miguel de Vasconcelos acabou mal. No 1º de Dezembro de 1640, os conspiradores que iniciaram à restauração da independência de Portugal deram com ele escondido num armário do Paço, crivaram-no de balas e arremessaram o corpo pela janela, para gáudio da multidão que se comprimia no Terreiro do Paço. Se ele pudesse ter escrito as suas memórias teria dito, provavelmente, o que se segue.

O meu espírito eleva-se acima do meu cadáver que já começa a ser mordido por cães vadios, no Terreiro do Paço, em Lisboa. Pouco passa das nove da manhã de 1 de dezembro do ano da graça de 1640. Ainda há minutos, tudo estava em paz na fiel e mui nobre cidade ibérica da foz do Tejo, vassala da Madrid imperial. De súbito, porém, ouviram-se gritos, vozes alteradas, portas a bater, um ou dois tiros de bacamarte. Um tropel de passos em corrida a subir as escadas do edifício do Paço, portas arrombadas pelo caminho, desconhecidos que procuram a duquesa de Mântua, da sua graça Margarida de Saboia, e o seu humilde secretário de Estado (e escrivão da Fazenda da vice-rainha): eu próprio. 

Um armário sólido e meio escondido, que servia de arquivo à papelada menos consultada, parecia ser, agora, o único ponto possível de fuga. Abro as suas grandes portas e enfio-me lá dentro, quieto, silencioso, mas com o coração a explodir-me dentro do peito. Oiço vozes de intimidação a Sua Alteza, que terá de obedecer à voz de prisão. Rebeldes! Nacionalistas portugueses? Nobres despeitados pela perda de importância nos destinos políticos do Reino? Burgueses descontentes pela alta de impostos? Soldadesca desertora que se recusa a engrossar as fileiras de Sua Majestade, el-Rei de Espanha, de Portugal e dos Algarves e imperador dos Habsburgos espanhóis, senhor de territórios onde o sol nunca se põe, de seu nome Filipe IV (III de Portugal)? Simples arraia-miúda desordeira, bêbedos da noite anterior?

D. Carlota Joaquina, “a Ratazana”
(1775-1830)

Tanto a Corte como o povo odiavam esta feiíssima, ninfomaníaca e intriguista princesa espanhola, mulher do pobre e fraco rei D. João VI. Razões não faltavam: Carlota Joaquina (1775-1830) traía o marido colecionando amantes, defendia os interesses do seu país natal em detrimento dos daquele de que era rainha, defendeu a causa do absolutismo contra o constitucionalismo, apoiando as revoltas “caceteiras” do seu filho D. Miguel, suspeita-se mesmo de que tenha envenenado o marido, que acusava de ser incapaz de governar. Não há dúvida de que Carlota Joaquina sonhava vir a tornar-se regente do nosso país, ao mesmo tempo que ambicionava a Coroa de Espanha.

No tempo em que a Corte portuguesa esteve sediada no Rio de Janeiro para evitar a abdicação face a Napoleão, a “Megera de Queluz” manobrou para vir a constituir para si própria um reino nas províncias espanholas da parte mais meridional da América do Sul. Aliás, no Brasil, “a Ratazana” é ainda mais odiada do que em Portugal: é voz corrente que detestava aquele país, e a cultura popular de além-Atlântico faz eco dessa convicção. Ouçamo-la.

O ano de 1816 é o da morte, no Brasil, da rainha D. Maria I. Afastada dos negócios do Estado, vários anos antes, por loucura, fora, entretanto, substituída, no governo do reino, pelo seu filho, o regente D. João, agora el-Rei D. João VI. Foi nessa data que me tornei, em terras brasileiras, rainha consorte de Portugal. Para celebrar, encarreguei a baronesa Ardisson de me fazer, em Paris, umas compritas. (…). Joias, roupas, lingerie, sapatos, luvas, meias, cosméticos e acessórios (mais de 500 lenços de mão, por exemplo), calçado em seda bordada, meias da melhor seda transparente e leques de várias qualidades de marfim estão entre os artigos adquiridos junto dos melhores estilistas, joalheiros e retalhistas da moda parisiense. Posso ter ficado para a História como uma das grandes vilãs de Portugal, mas tinha bom gosto. (…)

Nunca pude adivinhar que a tenacidade de D. Pedro o levasse ao ponto de abandonar a sua terra adotiva, agora transformada em império, para regatear a sórdida porção europeia que teimava em reivindicar para a filha. Nunca pude adivinhar que Maria da Glória, numa digressão pela Europa, se tivesse tornado amiga de brincadeiras de bonecas da pré–adolescente da sua idade, e sua prima, Vitória, futura rainha Vitória, da Inglaterra. E nunca pude adivinhar – nem a isso assisti viva – que Pedro haveria de abdicar de duas Coroas, a de Portugal, a favor da filha, e a do Brasil, a favor do seu filho homónimo, para embarcar rumo à Europa, tornando-se um mero e errante duque de Bragança, sem terra nem trono, só para dirigir as tropas que haveriam, contra Miguel, de conduzir Maria da Glória ao trono. Maldito seja nos infernos! (…)

Os vencedores da História esquecem-se de contar que a grande maioria do povo, ferida no seu orgulho pela perda da grande colónia das Américas, estava com D. Miguel. Hoje, os seus detratores chamar-lhe-iam, sem dúvida nenhuma, um populista de extrema-direita…

Alves dos Reis, o maior burlão da História
(1898-1955)

Volta e meia, a RTP encarrega-se de nos refrescar a memória acerca deste figurão inteligente e bem-falante, repondo um seriado inspirado na sua vida e nas suas façanhas à margem da lei. Mas a fama de Artur Virgílio Alves Reis (1898-1955) extravasa das fronteiras portuguesas, pois mais ninguém, que conste, conseguiu falsificar dinheiro verdadeiro…

Filho de um cangalheiro, embarcou em novo para Angola, onde se fez passar por engenheiro, falsificando um diploma de Oxford. Ali, enriqueceu comprando, com um cheque sem cobertura, a maioria das ações de uma companhia ferroviária. De regresso a Lisboa, adquiriu uma empresa de revenda de automóveis norte-americanos passando um cheque sem provisão que, depois, cobriu com os fundos da própria firma. Com o dinheiro restante, tentou adquirir uma empresa mineira de Angola, mas descobriu-se a fraude e ele foi detido. Defendendo-se bem, conseguiu ser libertado, após o que concebeu o plano de encomendar uma grande quantidade de notas de 500 escudos à própria casa impressora britânica que costumava imprimir o dinheiro português por encomenda do Banco de Portugal. Desta avalanche de dinheiro falso que era “verdadeiro”, meteu ao bolso 25%, quantia com a qual fundou o Banco Angola e Metrópole, jogou fortemente na Bolsa, comprou um palácio e três quintas, tornou-se proprietário de uma empresa de táxis, encheu a mulher de joias e tentou apoderar-se do Diário de Notícias. O seu objetivo último era comprar o número de ações do Banco de Portugal (que, na altura, era semiprivado) necessário para poder abafar o escândalo das notas, na eventualidade de a maquinação ser descoberta.

Foi mesmo descoberta, e Alves dos Reis condenado a uma pesada pena de prisão. Seria libertado em 1945, com 47 anos, e morreria de ataque cardíaco, uma década mais tarde. Vamos dar-lhe a palavra.

Meus senhores! Eu sou um honestíssimo empreendedor, cujos meios de fortuna nada ficam a dever aos grandes financeiros do vosso século. Parafraseando um posterior colega meu, que vós deveis conhecer bem, tudo o que fiz foi “para ajudar a banca nacional”. (…) Fiquei conhecido, sobretudo, pelo golpe das notas de 500 escudos, com a efígie de Vasco da Gama. De forma difamatória, fui acusado de falsificação. 

Mais do que um equívoco, tal acusação é uma fraude – e em fraudes, farão a justiça de reconhecer, serei eu uma autoridade. (…) Se eu alguma vez falsifiquei alguma coisa, essa coisa não foram notas de banco. Talvez umas assinaturas. Se calhar um ou outro documento oficial. E claro, com a tenra idade de 18 anos, um magnífico diploma de engenheiro, da própria Universidade de Oxford, uma das mecas do Ensino Universitário mundial, certificado pela prestigiadíssima Polytechnic School of Engineering – instituição, aliás, inexistente. Ora, mas quem nunca?…

(…) Se adquirisse as ações da empresa, mediante o pagamento com um cheque careca (…), poderia vendê-las a tempo de dotar a conta de provisão, ainda antes de ele ser descontado. (…) Se fosse no vosso século, teria pedido emprestado ao banco para comprar as ações, dando por garantia os próprios títulos. (…) É um esquema genial, reconheço, e tiro o meu chapéu aos que, depois de mim, inventaram este tipo de estratagemas…

Casimiro Monteiro, o assassino de Humberto Delgado
(1920-1993)

Casimiro Monteiro – Os Cinco Pilares da PIDE – Irene Flunser Pimentel

Uma das figuras mais sinistras da nossa crónica coletiva, o forte, rude e “abrutalhado” Casimiro Monteiro (1920-1993), nasceu em Goa, de pai português e mãe indiana. Veio em jovem para Portugal e daqui saltou a fronteira para lutar nas fileiras franquistas durante a Guerra Civil de Espanha. Terminado este conflito, mudou-se para Inglaterra onde trabalhou como talhante e se casou com a filha do patrão. Nos anos 50, voltou a Goa, integrou a polícia local e “celebrizou-se” pela forma particularmente cruel como interrogava e torturava os ativistas pró-libertação do território que tinham a má sorte de cair nas suas garras. Depois da invasão do Estado Português da Índia e da sua anexação pela União Indiana, Casimiro Monteiro foi recrutado para os quadros da Pide, nos quais se evidenciou novamente pela dureza dos seus métodos de interrogatório.

Em 1965, fez parte da brigada encarregada de assassinar o general Humberto Delgado, o mais incómodo dos oposicionistas com que Salazar teve de se haver. E foi ele que cometeu o homicídio propriamente dito, praticado a sangue-frio, desferindo pancadas, com um grande ferro, na cabeça do “General sem Medo”. No final da década, sempre como agente da Pide, mudou-se para Moçambique, pulou a fronteira para a Tanzânia e assassinou Eduardo Mondlane, líder da Frelimo, por meio de uma bomba enviada numa encomenda. Por altura do 25 de Abril, estava em Portugal, mas conseguiu fugir para África do Sul, onde morreu passadas duas décadas.

Que justificações daria ele da sua conduta?

Nunca fui um vilão importante, ou glorioso, influencer da História, como muitas das personagens que me precedem neste livro. Fui apenas um vulgar assaltante e violador, que se tornou esbirro policial de uma polícia secreta e que as circunstâncias e os imponderáveis do destino fizeram, por um minuto fatal, importante. Devo isso, apenas e só, à relevância pessoal e histórica da minha vítima mais famosa. Humberto Delgado é a causa da minha duvidosa glória. Sem ele, eu teria sido uma peça menor de la petite histoire. (…) No dia em que o matei, conhecia dele apenas alguns factos: tinha sido general e tinha sido demitido. Conspirava contra Salazar e contra o regime. Era amigo de comunistas. Odiava e publicamente desprezou os membros da minha corporação, a Pide. 

Por mim, devia ser abatido como um cão. (…)

Nessa altura, já a secretária tinha saído da viatura, aos gritos, tentando agredir-me. Rosa Casaco mandou o Tienza agarrá-la e tapar-lhe a boca. Livre do pequeno estorvo, era a minha vez. Já com Delgado dominado, dei-lhe uma cabeçada na fonte e esmaguei-lhe o maxilar. O general caiu no chão. Depois, com uma moca, apliquei-lhe uma pancada que lhe desfez a base do crânio. Morreu instantaneamente. (…) Em fevereiro de 1968, Eduardo Mondlane, fundador e líder da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), dirigiu-se ao escritório do movimento em Dar es Salaam, na Tanzânia, para recolher correspondência. Ao abrir uma encomenda, acionou um engenho explosivo que o cortou, literalmente, em duas metades. (…) Numa única vida, eu tinha acabado com a existência de dois heróis nacionais de dois países. O que me dá um lugar de destaque na galeria dos vilões modernos.

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