terça-feira, 20 de outubro de 2020

As catedrais invisíveis do Alentejo profundo





Quem passa perto das pedreiras alentejanas só vê as gruas e as pirâmides de resíduos empilhados que resultam da exploração do mármore da região. Ou seja, observa em altura quando a realidade deste negócio natural decorre ao contrário, em profundidade. E em locais onde o sol só entra quando está a pino e logo desaparece do chão por onde meia dúzia de operários cortam o interior da Terra em blocos de aproximadamente 25 toneladas cada, que vistos cá de cima são pequenos pontos de tão fundo.

Se tiver vertigens nem se deve aproximar desses poços onde cabe inteirinho o maior arranha-céus português, o Hotel Sheraton de Lisboa, no interior das escavações que resultam da perfuração que várias gerações de homens vem fazendo há décadas. Quando o elevador totalmente envolvido por uma rede com furos por onde nem o dedo mindinho passa começa a viagem para o buraco lá muito em baixo, é como uma descida ao inferno. Se for verão é mesmo essa a realidade, pois a temperatura que aquece a planície alentejana é lá no fundo em muito superior à da superfície. A cabine nunca vai até aos 140 metros de profundidade, a altura da maior exploração, fica-se pelo meio. A partir daí, os operários em cortar o mármore em blocos vão descendo por rampas ou escadas as dezenas de metros que faltam até ao fundo.

Existe quem ali trabalhe há 30 anos, tenha visto a pedreira ao nível do solo e agora desça bem fundo para continuar a exercer a profissão. Muitas famílias têm gerações a escavar aquelas profundezas, que viram nascer o poço e o exportaram em pedaços para todo o mundo, decorando bastantes palácios árabes, a sede em mármore verde das Nações Unidas, o magnífico Taj Mahal, bem como edifícios menos emblemáticos, como são os prédios das avenidas novas da capital, uma parte de Lisboa em muito revestida a partir do interior alentejano.

A pedreira mais impressionante desta região é a que resulta da escavação de fora para o interior da jazida. A retirada de mármore transformou-a numa gruta gigantesca, onde no meio permanece um pilar de mármore ao redor do qual foram retirados milhares de blocos desde que está a ser explorada. Quem se mantiver calmo perante o cenário de um hipotético desabamento sobre si de milhões de toneladas cada vez que o chão treme à passagem de enormes máquinas que retiram os blocos serrados ao interior da natureza, poderá viver um momento tão religioso como se estivesse no interior de uma das mais impressionantes catedrais do mundo.

Onde não faltam aberturas na rocha como se fossem as grandes portas de entrada de uma igreja, de onde, ao observar-se as altas paredes em mármore que rodeiam esta "catedral", se veem uma espécie de vitrais com uma centena de metros de altura. Pinturas que resultam tanto das cores naturais da pedra como das marcas do tempo, feitas pelo correr da água desde a superfície. O mais curioso é que a escavação deste imenso salão subterrâneo não deriva de um plano de arquitetura ou de engenharia, antes é cortado na direção que os veios no mármore indicam ser o passo correto desta construção.

Não faltam no interior desta catedral todos os ingrediente de uma de verdade; os pombos que fazem ninhos entre as gretas das blocos, a luz natural a criar reflexos de várias tonalidades no chão poeirento interior, e a estranha existência de formatos da pedra que imitam um altar e o interior de uma catedral. Ao ver os operários a tirarem medidas aos futuros blocos, olhando para o alto da "cripta" até imaginará estar perante os antigos pedreiros que construíam os edifícios religiosos.

Desde os romanos

Há números para todos os gostos quando se quer radiografar a indústria mineral desta região, uma língua de terra estreita e única no planeta localizada entre o Alandroal e Sousel, passando por Vila Viçosa, Estremoz e Borba. Foi aí que há milhões de anos, quando a crosta terrestre estava em formação, nasceu um oásis do melhor mármore do mundo. Este caráter único da região é também sinónimo de várias qualidades de mármore, desde os cinzentos, azul, ruivina, claros, cremes e róseos, ou de vergada fina castanha e acinzentada. Variedade que se pode observar no Museu do Mármore, em Vila Viçosa, que se intitula Capital do Mármore, ou nos espaços expositivos para clientes das muitas empresas que ali existem.

Há números fascinantes e existem os trágicos nesta indústria. Neste último caso, cada vez em menor quantidade como era a morte de muitos operários dentro dos poços. Hoje em dia é difícil imaginar como era retirar blocos com muitas toneladas à força do músculos, como quando se os faziam deslizar desde o fundo sobre paus ensebados. De vez em quando, lá faltava a força e era a tragédia. Uma situação fácil de imaginar enquanto o elevador vai na sua corrida até ao fundo do poço e se observa um bloco de mármore a subir, preso em cabos de aço que suportam o seu peso gigantesco. Se os cabos se rompem, o impacto no fundo da pedreira fará o bloco partir-se em milhares de bocados que se espalharão como estilhaços de uma granada em todas as direções.

Não é por acaso que quando se pede a memória mais dramática de uma vida inteira dedicada à exploração do mármore, o empresário Moucheira escolhe uma visão que ainda não desapareceu da sua cabeça: "Um bloco deslizou e decepou a perna a um dos trabalhadores. Nunca esqueço esse dia!"

O empresário está encostado a um gradeamento enquanto observa o andamento do trabalho. É um dos locais em que se concentram várias empresas a explorar as muitas pedreiras vizinhas umas das outras, daí que a extração seja em profundidade. Quem não está acostumado ao à-vontade com que a maior parte dos trabalhadores se relacionam com a altitude, assusta vê-lo dobrado sobre a barreira frágil para observar o corte de um bloco. Não é o único que o faz assim, pois na mesma manhã tinha-se visto um dos gruístas que sobe as pedras empoleirado noutra vedação, num equilibrismo de arrepiar.

É assim mesmo a realidade das pedreiras, onde a maioria anda sem capacete na cabeça. Nada que lhes altere a boa disposição, pois a rotina faz parecer àqueles homens que a sua profissão é tão normal como se estivessem num escritório. O senhor Moucheira não pensa assim e, de vez em quando, chama atenção de quem anda mais descuidado. Enquanto refere o outro lado da empresa, o que se preocupa com novas formas de criatividade e que está a cargo da sua filha, arquiteta, bem como do filho, ao nível do design para peças feitas com os restos dos grandes blocos que são cortados ainda no local numas máquinas em que lâminas com diamantes separam o que é bom do que não tem valor comercial. Aliás, diamantes é coisa que abunda por ali, pois é com milhares deles incrustados nas correias que se corta o mármore.

Uma atividade que acontece ao som de algumas "explosões", as do estrondo que um bloco ainda faz ao cair na cama preparada para amortecer a queda após se separar do veio de mármore. Mas o maior ruído deriva das máquinas que serram os blocos, que são automatizadas e pouco cuidado precisam, a não ser um olho de quem anda lá por baixo a fazer múltiplas tarefas. Como é o caso dos condutores de grandes caterpillars que foram descidas para arrebanhar os pedaços de mármore que sobram e são periodicamente depositados em grandes recipientes para irem para as escombreiras. É assim que se chama aos depósitos de resíduos a céu aberto que dominam a paisagem, onde fica durante anos ou décadas.






O poço secou

A descida ao fundo do poço não é uma viagem rápida. A cabine do elevador treme muito menos do que quando se o faz pelas escadas em lances intermináveis, que estão presos às altas paredes de mármore com cavilhas mas nunca deixam de abanar como varas verdes. Antigamente, o processo era bem diferente, o que se pode confirmar nos "caminhos" talhados entre a beira de centenas de blocos retirados e o abismo mesmo ao lado, coisa com uns 20 centímetros, que os chefes percorriam várias vezes ao dia de modo a vigiar o que se fazia.

Há outros números que caracterizam a indústria do mármore da região, como é o caso de 70% das 200 empresas terem fechado desde a crise de 2007. Porquê? A primeira razão é económica, pois deixaram de ser rentáveis. Com o estrangulamento dos mercados europeus, designadamente o espanhol, mais de 50 pedreiras fecharam as portas desde então e só sobrevivem as que têm a máquina bem oleada - leia-se exportação. A quebra dos mercados que se tinham a vindo tornar principais, como o da Rússia e da Ucrânia, neste caso devido ao embargo, transformou os países árabes como o principal destino. Se os do norte de África só contam para o produto de terceira categoria, há quem veja no destino Índia um dos novos filões. Quanto ao mercado chinês, país de onde se veem vários rostos em almoços com empresário locais nos restaurantes da região, o maior problema é o da sua exigência a nível de toneladas serem demasiado grandes para a produção nacional.

Quanto à menor utilização do mármore no nosso país, não falta quem acuse os construtores no que respeita à utilização do mármore nas obras durante os períodos áureos do desenvolvimento urbanístico de Lisboa, principalmente nos tempos que se seguiram à Revolução de Abril, de intensa construção, em que esta matéria-prima foi utilizada de todos os modos menos aquele que honraria a sua nobreza. A que lhe é dada estrangeiro, pois em Portugal perdeu o estatuto ao ser usada em qualquer acabamento e uma situação que se pode verificar por via da parca utilização que os arquitetos fazem do mármore nos seus projetos. Há exceções entre a classe que defendem o mármore da região como um dos melhores revestimentos e para decoração, como Álvaro Siza, mas são poucos os nomes que o seguem.

Por tudo isto, o que resta às empresas da região é a exportação, até porque não falta mármore para ser retirado nas décadas mais próximas. Ou seja, o poço não secou, a expressão popular para quando uma pedreira deixa de ser rentável para a exploração.

Quem se enfia na cabine em direção ao fundo da pedreira vai acompanhando o que a natureza criou ao reparar no rumo das marcas naturais na fachada de mármore a descoberto. Com a ajuda da explicação de alguém que conheça o que está em causa, como é o caso do especialista, o investigador Carlos Filipe, que nos últimos anos tem sido um dos principais protagonistas na preservação deste património. Está entre os que organizaram uma Rota do Mármore, que permite visitar algumas das pedreiras mais interessantes da região do Anticlinal dos Mármores Alentejanos. Passeios que duram uma manhã, com uma média de uma dezena de participantes, muitos dos quais estrangeiros. Dinamiza também o Centro de Estudos que tem vários acordos com universidades que se interessam pela investigação a todos os níveis.

Entre as suas preocupações está o levantamento do património desta atividade e da arqueologia industrial, até porque o fim de muitas das explorações deixa ao abandono o equipamento que permite recriar a história da indústria.

Para obter a preservação deste património, Carlos Filipe tem reunido várias fontes documentais e recolhido testemunhos orais e bibliográficos desde 1850. Tem consciência de que é difícil registar esta história devido à ausência quase total de trabalhos monográficos e historiográficos, uma situação que a recente crise económica veio acelerar pois muitas das estruturas oficiais que tinham esta obrigação estão a ser encerrada, como a Cervalor.

A história da exploração do mármore em Vila Viçosa vem desde os tempos dos romanos, tendo sido encontrados na Herdade da Vigária, bem como em Estremoz e arredores, uma zona de extração daquela época. Ou seja, "tem dois mil anos de história", que se espalha por uma zona com fronteiras bem definidas geologicamente. Mesmo com a pouca evolução tecnológica verificada nos muitos séculos seguintes, a indústria voltou aos bons tempos no século XIX, com a proliferação de empresas e profissões relacionadas com o mármore. Ainda hoje, muito do equipamento é fabricado ou reparado por empresas metalomecânicas da região, que tornam o processo de extração possível de ser executado sem o recurso a importações. A exceção diz respeito apenas aos grandes guindastes que retiram os blocos do fundo da pedreira e são adquiridos a empresas italianas.

Segundo Carlos Filipe, o trabalho nas pedreiras alentejanas esteve sempre marcado por um grande atraso tecnológico até há pouco tempo, tanto assim que só existia uma máquina a vapor em 1888 e assim permaneceu durante décadas. Era tudo feito à pá, picareta, marrão e alavanca, bem como com pólvora negra. Só em 1929 é que a introdução do fio helicoidal vem gerar um salto tecnológico que, com a ajuda das perfuradoras de rocha, modernizam o corte dos blocos.

Um processo de corte que ainda se mantém na maioria das pedreiras, pois poucas são as que têm cortadoras de lâmina. Apesar de moroso, é simples. Perfura-se o topo mais afastado do paralelepípedo de mármore, fura-se da parte exposta até esse furo, e corre-se o fio helicoidal revestido a "brocas" de diamantes, até que o bloco se separa da rocha. Segue-se o mesmo processo até o bloco ficar separado na totalidade e é hora de o fazer subir para ser serrado ou transportados em camiões.

Quanto ao nível de produção diária de cada pedreira, as mais bem apetrechadas retiram uma média de cinco blocos, somando cem toneladas. Com a crise, observam-se muitos empilhados nos arredores, aguardando comprador. Mesmo com este panorama, as máquinas e os homens - esta é uma indústria quase masculina - não estão paradas, pois a qualquer momento uma aquisição inesperada abate o stock.







Artistas da pedra

Entre as profissões paralelas a esta indústria está a de alguns artesãos e artistas que talham a pedra. Neste último caso, o percurso de Manuel Véstias (1950) é exemplar das últimas décadas da exploração do mármore. Na sua oficina à entrada de Estremoz, encavalitam-se nas estantes todo o tipo de esculturas que se podem retirar dos restos dos grandes blocos. Só utiliza bom mármore, o que não impede que observe a crise a entrar-lhe pela porta. Tanto esculpe Nossas Senhoras e anjos como decorações para jardins. À mão, tem uma série de ferramentas que permitem retirar de um bloco de linhas retas figuras harmoniosas: "O problema é quando se dá um toque no sítio errado e a estátua quebra". Mas esse é o seu menor problema, pois a queda dos preços e o armazenamento forçado da produção diária preocupam-no mais.

À entrada de Vila Viçosa está outra oficina, a do escultor César Valério. A sua arte difere da de Véstias, como se pode ver em duas peças que tem expostas: um samurai e um homem em mármore cor de rosa. Ambas feitas de um único bloco. Também reclama da crise e por ser obrigado a aceitar outros trabalhos em mármore em vez de fazer arte.

Um hotel em mármore

Em Vila Viçosa, o empresário das pedreiras António Manuel Alves decidiu construir um hotel quase todo feito de mármore. Chamou-lhe Marmòris, em memória dos romanos que andaram por ali há dois mil anos.

No seu sangue corre mais mármore do que outra coisa?

Sim, é verdade pois desde o meu avô que a família entrou neste ramo em 1922, mesmo que então fosse na região de Pero Pinheiro.

O que os desloca para o Alentejo?

Porque em 1992 o dono da pedreira D"el Rei vendeu-a ao meu avô. Antes, com a crise dos anos 60, a geração do meu pai fora obrigada a emigrar para França e ele continuou a atividade por lá. Quando eu tinha 20 e poucos anos regressei e comecei a fazer exportação numa organização familiar: comprava, transformava na oficina do meu avô e o meu pai vendia em França.

Era um bom mercado?

Havia grande apetência pelos mármores portugueses, até porque as proibições ambientais evitavam essa exploração em França. Então, a solução foi começar a importar de Portugal, Espanha e Itália, e esta pedreira tinha a qualidade rosa que eles apreciam muito.

Tem mármore para quantos anos?

Depende da jazida e da futura tecnologia para a exploração, que é a céu aberto e em profundidade - atualmente a 130 metros.

Qual o destino da produção?

Posso dizer que 99% é para exportar, em Portugal fica muito pouco. Os nossos mármores são respeitados em França, embora a procura tenha caído na Europa. Como bom mercado, apenas subsiste Itália.

Que tem mármore próprio?

Itália é uma gigantesca praça giratória de mármores que importa, trabalha-os e depois exporta.

E mantém a origem nacional?

Hoje já o comercializam como português, porque a marca tem valor.

Qual é o seu principal destino de exportação?

Atualmente é muito para a Índia, para a decoração de interiores de casas de classes altas.

Tornou-se empresário hoteleiro, com o estabelecimento mais luxuoso da região. Porquê?

Porque Vila Viçosa não tinha um e era o local certo para um hotel em muito feito em mármore. O outro motivo deve-se às minhas filhas. Elas não continuarão a minha atividade, por isso não me interessa estar a investir em mais pedreiras e equipamento se sou só eu. O futuro são elas e aqui podem trabalhar.

Pode-se dizer que o Hotel Marmòris é um catálogo do que se pode fazer com o mármore?

Sim, também serve para quando cá vêm os clientes estrangeiros verem como é que o mármore se comporta e terem a perceção do toque.

Há turistas suficientes na região?

Os hotéis têm uma certa dinâmica. Começa pelos portugueses e só depois os estrangeiros, que já são cerca de 40% de quem nos procura. Principalmente americanos e canadianos, mas com a campanha externa em curso para divulgar o hotel já temos outros países.

O que procuram esses visitantes?

Muitos querem fazer ciclismo, mas vários dos nossos turistas querem conhecer as pedreiras em visitas organizadas. O que fazemos.

Nunca pensou em utilizar as pedreiras para desportos radicais?

Sim, mas ainda não apareceu por aí um jovem que proponha e desenvolva essa atividade.









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