A Évora acorreu, no penúltimo fim de semana, um grupo de pessoas a propósito da sua militância no partido político Chega. É muito difícil falar a sério sobre aquilo que se passou nesse fim de semana e nem sequer se sabe se isso terá alguma utilidade. Até onde pode chegar a estupidez humana?
Por razões que desconheço, e que gostava de conhecer, existe em frente à sede do CDS-PP, no Largo do Caldas, no chão, a inscrição de uma frase que desperta a curiosidade. É mais ou menos assim: “Tudo sob o céu está mergulhado no caos; a situação é excelente”. Digo mais ou menos porque não me recordo com rigor da frase e existem várias traduções disponíveis, parecidas mas não iguais, o que não é raro acontecer quando se trata de uma tradução da língua chinesa. Pois, trata-se de uma frase maoísta. Porque estará uma frase do Mao Tsé-Tung naquele lugar?
Nada contra. Belo sítio para uma frase bela maoísta e belo momento para, por aqueles lados sobretudo, se olhar para o que se passa no céu e na terra.
Vamos então tirar uma fotografia panorâmica, uma daquelas que capta a paisagem inteira como se fosse um somatório de fotografias, muito fácil se se usar um iPhone relativamente moderno ou seja uma coisa que a esquerda íntegra e verdadeira não deveria poder fazer.
E qual o melhor sítio do país para se ter uma visão do todo? Diria que a partir do centro do país de forma a termos o maior raio de alcance possível. Aqui é melhor evitarmos Lisboa porque é sempre tudo em Lisboa. Vamos então deslocar para outro lado; Évora. Évora é um bom sítio para uma fotografia panorâmica do país.
Quem está no Largo do Caldas por favor não se distraia, isto pode interessar-vos.
A Évora acorreu, no penúltimo fim de semana, um grupo de pessoas a propósito da sua militância no partido político Chega. É muito difícil falar a sério sobre aquilo que se passou nesse fim de semana e nem sequer se sabe se isso terá alguma utilidade.
Até onde pode chegar a estupidez humana?
Até Évora.
Alguém comparou a estupidez à morte dizendo que quem se vê nessa situação, a de estar morto ou a de ser/estar estúpido, nunca sabe disso.
É verdade. E fazer e partilhar piadas, reflexões ideológicas ou filosóficas sobre o que se está a passar no país, e sobre o que se passou em Évora, também não parece adiantar muito.
Agora usar o zoom da câmara do iPhone, tentar um plano aproximado. Nesta parte devemos sentar-nos: como é que chegámos ao ponto em que é apresentada uma moção política que prevê a amputação dos ovários de uma mulher que aborte em determinadas circunstâncias?
Lembro-me de uma das alturas em que se discutia a legalização do aborto e em que existia o seguinte argumento usado por algumas mulheres à esquerda: “Eu faço o que quero com a minha barriga”. Não era o melhor argumento para aquilo que, muito bem, acabou por ser conseguido: a legalização do que só as mulheres economicamente favorecidas podiam fazer em segurança.
A legalização do aborto mudou sobretudo a vida das mulheres pobres que decidem abortar. Adiante. Uma coisa é certa: os ovários são das mulheres e só elas podem fazer o que quiserem com os seus ovários. Qualquer proposta política que ponha em causa a integridade do corpo como sanção para qualquer comportamento é um acto de barbárie e uma exibição fascista pura e dura.
Avancemos na fotografia panorâmica, ainda mais para a direita, na extrema: A maior aldrabice da história da política portuguesa chama-se Chega.
O partido e os seus dirigentes estão metidos até ao pescoço com o pior que se conhece do sistema financeiro português quando dizem ter como missão denunciá-lo.
Não vale a pena repetir o que disse a deputada Mariana Mortágua na Assembleia da República na passada sexta-feira mas vale certamente a pena recomendar que a vejam e ouçam.
É inovador: venho para lutar contra o sistema mas sou a escória do sistema, sou vegan mas proprietário de um matadouro.
Continuemos com a fotografia panorâmica para focar agora a economia: Bolas, demorámos demasiado tempo, devíamos ter começado por aqui. A economia entretanto caiu.
Deixemos a fotografia. Quem está sempre agarrado ao telefone para se sentir, e estar, ligado à comunidade acaba por estar ausente do sítio onde efectivamente está. E isto faz falta.
A democracia assenta numa ideia boa: a de que todos são iguais e que, por isso, o voto de cada um dos eleitores vale o mesmo. Está correcto. Acontece que temos más notícias:
Alguns eleitores, e se calhar não são poucos, estão, como no álbum dos Pink Floyd, a viver “A momentary lapse of reason”. Não, nem sequer é isto: há eleitores completamente passados. Mais, há políticos que são verdadeiros vigaristas e que estão a comandá-los. E o que fazer quando o problema da democracia são também os eleitores?
Provavelmente nenhum dos leitores, são eleitores também e espero que não no estado de demência de que aqui se fala, assistiu à entrada de uma raposa num galinheiro. As galinhas costumam dormir alinhadas nas tábuas horizontais de uma quadrícula de madeira que alguém fez há muito tempo. São sempre velhas, as tábuas. Falo das da Serra do Caldeirão, as que conheço. Essas tábuas têm vários níveis e as galinhas, num galinheiro doméstico de tamanho médio, dormem alinhadas em três ou quatro níveis diferentes. Se alguém entrar no galinheiro movimentam-se rapidamente e em alvoroço, correndo sem direcção específica. Não são, aliás, conhecidas pelo tino.
É assim que se passa mas não quando entra uma raposa lá dentro. Aí, ficam petrificadas. Mesmo que alguém entre no galinheiro para as salvar, conseguirá mais depressa que a raposa fuja do que meter as galinhas a correr.
Este é a condição de que padecem alguns eleitores do Chega e refiro-me ao grupo que age de boa consciência. Há lá pessoas que acreditam mesmo que o impostor que está à frente do Chega é contra o sistema e que diz as verdades. Bom, há pessoas que acreditam num príncipe da Nigéria que lhes manda uma carta porque precisa do Iban da conta delas para lá depositar uns milhões e a maioria das mulheres, em algum verão, acreditou que um creme lhes ia tirar a celulite acumulada nas coxas durante uma vida. Todos nós, algures, já acreditámos numa coisa estúpida. Acreditar, esse acto tão elogiado, pode ser terrível.
Bom e parece que estamos a meio de mais um artigo sobre o Chega e sobre a vigarice. Não que seja contra escreverem-se muitos, já direi porquê, mas este é sobre outra coisa.
O maior dilema que enfrenta quem assiste, e tem consciência do significado da ascensão da extrema-direita, é como lidar com ela, como lidar com os eleitores que se comportam como galinhas de galinheiro e como lidar com os potenciais eleitores e que são muitos. São muitos não por mérito desta aldrabice mas porque existe muito descontentamento no eleitorado, muita raiva e muito medo. Grande parte destes sentimentos são justificados ou justificáveis: as falhas do sistema e os erros da classe política saem-nos mais caros do que parece à primeira vista. Já sabemos que este é o ninho onde o fascismo põe os seus ovos.
A verdade é que existe aqui uma decisão muito importante a ser tomada e é também sobre ela que vos quero falar: os cidadãos eleitores devem no geral ser tratados nessa qualidade ou como consumidores/clientes da democracia?
Se o que se verifica é a segunda hipótese não há dúvida nenhuma que repetir o nome André Ventura e Chega é muito bom para os propósitos dos visados. Se os cidadãos se comportam como consumidores, então toda a comunicação política segue os princípios da publicidade.
Aí o que interessa é notoriedade e quanto mais ela existir mais os eleitores vão ficar familiarizados com a existência desta escória e com vontade de a experimentar.
Como me diz um amigo conhecer uma marca política não tem nada a ver com ter um conhecimento profundo do que ela representa ou fazer uma análise crítica às suas propostas nem tão pouco lê-las.
Ou seja: se assumirmos, e aceitarmos, que os eleitores se comportam na democracia como consumidores, estamos todos (comunicação social, comentadores, utilizadores de redes sociais, etc) a jogar o jogo de um grupo de pessoas que deveria estar preso.
Os níveis de notoriedade do André Ventura devem andar próximos do dos maiores políticos portugueses.
Aqui uso o adjectivo “maiores” com alguma generosidade. Ao pé do André Ventura são todos maiores no que de maior existe no adjectivo.
Acontece que aceitar isto – e refiro-me à ideia de um eleitor consumidor/cliente – é conformarmo-nos com o pior da democracia liberal. O que se passou em Évora foi uma convenção de vendas, não foi bem política.
“O fascismo não passará!”
Dizia-se no 25 de Abril e no pós 25 de Abril mas, olhem, não era porque iríamos ficar todos caladinhos a ver se os portugueses não davam pela presença dos fascistas. Porque íamos assobiar para o lado enquanto ouvimos falar em castração química ou amputação de ovários.
Não, era porque o encararíamos de frente e lutaríamos contra ele se preciso fosse. Pois agora é preciso.
E quando se luta perder é uma possibilidade.
Mas uma luta política é uma luta política, não é uma operação de agência de comunicação, e é de luta política que aqui se fala.
A democracia precisa de cidadãos activos e conscientes na política, precisa de galinhas do mato – Zeca Afonso, nunca te esqueceremos.
Voltemos ao Largo do Caldas: há quem tenha saudades do velho CDS.
Não é bem o meu caso mas reconheço a importância, neste momento, de existir uma renovação dos partidos de direita.
As saudades por vezes são “optimismo do passado”, aquele que reconstrói as memórias fazendo-as muito melhores do que os momentos a que correspondem, aquele que faz as pessoas acharem por exemplo que foram muito felizes na infância.
Estamos aqui.
A economia caiu e enfrentamos duas pandemias.
Há caos em cada esquina.
A situação é perfeita para recomeçar. Hoje sou maoísta acidental.
Apertem os cintos (que remédio) que vem aí uma nova viagem.
Ninguém pode prometer que isto vai correr bem mas nunca será aborrecido.
E quando forem votar levem convosco o cartão de cidadão ou então, e se votar for um acto de consumo, neste caso o equivalente à compra, peçam um cartão cliente e comecem a acumular pontos.
Por último: tenham presente que o processo que leva à transformação de um cidadão num simples consumidor também o levará a simples produto.
expresso.pt
Muito bem.
ResponderEliminarEssa da 'Convenção de Vendas' é das melhores definições para definir qualquer acção do Chega pra lá. Repare-se nos gestos e no sempre impecavelmente vestido Ventura, até na AR faz gestos de vendedor de medicamentos milagrosos nas mais simples intervenções.
Em Évora só faltou, mas esteve quase, quase, a ser dito que o covid por cá foi devido a emigrantes africanos e muçulmanos, quase, por se lembrarem do primeiro caso ser dum capitalista que regressou de uma pândegas de Itália.