sexta-feira, 24 de julho de 2020

EXÉRCITO ALEMÃO ENVENENADO PELOS ULTRAS



Por Francisco Herranz

O Exército da Alemanha tem problemas internos tão sérios que já afectam gravemente a sua estrutura organizativa. O germe da extrema-direita, assustadoramente óbvio dentro de certos sectores da Bundeswehr, envenenou as Forças Armadas alemãs criadas em 1955.

A presença da extrema-direita no seio do sistema militar tem vindo a aumentar. Esta tendência deve-se, em boa parte, ao aumento dessa ideologia política não só na sociedade germânica, mas também no Bundestag, a Câmara Baixa do Parlamento federal, onde o partido Alternativa para a Alemanha (AfD) [aliado do partido português Chega, dentro do partido europeu Identidade e Democracia (ID)] conseguiu 12,6% dos votos que se traduziram em 94 lugares nas eleições realizadas em Setembro de 2017. 
Era a primeira vez na história do país que um partido de extrema-direita entrava no Parlamento desde a fundação da República Federal da Alemanha.
O surto de radicais xenófobos concentrou-se particularmente no Comando de Forças Especiais (Kommando Spezialkräfte o KSK, em alemão), uma unidade do tamanho de uma brigada, criada em 1996 e que engloba aproximadamente 1.400 pessoas especializadas em:
- operações aerotransportadas;
- contra-insurgência;
- contra-terrorismo;
- resgate de reféns;
- operações encobertas;
- acção directa (emboscadas, sabotagens e assaltos)
São o equivalente aos SEAL estado-unidenses, os SAS britânicos e os Spetsnaz russos.
- Anti-semitismo nas fileiras
Cada vez são mais frequentes as piadas anti-semitas entre os soldados, piadas de muito mau gosto sobre o Holocausto. (…) Estas situações tornam-se complicadas e quase insustentáveis para aqueles soldados que assistem a estes comportamentos extremistas que não os divulgam, pois sentem desconfiança e medo dos seus próprios companheiros.
“Os que calam são parte do problema e são cúmplices”, disse a ministra da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer, ao tomar conhecimento do assunto.
A questão é muito mais séria que a expressada por Berlim porque não fica nas simples piadas de caserna e vai muito além de palavras grosseiras, passando por factos comprovados.
No passado mês de Maio, um membro do KSK foi detido depois de se descobrir que escondia no jardim de sua casa:
- 6.000 cartuchos de munição;
- vários tipos de armas;
- 2 quilos de explosivos.
O perigo é que o Serviço de Contra-Espionagem Militar (Militärische Absehirmdienst ou MAD em alemão) detectou o desaparecimento de 48.000 cartuchos e 62 quilos de explosivos dos arsenais da Bundeswehr. Isso representa uma potencial ameaça para o sistema, pois já em 2017 foi desmantelada uma rede infiltrada que planeava atentados contra políticos.
A ministra foi obrigada a reagir com dureza e exemplaridade. Numa decisão sem precedentes, dissolveu a segunda companhia do KSK, formada por 70 efectivos, a mais afectada pela corrente ultra, e que não será substituída no futuro. Em geral, o Comando não participará em manobras nem missões internacionais até que termine o processo de renovação/depuração.
Isso implica a retirada imediata dos soldados colocados no Afeganistão e no Mali, onde actualmente prestam serviço. Kramp-Karrenbauer denunciou que na unidade de elite “dirigentes tóxicos” espalham “ideias extremistas”. Um dos vice-ministros, Peter Tauber, foi ainda mais longe, chegando a lançar um ultimato ao comandante da brigada. O prazo termina em Outubro.
“Se os efeitos de auto-limpeza não forem suficientemente eficazes, surgirá inevitavelmente a questão de saber se o KSK se pode manter na forma actual e na sua localização actual”, disse Tauber.
- Extremismo para além das tropas especiais
O extremismo não se circunscreve às tropas especiais mas a todas as Forças Armadas pois cerca de 550 militares estão a ser investigados. Casos isolados, se considerarmos que a Bundeswehr conta com 180.000 efectivos, mas muito significativo. Partidos de esquerda e ecologistas denunciam a cultura de “fazer vista grossa” e banalização destas atitudes intransigentes.
A ex-ministra da Defesa e actual presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, já reformou a estrutura do MAD e colocou na sua cúpula mais civis e menos militares, consciente que os uniformizados são demasiado benevolentes com os soldados de extrema-direita.
A jornalista de investigação Carolina Walter considera que tudo isto é apenas “a ponta do icebergue”. Walter, que trabalha no canal de televisão ARD, sabe do que fala pois é a co-autora do livro «Extrema segurança». Insiste em que existem “demasiados casos” ocultos que estão a ser “levemente” punidos pelos seus superiores. Os números são “muito maiores que os indicados”, acredita.
“O problema é que aquele que denuncia os extremistas de direita é um traidor que atenta contra um suposto espírito de camaradagem”, reconhece Walter.
O debate sobre o tema leva a opinião pública alemã a questionar se foi uma decisão acertada acabar, em 2011, com o serviço militar obrigatório, um passo aplaudido por todas as formações políticas nacionais [em Portugal, a decisão de terminar com o serviço militar obrigatório, foi aprovada em 1999 pelo executivo então chefiado por António Guterres, com os votos favoráveis do PS e do CDS-PP, contra do PCP e a abstenção do PSD. O diploma previa um período de transição de quatro anos e foi este o motivo da abstenção do PSD, que tinha proposto o fim imediato do SMO].
- “Liderança interior”
O objectivo do Bundeswehr foi comprometer-se na defesa da democracia e dos direitos humanos, criando “cidadãos de uniforme” que se baseassem no que a doutrina militar alemã denomina de “liderança interior”, ou seja, a responsabilidade de cada indivíduo e a lealdade à Constituição alemã. Este princípio de auto-disciplina aplica-se aos três exércitos e, é claro, às tropas especiais, o «crème de la crème».
O referido conceito, supunha, nos anos 50, uma dupla revolução:
- na relação entre as Forças Armadas e a sociedade;
- na relação entre superiores e subordinados.
O Exército deixou de ser uma parte independente e isolada da nação-Estado para se tornar numa parte inseparável desta. E numa Alemanha democrática, as Forças Armadas devem ser democráticas.
A “liderança interior” é uma responsabilidade que recai desde o general até ao soldado: qualquer que observe um comportamento negativo deve denunciá-lo. Isso capacita qualquer militar alemão a desobedecer a uma ordem quando está convencido que essa ordem é inconstitucional, contrária às leis da guerra ou contrária à dignidade humana. Por isso, quando a ministra da Defesa fala de “muro de silêncio” em relação aos extremistas, o que as suas palavras sugerem é muito grave: o princípio fundamental de ser militar alemão fracassou.
E isso afecta não só os responsáveis militares das unidades e a autoridade civil supervisora mas também os capelães militares, tanto católicos como protestantes, que acompanham as tropas no Afeganistão ou outros destinos de risco.
Fonte: Sputnik

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