Chega a haver situações a roçar a escravatura, há máfias organizadas, em alguns casos passam fome. Uma boa parte dos cerca de 30 mil trabalhadores agrícolas que erram entre Algarve e Alentejo ao sabor das campanhas e safras agrícolas não têm qualquer tipo de segurança e vivem em total precariedade. Outros têm mais sorte e chegam a trazer as famílias. A maioria vem de países asiáticos, mas também há muitos do Leste europeu e até brasileiros
Ninguém sabe ao certo quantos são, aparecem e desaparecem aqui e ali por todo o sul do País, mas calcula-se que haverá pelo menos 30 mil imigrantes estrangeiros a trabalhar entre Alentejo e Algarve, muitas vezes saltitando entre as duas regiões. Calcula-se que 90% dos trabalhadores agrícolas do sul português são estrangeiros, os portugueses preferem o Turismo e a “limpeza” do setor dos serviços.
A maioria são indo-asiáticos, provenientes da Índia, Bangladesh, Nepal, Paquistão, Tailândia. No interior do Alentejo há muita gente africana. Mas também chegam do Leste europeu, Moldávia, Ucrânia, Roménia. E do Brasil.
Saltam entre Algarve e Alentejo ao sabor das campanhas (frutos vermelhos, azeitona, uva), mas muitos deambulam por regiões mais longínquas, vão à campanha da pera no litoral Oeste, chegam às vinhas do Douro ou até às vinhas de Trás-Os-Montes.
Mas é no sul do País que sobretudo se estabelecem: “Há um ciclo, que começa em janeiro no Algarve com os frutos vermelhos , depois vão para o Oeste também com frutos vermelhos, a seguir fazem a campanha da uva sem grainha no Alentejo, continuam no Alentejo com frutos vermelhos do final de maio até setembro (Odemira); depois fazem a campanha da pera no Oeste e terminam em novembro e dezembro nos olivais do interior alentejano. Muitos tiram férias em dezembro e janeiro. De 15 de dezembro a finais de janeiro alguns vão às suas terras de origem”, detalhou ao JORNAL do ALGARVE o empresário agrícola Tiago Andrade, 42 ano, da Hubel, empresa de frutos vermelhos situada no Pechão, entre Tavira e Olhão, que chega a empregar, no pico das campanhas, 580 trabalhadores imigrantes.
Não é o caso da Hubel, uma start-up agrícola recente e modernizada, com fortes exigências quanto à legalidade e qualidade das condições humanas da sua mão-de-obra, mas muitos dos trabalhadores que alternam entre Alentejo e Algarve vivem em precárias condições de habitação, alguns são explorados por autênticas máfias organizadas com ramificações entre os seus países de origem e destino.
Empresas de trabalho temporário que desaparecem
Alberto Matos, 67 anos, dirigente da Solidariedade Imigrante – a maior associação portuguesa de defesa dos imigrantes – reside no interior do Alentejo e sabe do que fala quando fala de mão-de-obra explorada: “Muitos deles legalizaram-se. Eles estão cá, ninguém os expulsa, esse não é o problema. A questão é se muitos estão ilegais a ser ultra-explorados, ou se estando legais ou em situação de regularização estão regularizados no sistema de trabalho”.
“Quer no litoral, quer no interior, raramente os agricultores empregam diretamente as pessoas: recorrem a empresas de trabalho temporário e, pior do que isso, a empresas prestadoras de serviços, que alugam mão-de-obra à hora. Raramente têm um mês inteiro de descontos, porque a tarefa acaba e aí muitas vezes há precaridade total e ainda há pessoas em situação irregular, embora com esses contratos depois se comecem a regularizar. Mas há muitos que, estando em processo de legalização ou legalizados, são sujeitos a uma exploração muito grande”, acrescenta o dirigente associativo.
O problema não é, portanto, a legalização desses imigrantes. É muitos deles serem vítimas de esquemas de angariação de mão-de-obra que passam por empresas de trabalho temporário sem escrúpulos. “Estou a falar de prestadores de serviços que são criados na hora e desaparecem no minuto seguinte, nomeadamente quando o Fisco e a Segurança Social vão atrás deles, por não terem pago. São criadas em espaço europeu ou fora dele, movimentam-se com a maior facilidade. E muitos empresários agrícolas, mesmo com contratos de trabalho, que não estão para ter compromissos com muita gente, recorrem a estas empresas, sobretudo nos picos de trabalho”, enuncia Alberto Matos.
Em caso de ilegalidade flagrante, o dono da terra também é responsabilizado, segunda a legislação da responsabilidade solidária, de 2016. “O problema é que tem que haver alguém condenado com trânsito em julgado e normalmente esses pequeninos são muito difíceis de apanhar, porque desaparecem e é difícil haver alguém condenado com trânsito em julgado. Senão os donos da terra tinham que pensar duas vezes sobre quem metem lá dentro”, salienta o dirigente da Solidariedade Imigrante.
Empresas que asseguram o transporte dos trabalhadores dos tugúrios onde habitam até às explorações agrícolas: “São carrinhas cheias de gente, agora em período de pandemia a GNR tem feito fiscalização. Mas transportam em carrinhas velhas. E essa gente está a ser transportada como gado para as explorações. São empresas que têm nomes engraçadíssimos, como Golden Practice, Comitiva Radical, Work Permit ou Wonderfull World”, pormenoriza Alberto Matos.
Quinze dias a comer melão
Quando essas empresas desaparecem, não é só a Segurança Social ou a ATT que deixam de receber o que lhes é devido: os trabalhadores contratualizados também ficam a arder, muitas vezes abandonados à sua sorte. Acabam por desaparecer e repetir o ciclo da exploração com outra empresa, conforme aprofunda Alberto Matos: “Os contratos dizem que ganham o salário mínimo, mas como aquilo é à hora e é proporcional, podem ganhar três euros, 3,5 euros, chegam a ganhar 2,5 euros à hora. E isso é quando lhes pagam, porque há situações em que os pequenos empresários desaparecem e deixam os trabalhadores sem dinheiro, sem comida, à fome. No fim da campanha da azeitona, no interior do Alentejo, há pessoas abandonadas em casas. E ao fim de 15 dias, um mês de comerem miseravelmente, apenas o mínimo para irem trabalhar… Soubemos de uns, da campanha do melão, que a empresa desapareceu e eles só comiam melão. Ao fim de 15 dias já nem dava para trabalhar. Iam-se embora, levavam-nos, ou eles próprios pediam para irem embora. E depois vinham mais. É um mundo cão”.
“Nas campanhas, que são limitadas no tempo, os empresários não querem compromissos com trabalhadores e dá-lhes jeito haver essas empresas de trabalho temporário”, explicou por seu turno ao JA um técnico agrícola do Algarve que pediu para não ser identificado. E acrescenta: “Todas as estufas de frutos vermelhos, no Algarve e Alentejo, vivem dessa gente e está cada vez mais a viver dessa gente toda a agricultura em geral”.
Uma necessidade explicada, segundo a mesma fonte, pela forte concorrência do setor, com os preços a serem pressionados para baixo pelas grandes empresas distribuidoras: “O mercado é muito concorrencial. O negócio dos pequenos frutos vermelhos é, em grande parte, para exportação, mas há muita produção que vai para as grandes superfícies, que escoam os produtos mas ao mesmo tempo esmagam preços. O agricultor tem que se defender e tem que ser eficiente, ter mais produção e menos área e diminuir ao máximo os fatores de produção, entre eles a mão-de-obra, energia e água”. Vai daí, argumenta a fonte anónima, o esmagamento do salário do “elo mais fraco” da cadeia é o corolário lógico dessa gigantesca pressão dos preços para baixo. Se os preços não estiverem à altura das exigências dos hipermercados, haverá quem os tenha.
Há não muitos anos o SEF detetou situações de escravatura. Gente que chega cá em situações de dependência tal que tem que garantir o pagamento a quem os trás, como acontece com as prostitutas. Ficam em dívida para pagar o buraco onde vivem, o transporte que tiveram, a legalização. Não recebem em quase nada, é um tráfico de carne que ali está”, afirma o técnico agrícola.
O dirigente da Solidariedade Imigrante detalha, com números exemplificativos: “Essas empresas descontam-lhes a habitação miserável, em contentores ou em casas superlotadas: por exemplo 50 euros por mês. São autênticas aldeias de contentores, 10 mil euros por mês. Cobram-lhes o transporte. Quando chegam ao fim do mês em vez de 600 euros recebem 300, porque o resto foi-lhes descontado”.
Guardados por seguranças armados
Mas os esquemas ilegais não se esgotam nas empresas de trabalho temporário que aparecem e desaparecem. Há casos piores, autênticas máfias de exploração de mão-de-obra, segundo Alberto Matos: “Há casos em que o dono da propriedade faz um contrato com um grupo de mafiosos quaisquer, pelo preço mais barato. O dono da terra é o principal beneficiado, porque apanham-lhe a azeitona ao quilo, à tarefa. E pelo preço mais barato ‘Você apanha-me 500 hectares por X’ e esse ainda subcontrata a outro, 100 a um, 50 a outro. Isto são preços que não davam nem para pagar salários quanto mais Segurança Social e impostos. E sobra sempre para alguém e alguns nem salário recebem ou recebem muito pouco”.
Nos casos dos romenos e moldavos nem há empresa nenhuma, segundo o mesmo dirigente associativo: “São umas camionetes que chegam todas as semanas, na altura da azeitona, com matrícula moldava. Vêm uns e vão outros, porque uns ficam e alguns até têm a sorte de receber dinheiro, mas a maioria só quer ir outra vez para casa e que não os chateiem. As famílias nos países de origem estão reféns destas máfias. Estão ameaçadas. Algumas dessas empresas, nomeadamente moldavas, nem legalizadas são”. Nalguns casos, acrescenta, chegam em autocarros fretados de 55 lugares de matrícula moldava, ou romena.
No Alentejo foram identificados casos, acrescenta Alberto Matos, de propriedades guardadas por homens armados até aos dentes: “Em cada casa não há patrões… há é um ou dois seguranças daqueles bem encorpados, ex-militares, ex-polícias, com armas, que mantêm outros sob coação. Isso passa-se sobretudo com moldavos. Depois são detetados e dizem que não querem voltar para a mesma casa. Vai lá o SEF e não há patrões”.
A continuidade geográfica entre Alentejo e Algarve permite que os fenómenos que ocorrem sobretudo, em massa, no distrito de Beja acabem por ter continuidade a sul, em menor quantidade. É o caso do concelho de Aljezur (Rogil, Odeceixe), onde se repetem situações verificadas em grande escala no concelho de Odemira. Sobretudo na chamada agricultura de precisão, os frutos vermelhos.
Ascender de trabalhador agrícola a “mafioso”
Segundo Alberto Matos, só o concelho de Odemira tem 270 parques de contentores, com pelo menos quatro contentores cada um. O dirigente calcula que no perímetro de Odemira haja 8 a 10 mil imigrantes e no concelho de Aljezur mil a 2 mil. Uma proporção que é semelhante à da área agrícola afeta à produção de frutos vermelhos nos dois concelhos: 12 mil hectares no perímetro de rega do Mira a norte do rio Seixe e mais de mil hectares no Algarve, calcula o técnico agrícola anónimo, estimando que entre registados e não registados o número total de trabalhadores só naquela zona, no pico da apanha, possa rondar os 20 mil. O dobro dos calculados por Alberto Matos.
Romper com o ciclo de exploração e permitir condições de legalização tem sido a estratégia das autoridades. Alberto Matos reconhece, aliás, que Portugal é um dos países europeus com melhores condições e pré-requisitos para a legalização de imigrantes.
Para romper esse ciclo, é preciso acabar com a estrutura piramidal e criar condições para que não se reproduza a exploração: “Atualmente, o que chega cá primeiro começa a falar bem português a tendência é ele aperceber-se do negócio e começar a ser angariador dos outros. Ele trata de tudo. Acaba por se criar um esquema de máfia. Alugam uma garagem por 200 euros e metem lá 10 pessoas, a 150 cada um. E têm advogados a tratar-lhes dos problemas!”, assevera o técnico agrícola anónimo.
Essa rutura já está em curso, assegura a mesma fonte: “Há um conjunto de trabalhadores, sobretudo paquistaneses, que se querem fixar e trouxeram já a família, os filhos, querem levá-los à escola. Essa gente está fora do esquema das máfias e tem que se abrir caminho para eles. Enquanto eles viverem naquelas condições, aquilo não acaba”.
O Algarve, dizem as nossas fontes, tem mais condições do que o Alentejo para essa descontinuidade com o ciclo da exploração. “Quando há Turismo, sempre que ele aparece, absorve a mão-de-obra, é trabalho limpo e é preferido em detrimento do trabalho agrícola”, afirma o técnico que temos vindo a citar.
´Para muitos destes trabalhadores, sobretudo os que têm maior formação – e há-os – a agricultura é apenas a porta de entrada. Acontece sobretudo no Algarve. Alberto Matos conta o caso de um seu amigo indiano, economista de formação, que começou na agricultura, mas hoje trabalha num hotel no Algarve “Eu disse-lhe ‘se eles forem espertos, daqui a dois anos és o gerente daquilo’. Ele veio da Índia com qualificações superiores. Apesar de isto ser um mundo cão, Portugal é, na Europa, dos melhores países em termos de Lei de imigração. Alguns conseguem-se libertar destas cadeias e estão perfeitamente integrados. Mas os que estão na base da pirâmide são sempre os que mais sofrem”.
Contentores com ar condicionado e internet
Isto, dizem as nossas fontes, além de o Algarve ter mais condições de habitação do que o Alentejo, região com pouca alvenaria para abrigar trabalhadores temporários.
“Há alguns meses, o Governo legalizou e permitiu que haja ainda mais contentores, com Internet, ar condicionado, porque reconhece que isto era uma miséria. E que as aldeias à volta não têm capacidade para absorver essas pessoas”, sublinhou Alberto Matos.
Já para a fonte anónima que temos vindo a citar, “os contentores não são as piores situações. Muitos deles têm boas condições. O problema é muitos deles serem levados para um buraco sem condições nenhumas, como tantas vezes acontece”.
Nos melhores casos, como acontece com a start-up Hubel, o contentor não é pago e tem boas condições de salubridade e habitabilidade: “Os trabalhadores não pagam renda nos contentores. E eles são nossos”, garantiu ao JA Tiago Andrade, co-administrador da empresa algarvia de frutos vermelhos.
“A nossa empresa cumpre com as regras definidas para os alojamentos. Têm ar condicionado e Internet. Existe uma lei que está definida para alojamentos móveis e temporários e é essa regulamentação dos estaleiros que é o ponto de partida. A regulamentação é já antiga, mas que foi pensada na altura para os estaleiros das obras”, explica o engenheiro.
O empresário reconhece a existência de empresas sem alvará para trabalho temporário “a fazer prestação de serviços de colheita à unidade, ao quilo. Essas empresas acabam por ter menos rigor, aparecem e desaparecem e cobram aos trabalhadores de forma ilegal”.
O bom exemplo da Hubel
Contudo, asseverou que a Hubel não trabalha com esse tipo de empresas: “Só trabalhamos com empresas que têm alvará. Fazer uma empresa na hora custa mil euros, mas para ter um alvará tem que se ter uma garantia mínima de 100 mil euros. Requer músculo financeiro”.
O alvará, esclareceu, possibilita que a empresa de trabalho temporário fique responsabilizada perante a empresa contratante e o próprio trabalhador, caso seja detetada qualquer situação ilegal.
“Nós fiscalizamos todas as empresas que trabalham connosco, é uma obrigação que faz parte para nós termos a certificação em termos de work wellfare . Fiscalização: recibos, transferências e pagamento da Segurança Social. Mensalmente as empresas têm que nos dar cópias dos recibos e das transferências para as contas dos trabalhadores”.
A Hubel tem cinco unidades de produção entre Tavira e Olhão. “Temos 700 trabalhadores, dos quais 580 são de origem asiática. A maior parte são do Bangladesh, indianos e alguns nepaleses. Alguns estão connosco o ano inteiro, por isso têm as suas próprias residências. Temos capacidade de os alojar nas nossas próprias explorações. Em contentores, temos uma capacidade de alojamento de 350 pessoas. Desses 350 alojados em módulos, 200 são permanentes e os outros 150 vão e vêm durante as campanhas”, precisa o empresário.
Uma das cinco unidades de produção da empresa foi o palco, na passada semana, de uma sessão de esclarecimento para imigrantes sobre os cuidados a ter com a pandemia do COVID-19, que contou com a participação do ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita. Assistiram cerca de uma centena de imigrantes, sobretudo da região indo-asiática.
Não é a primeira vez que os imigrantes que trabalham em explorações agrícolas algarvias são notícia nos tempos mais recentes e, nos demais casos, por razões bem mais infelizes: um total de cerca de 80 trabalhadores de duas explorações agrícolas, dos concelhos de Faro e Tavira, foram vítimas de surtos de COVID-19. Duas dezenas estavam infetados.
João Prudêncio
jornaldoalgarve.pt
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