quinta-feira, 7 de maio de 2020

Cidadania simbólica



Cidadania simbólica
PÚBLICO, 7.5.2020


Entrámos na pior crise económica e social desde 1929, na de mais rápido agravamento, na mais global (ela é, ao contrário da de 2007-15, e até da de 1929, simultânea em todas as economias à escala planetária), e, aparentemente, uma grande parte dos portugueses parece querer enfrentá-la em silêncio e resignação. Em (re)confinamento, prescindindo de cada vez mais direitos. É o que se deduz da nova campanha contra a forma como a CGTP assinalou o 1º de Maio, depois da retórica fascizante (desculpem, mas em rigor não há outro termo adequado) da campanha contra as comemorações do 25 de Abril. Por mais cuidados com que a CGTP tenha convocado umas poucas centenas de pessoas para a rua, por mais respeito pelas regras de distanciamento, este segundo surto de indignação facebookeira continua a sair dessa estranha (sobretudo perigosa para a democracia) religião do confinamento, ou seja, a tese de que ele não é apenas um instrumento de uso racional, mas uma distopia político-moral, na qual se entende que sai da comunidade quem sair do confinamento para exercer os seus direitos, como se fosse um terrorista pelo terror social que estes indignados dizem que provoca.
Marcelo, que sabe bem que o universo político em que se move é este, e que tinha achado, no 25 de Abril, que "é precisamente em situações excecionais que se impõe costumes e rituais” como os dos feriados "essenciais", veio agora, com ânimo salomónico, colar-se ao surto e prescrever à CGTP - e a todos nós - uma comemoração "simbólica" do Dia dos Trabalhadores. Que fizesse como a Igreja, "que já cá anda nisto há muito tempo [sic]", e assinalasse o 1º (como o 13) de Maio, de forma "simbólica". Ou seja, fechados em casa. Há mais de um milhão de trabalhadores em layoff? Façam aí umas coisas bonitas nas redes sociais e já está! Quase 400 mil desempregados? Deem-lhes três minutos online e façam likes; deve chegar para ser "simbólico". Trabalhadores que, não ficando atrás de um ecrã caseiro, vão todos os dias trabalhar para a assegurar o direito à saúde, a limpeza, os transportes, a produção e a distribuição do que todos comemos, consumimos, precisamos - e o dia era deles? Ficassem em casa a cumprir a parte que lhes cabe do confinamento.
O jurista e constitucionalista que temos como Presidente, e com ele demasiada gente, presume que todos já somos simples portadores de uma cidadania simbólica. Depois de os três decretos de emergência que assinou, e que viu aprovados por todos os maiores partidos salvo o PCP, terem suspendido direitos dos trabalhadores, presume agora que deveria suspender-se o direito de manifestação. No que este tem de liberdade de expressão, Marcelo redefiniu-o como direito simbólico. Querem os cidadãos protestar? Não o façam em público, e, sobretudo, peçam licença à polícia e à DGS (a de Saúde, ainda não a de Segurança) para protestar. Esta é a distopia do confinamento, (mal) entendido como abandono obrigatório do espaço público, como se nele tivesse deixado de ser possível ser-se trabalhador, ser-se cidadão.
Uma cidadania suspensa, simbólica, que se adequa à perfeição ao que o sociólogo canadiano Engin F. Isin chamava em 2004 o cidadão neurótico (agradeço à Isabel Menezes a referência), "neurótico porque se governa a si próprio através das suas ansiedades, cidadão porque o governo de si próprio [se limita] a procurar calibrar a sua conduta com a da [comunidade]". Neste contexto, o poder político "governa através da neurose", com cidadãos que, em vez de serem "capazes de avaliar alternativas com relativo sucesso para evitar ou eliminar riscos", trata como gente que, perante uma grande diversidade de riscos, se mostra "ansiosa, em stress e cada vez mais insegura, solicitada a gerir a sua própria neurose". Em suma, aquilo que há dias um comandante da GNR definiu como o "dever de cada um ser o polícia de si próprio."
No momento em que a pandemia desencadeou uma crise social de consequências bem mais graves, a longo prazo, que as da pandemia, e quando nos repetem um discurso pseudoprofético de que estamos a entrar num novo mundo, é urgente regressar ao espaço público, à cidadania plena, reapropriarmo-nos da dignidade que o vírus, afinal, não nos roubou, mas que demasiada gente dela quer prescindir, e obrigar os outros a fazê-lo. O sentido de comunidade não está no medo paralisante. Está na cidadania plena. E se esta se manifesta na rua, é na rua que está a cidadania.


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