domingo, 1 de março de 2020

Amazónia: A Virgem e a Floresta

Amazonia
Amazónia. Entranhada num imaginário colectivo europeu como ícone de uma natureza prístina e selvagem, último reduto da biodiversidade global e de tribos indígenas não contactadas, a Amazónia é retratada como um «território inexplorado» a que cabe o papel de pulmão do mundo»’. 

É a maior floresta tropical do mundo, cobrindo cerca de 5.5 milhões de hectares, representando globalmente 40% das florestas tropicais e 20% da água doce disponível, enquanto produz 20% do oxigénio que respiramos e absorve cerca de 2.2 biliões de toneladas de carbono por ano, aproximadamente um quarto das emissões de carbono anuais emitidas por consumo de combustíveis fósseis. 

Assim, quando em Agosto deste ano as imagens de uma coluna de fumo a chegar a São Paulo e a notícia de que a Amazónia estava a arder correram mundo, a comunidade internacional reagiu prontamente repudiando as políticas ambientais do governo de Bolsonaro. 

Apesar dos incêndios que consumiam a Sibéria, a bacia do Congo e a ilha do Bornéu na Indonésia na mesma altura, só quando a Amazónia arde é que as chamas parecem acordar o mundo, onde este imaginário colectivo de uma natureza virgem e inexplorada, em risco de desaparecer, continua a manter a Amazónia sob o fogo cruzado de múltiplas tentativas de colonização.
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Mais de 34 milhões de pessoas vivem na região da Amazónia, algumas em centros urbanos como Iquitos (Perú) e Manaus (Brasil), a larga maioria em comunidades nativas e campesinas que desenvolveram sofisticados modos de vida, os quais lhes permitem adaptar-se e co-existir com um ecossistema que sustenta entre 10% e 15% da biodiversidade terrestre global. 

A Amazónia é uma floresta-rio que respira ao ritmo das águas: durante metade do ano a enchente inunda quase toda a floresta deixando apenas algumas ilhas — as terras altas —; na outra metade os rios baixam, deixando a descoberto a planície verde e pantanosa, assim como os campos férteis para cultivos — as terras baixas. 

Os acessos são feitos por rio, através do Amazonas e dos seus muitos afluentes, as poucas estradas que existem vão dar a parte nenhuma fora dos centros urbanos. Mas o «inferno verde», como alguns lhe chamaram, está longe de ser a paisagem bucólica de uma natureza vista à distância. Dentro da Amazónia o único horizonte é o rio; tudo o mais é floresta densa onde a visão não abarca além de escassos metros no caminho. 

A humidade cola-se à pele, juntamente com um cheiro adocicado a pólen e frutos. O ar permeia-se de múltiplos zumbidos, sibilados, restolhares e cantos de pássaros e insectos, o ruído é ensurdecedor e, por vezes, atordoador. Para onde quer que se olhe, tudo mexe e vibra, repleto de vida. Aqui nunca se está só e, numa terra onde a visão não alcança, ver é principalmente o som que alerta aqueles que sabem interpretar os perigos ou a oportunidade.
No entanto, apesar de indomada, a Amazónia é mais do que uma «floresta virgem». A população da Amazónia inclui mais de 350 grupos étnicos diferentes, cujos territórios abarcam actualmente pelo menos 30% da sua área total. Durante milénios, estas comunidades nativas ocuparam e geriram estes territórios, transformando a paisagem onde vivem através de práticas de gestão florestal, incluindo agricultura de roça e rotação de cultivos, a propagação e selecção de espécies úteis para a sua subsistência, em muitos casos levando ao desenvolvimento de sociedades complexas assim como ao aumento da fertilidade dos solos e da biodiversidade dos seus territórios. 

A agricultura de roça (ou corte e queima) – frequente e erroneamente associada ao desmatamento de florestas tropicais – é, no entanto, um aspecto fundamental na criação de diferentes nichos e habitats, constituindo vários estados de regeneração florestal ao longo de um gradiente de gestão agroflorestal que, favorecendo diferentes espécies vegetais pelos seus frutos, propriedades medicinais ou outras características úteis na criação de utensílios diversos, sustentam, não só as comunidades humanas como atraem outros habitantes da floresta, desde peixes a pássaros, animais e insectos. Com base em estudos arqueológicos e de distribuição de espécies, estima-se que entre 12% a 35% da Amazónia sejam bosques secundários de origem humana.
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A co-produção destes territórios por comunidades humanas levou à parcial domesticação da Amazónia, não no sentido de controlo sobre os seus recursos naturais e processos ecológicos, mas no sentido emque a sua transformação implica processos de co-adaptação que, por requererem uma constante negociação entre as comunidades humanas e não-humanas e uma compreensão da sua interdependência, levou ao estabelecimento de relações de reciprocidade com a floresta que visam assegurar a subsistência de ambas. 

Assim, a identidade cultural destes povos encontra-se intimamente ligada à sua relação com estes territórios e à reprodução de um conhecimento detalhado sobre os seus ecossistemas, tanto através da tradição oral como de práticas de gestão florestal, que permitem manter e gerir essas relações com a floresta e seus habitantes, enquanto revelam também múltiplas formas de vida não-humana como seres conscientes e intencionais, participantes activos na vida social e cultural da comunidade e nos ciclos naturais da floresta. Na cosmologia dos povos da floresta, todos os seres têm uma mãe ou dono, desde as montanhas aos rios, animais e plantas, que tanto protegem a floresta como podem enganar, causar doenças ou outros problemas aos humanos quando não são respeitados. Estes seres, também representados na figura do Kurupira ou Chullachaqui, têm a capacidade de se metamorfosear e adquirir forma humana, ilustrando uma condição de pessoa não-humana que leva ao estabelecimento de obrigações e proibições sociais para com estes e à sua integração na vida da comunidade.
É neste contexto que imaginar a Amazónia como reduto de uma «natureza prístina» habitada por comunidades nativas que epitomizam um ideal de «nobres selvagens» em harmonia com a natureza, é uma simplificação atroz da complexa paisagem cultural, social e política da Amazónia. Tanto a imagem de uma «natureza virgem» como a de «nobres selvagens» silencia a história das comunidades nativas e dos seus múltiplos processos de resistência, tornando invisíveis o trabalho destas na co-criação de paisagens simultanemante produtivas e biodiversas e a diversidade cultural destes povos e a auto-determinação necessária (como escolha e não destino) na continuada reprodução de práticas, que lhes permitem manter os seus modos de vida entrelaçados com a vida da floresta. Em geral, estes não são povos isolados mas antes povos que, desde há 500 anos, fazem frente a múltiplas tentativas de colonização dos seus territórios e modos de vida, incluindo a depredação dos seus territórios através da extracção de minérios e de petróleo, da construção de barragens, da entrada de garimpeiros, madeireiros e narcotráfico, enquanto as suas culturas são forçadas à vulnerabilidade económica, por falta de acesso aos recursos naturais de que dependem e à marginalidade social que permite a impunidade da perseguição e assassinato dos seus corpos. 

Não nos iludamos: a Amazónia é selvagem – tanto pela força da sua natureza não subjugada, ainda que domesticada e castigada, como pela impenetrável impunidade que rege a lei da selva, invisível a outras fronteiras que não as da própria floresta -, mas certamente não é virgem.

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Para compreender o alcance destas múltiplas tentativas de colonização é preciso começar por desmistificar a Amazónia como «floresta virgem». Este arquétipo de pureza, de onde emana uma percepção de valor natural, aparece enraizado numa conceptualização essencialista da natureza enquanto arquétipo feminino, uma natureza-mãe que nutre e é virgem enquanto antagónica à sociedade: uma natureza tanto mais «valiosa» quanto mais «pura» e tanto mais «pura» quanto menos tocada pelo «homem». Uma noção que é, simultaneamente, associada à percepção da sociedade como um todo, independentemente de estruturas sociais, diferenças culturais ou relações de poder, como responsável pela degradação ambiental dos ecossistemas. 

A imagem de uma «floresta virgem» é assim reproduzida em discursos de protecção ambiental – na forma de parques e reservas naturais que excluem as comunidades nativas da sua gestão e restringem o acesso destas populações aos recursos naturais destas áreas, tornando-os redutos do turismo internacional — como aposta para um desenvolvimento sustentável que só é economicamente viável à custa da deslocalização e transformação das economias locais, através da migração forçada das populações ou da mercantilização do seu folclore. Por outro lado, a mesma imagem é reproduzida em discursos de desenvolvimento económico que, promovendo a industrialização da agricultura e a extracção de recursos, representam a Amazónia como um «território inexplorado», improdutivo e repleto de potenciais recursos naturais — um «el dorado» de riquezas por explorar, onde as comunidades nativas são percebidas como «civilizações primitivas» sem o desenvolvimento nem as tecnologias necessárias para a extracção desses recursos. 

Em qualquer dos casos, a questão é a do controlo sobre os recursos naturais, onde a «floresta virgem» representa um potencial para a exploração, apropriação e mercantilização destes, em prol do desenvolvimento económico da região, seja através de um proteccionismo ambiental que se alimenta do turismo ou através do extractivismo de minérios, petróleo e madeiras e da produção agropecuária, promovendo o desmatamento para abertura de pastagens e culturas comerciais.
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Nesta natureza idealizada são tornados invisíveis e silenciados esses outros modos de vida que, entrelaçados com a floresta, representam não só múltiplas possibilidades de coexistência com o não-humano, mas também de resistência aos modos de vida capitalista e ao fogo cruzado de diversas colonizações. 

Dados de 2014, apontam para uma perda de 17% da cobertura florestal da Amazónia nos últimos 50 anos, grande parte para o aumento de produção de gado e soja, e estima-se que um desmatamento superior a 20-25% possa levar ao colapso do seu equilíbrio ecológico e hidrológico, transformando a floresta tropical em savana. 

Hoje, áreas protegidas cobrem cerca de 25% do bioma Amazónico. No entanto, globalmente, os territórios ocupados ou geridos por comunidades nativas albergam mais de 80% da biodiversidade global; em geral, contendo uma diversidade de espécies tão grande ou maior que áreas protegidas. Apesar disso, apenas uma fracção destes territórios é oficialmente reconhecida por governos nacionais, em parte porque a floresta continua a ser compreendida como «terra improdutiva» e não como sujeito de relações interpessoais e fonte de recursos diversos que suportam a resiliência, subsistência e reprodução cultural de comunidades locais.
A Amazónia está em risco: pelas políticas do governo de Bolsonaro abrirem o caminho ao agronegócio e à impunidade dos ataques aos povos nativos, pela construção de mega-projectos hidroeléctricos – como a barragem de Belo Monte – e que destroem o equilíbrio hídrico da região, pelos muitos derrames de petróleo que poluem os seus afluentes, assim como pelo facto da transformação das economias locais em economias globais acelerar o seu desmatamento, e pelos discursos que apagam a sua história e homogeneízam a sua paisagem cultural e política, para justificar a sua apropriação e exploração. 

No entanto, o que está em risco não é apenas a floresta como ecossistema, mas a floresta enquanto sujeito de múltiplas relações associadas a diferentes percepções, tanto da sociedade como da natureza — a floresta enquanto modo de vida. Para que essa complexa teia de relações vivas prevaleça é fundamental apoiar a auto-determinação dos povos indígenas na demarcação dos seus territórios. Para os povos Amazónicos não é a floresta que precisa de ser protegida, mas sim estes modos de vida e formas de se relacionar que, resistindo à depredação das pessoas e dos ecossistemas, permitem a sua continuidade e constituem o território mais-do-que-humano dos povos nativos.
Texto de Joana Canelas [jfc21@kent.ac.uk]
Fotos de Luana Noví


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