quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

ENTÃO O GOVERNO NÃO PÕE ISTO A BRANCO ? - OS INQUIETANTES MISTÉRIOS DO VOO TP173 PARA CARACAS (José Goulão)




OS INQUIETANTES MISTÉRIOS DO VOO TP173 PARA CARACAS
José Goulão
Por muito que o Chefe de Estado, ministros, TAP e a comunicação social corporativa tentem compor uma imagem de vitimização, própria de quem pretende desviar o assunto da sua essência, a verdade é que existiram anomalias graves, e que estão a necessitar de explicações sérias, relacionadas com o voo TP173 de Lisboa para Caracas, no dia 13 de Fevereiro.
O ministro da Administração Interna prometeu uma investigação às ocorrências. Apesar de não ter sido concluída – pelo menos os seus resultados não foram divulgados a quem tem mais direito de conhecê-los, os portugueses – o Chefe de Estado acha que as decisões da Venezuela anunciadas na sequência do comportamento da TAP no citado voo são “injustas e inaceitáveis”; o ministro dos Estrangeiros, o mesmo que se preocupa com o racismo sobretudo porque “dá má imagem de Portugal no estrangeiro”, entende que as atitudes de Caracas são “inamistosas e injustificadas”; e a companhia aérea considera, mesmo sem dar explicações oficiais sobre o ocorrido, que a suspensão de voos para a capital venezuelana durante 90 dias imposta por Caracas é uma “medida gravosa que prejudica os nossos passageiros”.
Ao Chefe de Estado teria sido melhor esperar pelo apuramento dos factos porque a Pátria não está acima de qualquer suspeita e alguns dados que circulam exigem aprofundamento e o correspondente esclarecimento; ao chefe das Necessidades poderá perguntar-se, já que fala de amizade, se não será “inamistoso” para os venezuelanos o “reconhecimento político” atribuído a um indivíduo que não participou em eleições presidenciais e que corre mundo a pedir aos governos que aprofundem sanções contra o seu povo; e à TAP será oportuno lembrar que deveria ter pensado nos passageiros logo na altura em que tornou possível a existência de ocorrências que estão na base das acusações venezuelanas.
O estranho caso do senhor António Márquez
Enunciando os factos que correm mundo desde o dia 13 de Fevereiro não será difícil perceber que é necessário investigá-los com profundidade e apurar responsabilidades. Fazer antecipadamente de vítima, porém, é um mau prenúncio quanto à disponibilidade das autoridades portuguesas para actuarem com transparência.
No voo TP173 de Lisboa para Caracas embarcou Juan Guaidó, cidadão venezuelano que há um ano se autoproclamou presidente do país sem ter concorrido ao cargo e que recentemente teve de provocar uma secessão na Assembleia Nacional para continuar a afirmar-se “presidente” deste órgão, sendo-o apenas de uma facção dissidente. De Guaidó, um instrumento nas mãos de Donald Trump, conhecem-se igualmente práticas terroristas, golpistas e a apropriação a título pessoal de bens enviados para o país a título “humanitário”.
O nome de Juan Guaidó não figurou, no entanto, na lista de passageiros do voo TP173. Terá o “interino” viajado clandestinamente? Nem tanto: fê-lo disfarçadamente: tornou-se “António Márquez” recorrendo a outra combinação de nomes presentes na sua identificação. Isto é, por alguma razão que ele, a TAP, provavelmente o ministro Santos Silva e o Departamento de Estado norte-americano saberão, o “presidente” e também golpista de 30 de Abril de 2019 quis passar despercebido num voo da TAP que o levou de regresso à Pátria depois de ter andado a pedir a alguns dos principais dirigentes do mundo que contribuam com novas sanções para a fome dos seus compatriotas.
Fome? Exagero? Definitivamente não. Eis como em 12 de Outubro de 2018 o embaixador dos Estados Unidos em Caracas, William Brownfield, definiu as sanções contra a Venezuela:
“Devemos tratá-las como uma agonia, uma tragédia continuada até que chegue a um final (…) e se pudermos fazer alguma coisa para acelerá-la devemos fazê-la, mas devemos fazê-la percebendo que irá ter um impacto negativo em milhões de pessoas que já estão com dificuldades em encontrar alimentos e medicamentos (…) o fim desejado justifica este severo castigo”.
Foi em nome deste “fim” que Juan Guaidó fez o recente périplo pela Europa e pelos Estados Unidos até entrar como António Márquez no avião da TAP que o devolveu a Caracas.
Um tio à prova de bala
Com Juan ou António viajou outro Márquez, Juan José, seu tio, “seu mentor e seu guia que o incentivou a realizar os seus sonhos e objectivos”, como o definiu um velho amigo do próprio, Ángel Briceño, numa entrevista à BBC.
Juan José Márquez entrou no avião da TAP envergando um colete à prova de bala, o que é absolutamente vedado pelos regulamentos da Organização Internacional da Aviação Civil (OIAC). Desconhece-se a razão de tal precaução – mas, segundo as alegações das autoridades venezuelanas, a companhia de bandeira portuguesa não tomou as necessárias medidas para fazer cumprir os regulamentos. Nas bagagens do tio Márquez viajou ainda um outro colete à prova de bala, não detectado pelos serviços de segurança do aeroporto. Nas declarações conhecidas atribuídas à TAP não surge qualquer alusão ao comprometedor episódio relacionado com este tipo de vestuário ilegal.
O tio Márquez, ao que dizem as autoridades venezuelanas, era uma autêntica caixinha de surpresas. À chegada a Caracas os serviços de segurança apreenderam-lhe materiais explosivos nos compartimentos para as baterias de duas lanternas eléctricas e em cinco recargas de perfumes.
Nada disto foi detectado pela segurança do lado de Lisboa. E tê-lo-ia sido, assegura uma declaração atribuída a uma fonte da TAP. Porém, há estudos das universidades norte-americanas de San Diego e John Hopkins segundo os quais os scanners de segurança de 160 aeroportos, só nos Estados Unidos, não conseguem detectar o explosivo C4, aquele de que falam os responsáveis de Caracas.
Haverá outras razões para não ter sido detectada matéria explosiva? Juan José Márquez, tio de Juan Guaidó, aliás António Márquez, terá mesmo viajado com explosivos – além dos coletes à prova de bala – a bordo do avião da TAP que fez o voo TP173 para Caracas no dia 13 de Fevereiro? É indispensável que esta situação seja apurada até às últimas consequências, exactamente por questões de segurança dos passageiros e da credibilidade da companhia. A Venezuela foi abrindo caminho entregando provas do que diz à OIAC.
A gravidade deste caso torna ainda mais difícil de perceber a minimização do episódio e a imagem de ofendidas assumida pelas autoridades portuguesas.
Onde entra o embaixador
À chegada a Caracas, muito naturalmente, Juan José Márquez foi detido devido à posse de explosivos. Assim aconteceria, por exemplo, na Bélgica, em Portugal, nos Estados Unidos, na Alemanha ou em qualquer outro país “civilizado”. A investigação da sua bagagem revelou ainda a existência de uma pen com documentos da CIA que demonstram a ligação operacional entre o explosivo viajante e um agente identificado como “Charles”.
O comportamento dos serviços de segurança venezuelanos, porém, foi de “intimidação e detenção arbitrária”, segundo o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Santos Silva.
Como estará então o ministro tão seguro da “arbitrariedade” num caso de detenção por razões que parecem óbvias? Aqui fica uma hipótese: graças à opinião transmitida pelo embaixador de Portugal em Caracas, Carlos Sousa Amaro, de quem as autoridades venezuelanas dizem “ter interferido nos assuntos internos” do país ao “interceder por Juan José Márquez” quando este foi detido. Defender assim tão às cegas um suspeito de transportar explosivos num avião?
De modo que, seguindo a pista aberta pelas explicações oriundas da Venezuela, o embaixador de Portugal estaria no aeroporto de Caracas para receber o avião que transportou Juan Guaidó, aliás transformado num vulgar António Márquez na lista de passageiros da TAP. Presumindo-se, da maneira mais elementar, que o pretendido anonimato do “presidente” venezuelano golpista era do conhecimento de responsáveis pela diplomacia de Portugal e da sua companhia aérea de bandeira – a TAP.
Pelo caminho mais longo
A somar ao “anonimato” de Guaidó na lista de passageiros, aos coletes à prova de bala e aos explosivos do tio, às nada diplomáticas diligências do embaixador de Portugal, a outras supostas irregularidades de que falam as autoridades venezuelanas há ainda mais um elemento de mistério: o roteiro da viagem do trumpista Guaidó.
O que trouxe o “interino” e o tio quase anonimamente até Lisboa, vindos de Boston, quando poderiam ter ligado o Massachusets à Venezuela de maneira muito mais célere e sem mudar de continente?
Talvez seja esta mais uma questão do “interesse nacional” de que os portugueses nada têm de saber pois é sua obrigação confiar em pessoas como o ministro Santos Silva e os “segredos” próprios do métier. Mesmo que não continue a compreender-se o que impeliu o chefe das Necessidades para o “reconhecimento político” de Guaidó paralelo à admissão, “de facto”, de Nicolás Maduro como presidente.
O “reconhecimento político” do também presidente do grupo fascista Voluntad Popular deve-se, segundo Santos Silva, à sua posição “para desencadear eleições livres e transparentes”. O que é extraordinário, porque se trata do mesmo indivíduo que interpretou pelo menos duas tentativas de golpe de Estado desde que se proclamou “presidente interino” e que protagoniza a guerra híbrida montada e desenvolvida em Washington na vigência dos três últimos presidentes norte-americanos para mudar antidemocraticamente o regime em Caracas.
As sanções criminosas, asfixiantes e em muitos casos mortais contra os venezuelanos constituem a frente mais violenta dessa guerra, acima das quais estará unicamente a intervenção militar, sempre no horizonte. Como pode um governo, como o de Portugal, que se diz preocupado com os venezuelanos e a comunidade portuguesa outorgar o seu “reconhecimento político” a um agente desestabilizador ao serviço de interesses contrários aos dos venezuelanos e da comunidade portuguesa - capaz de percorrer o mundo a pedir ainda mais sanções?
Sanções – e quem o diz é o embaixador norte-americano William Brownfield – que “têm impacto em todo o povo, no cidadão comum e corrente (…) ainda que isso provoque um período de sofrimento de meses, talvez de anos”.
Ou, como escreveu o almirante norte-americano Kurt Tidd, ainda como chefe do Comando Sul, nos seus planos da operação “Venezuela Freedom 2”: “É necessário aumentar o processo de desestabilização e de falta de abastecimentos (…) recorrer à matriz através da qual a Venezuela entre numa etapa de crise humanitária por falta de alimentos, água e medicamentos”. Trata-se ainda, diz o almirante Tidd, de “intensificar a descapitalização do país, a fuga de capitais, a deterioração da moeda nacional mediante a aplicação de novas medidas inflacionárias que incrementem essa deterioração. (…) Obstruir todas as importações e, ao mesmo tempo, desmotivar os possíveis investidores estrangeiros”.
Juan Guaidó é um instrumento destas malfeitorias. O seu “reconhecimento político” é um acto que serve objectivamente os interesses norte-americanos, por muito que o ministro Santos Silva tente fazer crer o contrário e afirme cingir-se aos “interesses portugueses”. O Departamento de Estado norte-americano foi muito claro em 9 de Janeiro de 2018: “As sanções financeiras que temos imposto obrigaram o governo (da Venezuela) a cair em incumprimento. Estamos a viver um momento de colapso total na Venezuela. Isso é porque a nossa política funciona, a nossa estratégia funciona e iremos mantê-la”.
É neste cenário abrangente que tem de ser enquadrado o inquietante imbróglio do voo TP173 e dos seus passageiros da família Márquez. Não vale a pena o ministro dos Estrangeiros tentar convencer os portugueses de que a suspensão da TAP imposta pelo governo legítimo da Venezuela é um “acto de retaliação” pelo reconhecimento de Juan Guaidó por Portugal. Nesse caso Caracas teria punido as companhias de bandeira dos mais de 50 países que apostaram no golpismo dirigido por Trump – o que não aconteceu. Ao invés, é a companhia aérea nacional da Venezuela que sofre – e arbitrariamente – os efeitos das sanções ditadas de Washington. Alguma coisa a TAP e a diplomacia portuguesa fizeram em 13 de Fevereiro; seja o que for, é essencial que venha a conhecer-se. Bem basta que continuem os silêncios ministeriais sobre a eventual cumplicidade portuguesa – e da União Europeia – na apropriação indevida por Londres e Washington das toneladas de ouro venezuelano depositadas no Banco de Inglaterra; ou sobre o congelamento das contas da Venezuela no Novo Banco.
No website da Embaixada portuguesa em Caracas pode ler-se: a Venezuela “é um dos países da América Latina com o qual Portugal vem mantendo relações mais próximas”.
Estranha diplomacia esta


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