quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Limpeza racial no Brasil: genocídio versão século XXI?


A morte indiscriminada de pessoas negras e pobres é um fato histórico e institucionalizado no Brasil. O que estamos vivendo hoje é a perpetuação de uma tentativa de limpeza racial impregnada na nossa história.
Manuella Libardi

Policías militares en Río de Janeiro ocupan una favela después de la caída de uno de sus hombres, Río de Janeiro. PA Images.
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A polícia militar do Rio de Janeiro ocupa uma favela após a queda de um de seus homens, Rio de Janeiro.
Uma palavra que tem sido usada nas redes sociais para descrever o aumento da violência policial no Brasil chama a atenção: genocídio. O termo vem sido visto com mais intensidade essa semana, quando o país tenta descrever seu espanto diante da morte da pequena Ágatha Félix, de apenas 8 anos, que, ao que tudo indica, levou um tiro de policiais nas costas no Complexo do Alemão.
“Genocídio. É o que está acontecendo no Brasil com esse governo. E pior! Com o apoio do governo dos EUA! Não apenas pessoas estão sendo mortas. Ecossistemas inteiros são destruídos por esse sistema. Não restará nada... apenas ódio e miséria”, escreveu um usuário do Instagram em inglês em uma postagem do The Economist sobre o assunto.
Outro comentário logo abaixo apenas dizia, também em inglês: “É um genocídio”.
Estamos vivendo um genocídio no Brasil? O termo foi desenvolvido em meados do século XX pelo advogado judeu polonês Raphael Lemkin para descrever o massacre de judeus durante o Holocausto. Em 1948, a Organização das Nações Unidas classificou o genocídio como crime passível de punição, ao aprovar a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio.
Para um crime ser julgado como genocídio, a ONU estabeleceu alguns critérios que teriam que ser cumpridos para ser definido como tal. Nessa definição – bem estrita e específica – inclui matar membros de um grupo étnico, religioso, nacional ou racial; causar danos físicos e/ou mentais; infligir deliberadamente a esse grupo um estilo de vida com a intenção de destruí-lo; impor medidas que previnam o nascimento de novos membros desse grupo; e a transferência de crianças do grupo para outro grupo.
A licença para matar que as forças armadas e policiais brasileiras têm se encaixa em quase todos – se não todos – os aspectos de genocídio citados, mesmo que provar intenção ou premeditação seja judicialmente complexo.
Mas se formos analisar os casos clássicos de genocídio – o Holocausto, o Genocídio Armênio, o Genocídio em Ruanda – eles são caracterizados por eventos específicos que aconteceram durante um período determinado. Nesse contexto, a realidade brasileira difere dos outros casos.
Quando Ágatha leva um tiro de fuzil nas costas quando voltava de um passeio com a mãe em uma kombi, ela vira mais uma vítima dessa tentativa de limpar a população
A morte sistemática de negros e pardos não é um evento pelo qual estamos passando, mas sim uma realidade que vivemos desde que os primeiros africanos tocaram as costas indígenas de Pernambuco em 1539.
A expectativa de vida de um negro naquela época era de poucos anos, pois morriam exaustos e eram substituídos por negros em melhores condições, recém-trazidos da África. Após séculos de abuso sistemático, a escravidão culmina nos esforços de eliminar a raça negra através do branqueamento racial, que começa na metade do século XIX, antes mesmo da proibição da escravidão.
Não é de surpreender que entre os intelectuais brasileiros que defendiam a tese do branqueamento racial, um dos que que mais se destacaram foi justamente um antropólogo e médico carioca. Em 1911, João Baptista de Lacerda participou do Congresso Universal das Raças, em Londres, ao qual contribuiu com seu artigo Sur les métis au Brésil, no qual defendia a miscigenação como uma maneira de fazer prevalecer os traços europeus ante os africanos e indígenas.
A Redenção de Cam. Uma família brasileira que gradualmente se torna mais branca.
As teses de branqueamento perderam apoio acadêmico e institucional só depois do fim da Segunda Guerra Mundial, em grande parte pela intervenção de órgãos internacionais como a ONU. Como a população brasileira ainda tem mais de 50% de negros e pardos, fica evidente que a mistura de raças não tem a capacidade de “branquear” o país. Desde então, vivemos um branqueamento violento, no qual a miscigenação é substituída pela criminalização das populações, o que oferece uma justificativa institucional para matar.
Quando Ágatha leva um tiro de fuzil nas costas quando voltava de um passeio com a mãe em uma kombi, ela vira mais uma vítima dessa tentativa de limpar a população. Quando o Presidente Jair Bolsonaro afirma que “bandido bom é bandido morto”, todos sabemos ao que ele se refere por “bandido”.
Retomando a definição de genocídio, um dos pontos inclui infligir um estilo de vida que põe em risco sua sobrevivência. Esse ponto não está coberto pela nossa histórica descriminação judicial que força a população à miséria? As favelas são o resultado da exorbitante desigualdade social que existe no Brasil, uma preocupação que passa longe do governo.
Nós forçamos as populações negras a uma situação de pobreza, e depois as culpamos pelo tráfico de drogas, fruto de uma política histórica de criminalização que nada mais é do que uma justificativa de morte. Durante o evento Ocupa Política deste ano no Recife, uma participante da roda de diálogo, “Antiproibicionismo como estratégia de defesa de vidas negras”, perguntou retoricamente ao grupo se a limpeza racial havia acabado mesmo.
Não é por casualidade que a morte da pequena Ágatha reviveu discussões em torno do pacote anticrime do Ministro da Justiça Sergio Moro
A resposta é não. Nós, brasileiros, sabemos disso. Não é por casualidade que a morte da pequena Ágatha reviveu discussões em torno do pacote anticrime do Ministro da Justiça Sergio Moro. O pacote intende abrandar as punições a policiais e militares que cometem excessos no combate ao crime, o que teria sido o caso na morte de Ágatha.
Numa  quarta-feira (25), grupo de trabalho da Câmara dos Deputados derrubou o excludente de ilicitude proposto no pacote anticrime de Moro. Mas mesmo à sombra da tragédia e sem demonstrar pesar pela morte da menina, Moro continuou defendendo seu projeto depois que o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, defendeu uma avaliação rigorosa sobre o trecho.
Os nossos temores são comprovados pelos números. As mortes em ações policiais no Rio de Janeiro aumentaram em 46% entre janeiro e junho deste ano em relação ao mesmo período do ano anterior. Para cada policial morto, há 89 civis que perdem suas vidas, uma correlação que nunca foi tão alta. Só neste ano (2019), cinco crianças com menos de 12 anos foram mortas pela polícia em operações no Rio de Janeiro. O número de mortes por intervenção policial na cidade é o maior nos últimos 20 anos.
Nós podemos discutir as intenções do governo e das suas medidas o quanto quisermos. Mas os números apontam para uma matança sistemática da população das favelas, que são em sua maioria negra e parda. Genocídio? O caso brasileiro vai além. Quais são as chances dessas vítimas serem reconhecidas e seu sofrimento validado judicialmente? Eu diria que nenhuma.

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