segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Quênia: Rebelião anticolonial dos Mau Mau, genocídio e primeiras reparações -Império Britânico: o que não está nos livros didáticos


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“Quando os Europeus vieram para

a África nós tínhamos nossas terras

e eles suas bíblias Hoje nós temos

suas bíblias e eles têm nossas terras”

Dedan Kimathi, dirigente da rebelião Mau Mau

Por: Cesar Net

No dia 1 de julho de 1895, a Inglaterra ocupou oficialmente uma vasta região na África oriental e a declarou seu “protetorado”. Aqui começou uma longa história de usurpação de terras e minerais, assim como a prática de métodos de extermínio contra aquela população. Foram décadas de humilhações, torturas e assassinatos. Desde o início da colonização até o avançar dos anos, o imperialismo inglês endureceu cada vez mais no controle e repressão dos nativos, e por fim se utilizou dos mesmos métodos e forças que tinham sido utilizadas na II Guerra Mundial, depois que haviam acabado de sair desta. Simplificando o Imperialismo Inglês usou métodos de guerra civil contra a população do Quênia.

A ocupação das terras

Quando o imperialismo Inglês declarou o Quênia como seu protetorado, na verdade ele estava assumindo para si as terras e minerais que eram dos povos que viviam naquela região, em especial os Kikuyo, Meru e Embu. Em primeiro lugar, como medida apaziguadora, os ingleses ocuparam terras que não estavam sendo utilizadas pelas comunidades locais e depois passou a incentivar os moradores locais a trabalharem para eles. Inicialmente, como o ganho era superior ao que conseguiam com a agricultura de subsistência, os nativos aceitavam o emprego e abandonavam as terras nas quais habitavam. Esta terra abandonada passou a ser mais um alvo de ocupação pelos ingleses. Este processo combinado de assalariamento e ocupação das terras foi fundamentalmente a fórmula inicial dos ingleses para a conquista do território. Por volta de 1930, as duas principais reivindicações dos nativos eram: contra os baixos salários e a exigência de uso de um documento de identidade denominado de Kipande. O Kipande era uma espécie de passaporte interno o qual as pessoas eram obrigadas a apresentar para poderem se deslocar dentro do seu próprio país. Isso mesmo, os nativos foram obrigados a apresentar o Kipande ao estrangeiro que havia invadido suas terras.

A usurpação das terras dos nativos por parte dos colonos ingleses, na Província do Vale do Rift, em 1934 foi escandalosa. Para 1.029.442 nativos foram destinadas 18.340 km2. E para 17.000 europeus foram destinadas 17.700 km2. Em outro censo, de 1948, 1.250.000 Kikuyu foram autorizados a utilizarem 5.200 milhas quadradas de terras e enquanto que 30.000 colonos britânicos usufruíam de 12.000 milhas quadradas.

Os colonos ingleses seguiam contratando mão-de-obra cada vez mais barata. Os mecanismos de pressão sobre a população nativa eram enormes. O primeiro foi o Kipande (1918), que tinha o objetivo de controlar o movimento de pessoas e evitar as deserções. Ao mesmo tempo, foram implantadas medidas que começaram a cobrar diversos tipos de impostos, tais como pelo uso da terra, sobre a circulação de mercadorias, entre outros. As medidas cumpriam uma via de mão dupla: desencorajavam o pequeno produtor a seguir lavrando a sua própria terra e, ao mesmo tempo, o obrigava a aceitar os baixos salários.

Para os colonos brancos, os nativos “eram como crianças e deviam ser tratados com tal”, isto significava que as agressões, espancamentos e até mesmo a morte eram tidos como procedimentos naturais. Na Legislação trabalhista queniana, até 1950, eram descritas e aceitas as ações punitivas.

As diversas reações

A oposição dos nativos ao imperialismo britânico se deu desde o início da ocupação. A primeira grande luta ficou conhecida como Resistência Nandi (1895-1905), depois foi a Revolta de Giriama (1913-1914); Revolta das Mulheres de Muranga contra o trabalho forçado (1947), Revolta de Kolloa (1950). Todas estas revoltas foram sufocadas com extrema violência. Winston Churchill, em 1908, chama a repressão de carnificina e afirma que se a Câmara dos Comuns se inteirasse disso, pois os Planos para o Protetorado na África Oriental estariam em risco. Winston Churchill aconselhava que devessem evitar matar em uma escala tão grande. Ou seja, Churchill disse: “matem, mas não matem tanta gente”.

Surge o movimento Mau Mau

Para os nativos a situação se tornava a cada dia mais insuportável. Por volta de 1950 foi criado o KLFA (sigla para o Exército por Terra e Liberdade do Quênia), conhecido popularmente como Mau Mau. O KLFA sabia do poderio militar dos ingleses e sabia também de suas limitações para o combate. Por esse motivo, adotaram a tática da guerra de guerrilhas. As ações dos Mau Mau eram sempre à noite. Usavam armas roubadas, como os revolveres 32 e alguns poucos 38 e usavam também facões, arcos e flechas em seus ataques.  Quando a repressão se intensificou contra os Mau Mau eles fugiram para a selva.

As mulheres com coragem e heroísmo cumpriram um papel muito importante na manutenção das linhas de abastecimento. Elas atravessavam as linhas de guerra das forças coloniais para fornecer alimentos, munições, cuidados médicos e informações. Um número importante de mulheres também lutou nas frentes de batalhas e uma delas, Muthoni Kirima, chegou ao mais alto escalão dos Mau Mau. Muthoni Kirima foi considerada uma “Field Marshal” ou marechal de campo. No dia 3 de outubro de 1952, os Mau Mau cometeram seu primeiro ato político-guerrilheiro, ao matar uma inglesa proprietária de grandes terras. Em decorrência disso, seis dias depois, em 9 de outubro, o Chefe Sênior Waruhiu foi morto a tiros em plena luz do dia em seu carro pelos ingleses. Foi um golpe importante contra o governo colonial, pois Waruhiu foi um dos mais fortes defensores da presença britânica no Quênia.

A reação do imperialismo inglês

Para os ingleses, o Quênia não era uma nação independente, era parte da Inglaterra. O ex-Governador do Protetorado, em 1946, dizia:  “a maior parte da riqueza do pais está em nossas mãos. Este país nós construimos e a  terra é nossa por direito, direito de  construção”. Para os imperialistas ingleses não lhes importava o meio ambiente, as pessoas ou as vidas. Para eles, segundo a mesma autoridade colonial: “o  principal item dos recursos naturais do Quênia é a terra, e neste termo incluímos os recursos minerais da colônia. Parece-nos que o nosso principal objetivo deve ser claramente a preservação e a utilização sensata desta ativo importante”.

A “preservação e a utilização sensata dos recursos” começou com o envio de um novo governador, Evelyn Baring, que talvez tenha sido o mais racista e cruel dos governadores ingleses. Seu pai havia sido governador, com mãos de ferro, no Egito. Baring filho foi governador da Rodésia do Sul (1942-44), Alto Comissário para a África Austral (1944-1951) e governador do Quênia (1952-59). A primeira iniciativa de Baring foi promover prisões em massa. Cerca de 180 presos em um dia, entre eles, Jomo Kenyata. Kenyata e outros foram condenados a longas penas, em processos fraudados. Nenhum dos grandes líderes Mau Mau foi preso nesta operação. Um dia após as prisões, a vingança veio através do assassinato do chefe legalista Nderi, capturado pelos Mau Mau e cortado em pedaços.

Campo de concentração com prisioneiros mau mau

Nos meses seguintes a ofensiva dos Mau Mau prosseguiu e vários colonos ingleses foram assassinados. Evely Baring que acreditava que, com sua superioridade militar, derrotaria facilmente as forças insurgentes. A realidade mostrou que os insurgentes tinham apoio popular e um grande poder de fogo. Restou ao Baring ampliar suas forças. Assim, foram trazidos três batalhões da força conhecida por “Rifles Africanos do Rei”, estes atuavam em Uganda, Tanganica e Maurício. Com isso, no Quênia, haviam cinco batalhões, ao todo, e mais 3.000 soldados composto por quenianos nativos. Somando-se a aqueles foram trazidos também um batalhão de tropas britânicas, os “Fuzileiros de Lancashire”, que estavam no Egito. E em novembro de 1952, Baring solicitou assistência do MI5, o serviço secreto inglês.

Operação Anvil
A capital, cidade de Nairobi, em 1954, era o principal centro de operações dos Mau Mau. Naquele local ocorreu a “Operação Bigorna” que contou com a presença de 25.000 membros das forças repressivas britânicas, comandadas pelo General George Erskine. Erskine havia comandado, nada mais nada menos,  a 7ª Divisão Blindada do Exército Inglês, no período de 1943 a 1944, na Segunda Guerra Mundial. Durante a operação a cidade de Nairobi foi isolada e submetida a uma varredura setor por setor. Todos os moradores foram levados para campos de concentração temporários, aqueles que não eram Kikuyu, Embu ou Meru foram libertados. Os membros destes três povos foram mantidos presos para triagem e verificação de ligação com os Mau Mau. Os homens foram separados para interrogatórios, principalmente no Campo de Concentração Langata, Screening Camp. As mulheres e crianças foram enviadas compulsoriamente para reservas criadas para “limpar” Nairobi de focos indesejáveis. Muitas destas mulheres jamais tinham saído de Nairóbi. A Operação Anvil (ou bigorna) durou duas semanas e nesse lapso 20.000 suspeitos foram enviados para Langata, e dentre estes 30.000 foram enviados para as reservas.

Força Aérea Britânica entra em ação

Field-Marshall-Mwariama-e-seus-dreadlocks-que-influciaram-os-rastafaris-jamaicanos.-Ao-seu-lado-está-Jomo-Kenyata

A mesma RAF (Real Força Aérea) britânica que cumpriu um papel de destaque na II Guerra Mundial, ao destruir 1.887 aviões e provocar a baixa de 25.000 soldados alemães, foi chamada para reprimir os Mau Mau. Entre junho de 1953 e outubro de 1955, a RAF bombardeou as densas florestas para aonde haviam fugido os insurretos. Os bombardeios ocorreram de forma aleatória, porém inicialmente circunscritos à região da floresta. Os relatos militares indicam que por volta de 900 insurgentes foram mortos ou feridos por ataques aéreos. E quanto ao número de civis mortos não encontramos informações. Foram usados aviões Avro Lincoln que espalharam 6 milhões de bombas. Estes mesmos aviões também foram usados para espalhar terror entre a população ao lançar panfletos com fotos de mulheres e crianças mortas. E durante a Operação Cogumelo foi ampliada a área a ser bombardeada para além da floresta, tendo o consentimento de Churchil, no dia 19 de janeiro de 1954. Assim, os bombardeios se estenderam às vilas e cidades, atingindo diretamente a população civil.

Campo de Concentração, Campo de Trabalho Forçado e Campo para Crianças

Tal qual na Alemanha nazista foram instituídos campos de concentração, de trabalhos forçados e para crianças. O modelo nazista que havia sido derrotado na II Guerra Mundial foi usado pelo imperialismo inglês contra os Mau Mau e a população civil. Os presos eram enviados para os campos de concentração, onde havia um sistema de triagem que estabelecia entre os prisioneiros aqueles que eram considerados como ‘recuperáveis’, que por sua vez eram enviados para as reservas, através dos chamados Pipeline. Uma viagem pelos pipeline poderia durar alguns dias. E durante o trânsito, havia frequentemente pouca ou nenhuma comida ou água, e raramente qualquer saneamento. Os presos nos campos de concentração eram proibidos de falar fora de suas cabanas.

Documentos militares da época relatam que nos campos havia: “pouca comida, excesso de trabalho, brutalidade, tratamento humilhante e nojento, flagelação. Violando em todos os aspectos a Declaração Universal dos Direitos Humanos”.Nesse sentido, outro informe, de 22/11/1954, do Chefe de Polícia Arthur Young ao Governador Baring, diz: “os campos apresentam um estado tão deplorável que eles devem ser investigados sem demora, para que as denúncias cada vez maiores de desumanidade e desconsideração dos direitos do cidadão africano sejam minorizadas e para que o Governo não tenha que se envergonhar dos atos que são feitos em seu próprio nome por seus próprios servidores”.Dessa forma, os campos de trabalho forçados eram ainda piores. Para onde iam os recalcitrantes, aqueles que não se dobravam, aqueles que não colaboravam com a repressão imperialista.

Um dos campos de trabalhos forçados, o de Embakasi, ficava próximo ao local onde estava sendo construído o atual aeroporto internacional, cuja construção deveria ficar pronta antes do final do Estado de Emergência. Por sua vez, o aeroporto era um grande projeto, com uma insaciável sede de mão-de-obra e um cronograma de obras apertado. O trabalho forçado, sob disciplina militar, faziam com que os detentos além de não serem remunerados ainda tinham jornadas extenuantes e condições de vida pior que a dos campos de concentração. Além dos campos de concentração e de campos de trabalhos forçados foram criados também para crianças, sendo o mais conhecido o Wamumu Camp.

Os crimes de guerra praticados pelo imperialismo inglês

A historiadora inglesa, Caroline Elkins, calcula que entre 130.000 e 300.000 foram mortos. Porém, seus dados são questionados pelo demógrafo John Blacker que afirma que morreram “apenas” 50.000. Uma coisa é certa, segundo os documentos militares 1.090 pessoas receberam a pena capital. E as torturas variavam do corte as orelhas, perfuração dos tímpanos, derramamento de parafina quente nos corpos, castração e espancamento até a morte.

Hussein Onyango Obama, avô do ex-presidente dos EUA, conta que enfiaram alfinetes em suas unhas e nádegas, além disso teve seus testículos apertados por duas hastes de metal em forma de alicate. Eric Griffith-Jones, procurador-geral dos Campos de Concentração, escreveu para o governador Baring e comparava com as “condições dos nazistas ou da União Soviética”. Este recomendou que os espancamentos não atingissem os rins, fígado e baço. E que os torturadores deveriam ser profissionais, equilibrados e sem paixão.

Derrota militar e vitória política

O ímpeto, o voluntarismo e as atitudes heroicas dos Mau Mau não foram suficientes para vencer. Eles foram derrotados. E foram derrotados pelas Forças Armadas do imperialismo inglês com longa tradição de repressão colonial, além disso, foi ela protagonista nas duas Guerras Mundiais. Uma derrota militar que abalou o movimento de massas. Desde a retirada das tropas inglesas, após a vitória, não houve um dia de sossego para o imperialismo.

Já não se tratava dos métodos guerrilheiros, agora entrava em cena o movimento de massas. Vivia-se a clássica expressão de Lenin: “quando os de cima já não podem governar como antes e os debaixo já não se deixam governar como antes”. No final dos anos 50 do século passado, os ingleses concluíram que já não poderiam governar como antes e começaram a cooptar antigos dirigentes nativos, alguns tinham sido membros ou apoiadores dos Mau Mau. Isso para a formação de um governo de reconciliação.  Em dezembro, de 1960, a Inglaterra suspendeu o Estado de Emergência. Os dois partidos União Nacional Africana do Quênia e União Democrática do Quênia, pactuaram com os ingleses e exigiram que Jomo Kenyatta fosse libertado, fato que se deu em 21 de agosto de 1961. Em maio de 1963, a oposição conquistou 83 das 124 cadeiras no parlamento e Jomo foi eleito Primeiro Ministro. Durante aquele mandato foi orquestrada a independência e a reconciliação. A independência foi declarada em dezembro de 1963 e um ano depois o então Primeiro Ministro se tornou o primeiro Presidente do Quênia.

Um traidor no governo
Jomo Kenyata não só propôs a reconciliação, como também manteve diversos funcionários brancos ligados à guerra, contra os Mau Mau, em cargos chave em seu governo. Ele filiou o Quênia ao Commonwealth (Comunidade das Nações presidida pela Rainha da Inglaterra) e renegou completamente o seu passado como militante Mau Mau. Em abril de 1963 ele afirmava: “Estamos determinados a ter independência em paz e não permitiremos que vagabundos governem o Quênia. Não devemos ter ódio uns pelos outros. Mau Mau era uma doença que foi erradicada, e nunca mais deve ser lembrada”.

Luta por reparações obtém importantes vitórias parciais

Em 2011, quatro quenianos, abriram um processo contra a Inglaterra exigindo reparações pelas violências cometidas entre 1952-1956. Paulo Nzili, Ndiku Mutua, Wambugu Wa Nyingiy e Jane Muthori Mara, são octogenários que viveram o horror da repressão. Os dois, Nzili e Mutua, foram castrados depois de serem acusados de fazer parte da guerrilha dos Mau Mau. Eles afirmam que só ajudaram no fornecimento de água e comida. Já Wa Nyingiy foi preso em vários campos de concentração, foi torturado e nunca soube qual era a acusação contra ele. E Jane Muthori Mara foi presa aos 17 anos, violentada e dentre outras torturas sofrida por ela, a mesma relata que os militares introduziam garrafas com água quente em sua vagina.

Inicialmente, a Inglaterra negou os fatos e alegou falta de provas. Quando a luta pela reparação saiu dos Tribunais e ganhou as ruas, o governo inglês foi obrigado a abrir os arquivos secretos, Foreign Office, e lá se encontram 300 caixas com mais de 1.500 documentos que confirmam as atrocidades, relatavam os diversos episódios e fatos do processo repressivo.

Desde então, o Estado inglês se viu obrigado a reconhecer os crimes de Lesa Humanidade e começou a pagar as indenizações individuais. Em 2013, por exemplo, pagou £ 19.9 libras aos 5.228 quenianos. No entanto, há outros 41.000 reivindicando o mesmo direito. É uma importante vitória parcial e de caráter individual.

A próxima etapa deve seguir o curso de requerer a Reparação Coletiva com o julgamento e condenação dos torturadores e genocidas, devolução das terras e riquezas usurpadas pelos ingleses e mais que tudo, a reparação deve obrigatoriamente apontar para a luta por uma Segunda Independência do Quênia, esta no campo econômico e social.


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Império Britânico: o que não está nos livros didáticos



A maioria dos britânicos tem orgulho do poder hegemônico que o Império Britânico exerceu no mundo por séculos. No auge, em 1920, o Império Britânico dominava cerca de 458 milhões de pessoas, 25% da população mundial e abrangia 20% das terras do planeta. Estendia-se do Caribe (Honduras Britânicas e Guiana Inglesa) até a Austrália e ilhas remotas do Pacífico, passando por um terço da África (destaque para a África do Sul, Nigéria, Egito, Quênia e Uganda) e avançando para a Índia, Birmânia e China. Dizia-se, então, que “o Sol nunca se põe no Império Britânico” pois, devido à sua extensão ao redor do mundo, o Sol sempre estaria brilhando em pelo menos um de seus territórios.

  • BNCC: 8º ano – Habilidade: EF08HI23, EF08HI23, EF08HI26

O Império Britânico no seu apogeu, em 1920. O império teve início em 1583 com a colonização da América do Norte e terminou em 1997 com a devolução de Hong Kong para a China.

Entretanto, o legado desse domínio é desconhecido por boa parte da população britânica que ignora as violências e atrocidades cometidas pelo imperialismo britânico em suas colônias. O tema não é tratado nas salas de aula. O ensino da História imperial e colonial britânica enaltece os feitos dos colonizadores e ignora o lado sombrio do imperialismo que diz respeito aos povos dominados.

O Império Britânico ensinado nas escolas

Uma pesquisa realizada pela YouGov, empresa internacional líder de pesquisa de mercado, e divulgada em janeiro de 2016, revelou que 44% dos britânicos estavam orgulhosos da história do colonialismo britânico, enquanto 21% lamentavam-na e 23% não tinham qualquer opinião.

A mesma pesquisa também perguntou se o Imperialismo britânico foi positivo ou negativo: 43% disseram que foi positivo, enquanto que apenas 19% afirmaram que ele foi negativo, e 23% não souberam avaliar.

Serviçal hindu serve chá a uma senhora britânica, início do século XX.

Britânia, a guerreira de traje branco (seu nome está escrito no capacete) conduz soldados e colonos britânicos em solo africano. Ela leva a “Civilização” enfrentando seu inimigo em cuja bandeira se lê “Barbarismo”. Do cabo ao Cairo, Puck, 1902. Biblioteca do Congresso.

Os resultados da YouGov causaram reação no meio acadêmico e entre as autoridades políticas e educacionais. Os historiadores britânicos são unânimes em enfatizar a importância de se repensar o ensino de História nas escolas:

 “Há uma amnésia coletiva sobre os níveis de violência, exploração e racismo envolvidos em muitos aspectos do imperialismo, para não mencionar as várias atrocidades e catástrofes que foram perpetradas, causadas ou agravadas pela política colonial britânica”. Precisamos de uma educação melhor e um debate público aberto sobre todos os aspectos da história colonial britânica incluindo as feridas, não como um exercício de autoflagelação, mas como um meio de entender melhor o mundo que nos rodeia e como somos vistos pelos outros”. Dra. Andrea Major, professora de História Colonial Britânica da Universidade de Leeds.

“A violência do Império Britânico tem sido esquecida. Precisamos enfrentar essa história e a educação é crucial se quisermos fazê-lo”. Dra. Esme Cleall, professora de História do Império Britânico, da Universidade de Sheffield.

“O tema é praticamente inexistente no currículo. Nosso conhecimento da nossa própria história é muito limitado geograficamente, sem dar qualquer sentido para entender as atrocidades que foram cometidas sob o jugo imperial. Enquanto as pessoas ficam, geralmente, felizes em recordar o passado glorioso, elas são relutantes em enfrentar o lado mais sombrio do império”.  Dra. Pippa Virdee, professora de História Moderna da Ásia Meridional, da Universidade de Montfort.

“Nos últimos anos, tem-se falado muito sobre o papel da Grã-Bretanha em abolir a escravidão, mas pouco de fala sobre o envolvimento da Grã-Bretanha no tráfico de escravos, em primeiro lugar! Temos que ser mais honestos sobre nossa herança imperial, não apenas dentro da sala de aula, mas também fora dela”. Dr. Christopher Prior, professor de História do Século XX, da Universidade de Southampton.

Selo britânico de 1914.

“O Império Britânico representa a paz e a segurança mundial. Defenda-o”, diz o selo britânico de 1914.

O tema está despertando a atenção das autoridades educacionais. O conservador Michael Gove, secretário de Educação entre 2010-2014, afirmou que a história do colonialismo britânico deve ser ensinada nas escolas, enquanto que o líder trabalhista Jeremy Corbyn afirmou que as crianças também devem ser ensinadas sobre os sofrimentos que o imperialismo causou às populações dominadas.

Conhecer a própria História e reconhecer como ela interferiu na vida de outros povos tem sido a tônica de alguns governos contemporâneos. Em 2006, Tony Blair, líder do Partido Trabalhista e primeiro-ministro britânico (1997 a 2007), pediu desculpas sobre o papel da Grã-Bretanha no comércio transatlântico de escravos, descrevendo a prática como um “crime contra a humanidade”.

No entanto, David Cameron, do Partido Conservador e primeiro-ministro britânico (2010 a 2016), em uma visita à Índia em 2013, afirmou ter orgulho dos feitos do Império Britânico. Naquela oportunidade, Cameron recusou-se a pedir desculpa pelo massacre de Amritsar de 1919 (veja abaixo), no qual as tropas imperiais britânicas mataram 379 indianos, incluindo mulheres e crianças, que faziam uma manifestação pacífica pela independência da Índia.  Negou-se, também, a devolver o diamante Koh-i-Noor tomado da Índia em 1850 quando esse país foi anexado ao Império Britânico. Desde então, o célebre diamante faz parte da Coroa da Rainha Mãe.

Seis fatos vergonhosos da história britânica

1. Comércio escravo

Os livros didáticos (britânicos e brasileiros) costumam dar destaque às ações da marinha britânica, no século XIX, de apreensão dos navios negreiros. Isso passa a ideia de uma Grã-Bretanha defensora da liberdade e dos direitos humanos. Na verdade, a Grã-Bretanha teve, também, um importante papel no comércio escravo transatlântico e ele durou mais de dois séculos.

O comércio britânico de escravos começou em 1562, durante o reinado de Elizabeth I, quando John Hawkins, vendeu um lote de africanos aos espanhóis de Santo Domingo em troca de ouro, açúcar e couro. Em pouco tempo, os britânicos dominavam o tráfico de escravos no Caribe estendendo-o depois às 13 colônias inglesas na América do Norte. Estima-se que, até 1807, quando o tráfico foi proibido, os navios negreiros britânicos tenham transportado cerca de 4 milhões de escravos.

Morte de crianças bôeres nos campos de concentração britânicos

Cartoon denunciando o extermínio de crianças bôeres nos campos de concentração britânicos

2. Campos de concentração, África do Sul

Mais de 100 mil bôeres foram presos e colocados em campos de concentração superlotados onde morreram cerca de 27 mil deles, sendo 24 mil crianças (menores de 16 anos), 2.200 mulheres e 800 homens. Os campos de concentração eram a maior arma para vencer a resistência dos bôeres e foram responsáveis pelo extermínio de cerca de 50% de sua população infantil.

Os bôeres, colonos de origem holandesa e francesa, ocupavam a região desde 1830. A descoberta de minas de diamante, ouro e ferro no território atraiu a atenção dos britânicos para estender seus domínios em todo sul da África. A guerra ocorreu em duas etapas: 1880 a 1881 e 1899 a 1902. Os campos de concentração foram construídos no final da guerra.

3. Massacre de Amritsar, na Índia

Em abril de 1919, uma multidão que incluía mulheres e crianças manifestava-se pacificamente contra o domínio britânico em Amritsar, cidade sagrada no norte da Índia. O governo britânico havia proibido aglomerações e protestos públicos e o general Reginald Dyer fez cumprir a ordem: mandou os soldados se posicionarem na única saída da praça e ordenou que atirassem contra a multidão desarmada.  Foi um massacre: 379 mortos e 1.200 feridos em dez minutos de fuzilamento que só parou porque acabaram as balas dos fuzis.

A versão britânica explica a tragédia como uma reação de defesa do general Dyer que se sentiu ameaçado diante de 25 mil indianos e contando com apenas 90 soldados armados e outros 40 sem rifles. As manifestações antibritânicas estavam, então, em seu ponto mais alto. Três dias antes do massacre, três funcionários britânicos foram linchados em seus escritórios e seus cadáveres queimados na rua. Uma missionária idosa, Miss Sherwood, foi espancada e deixada morta. Cartazes na rua pediam vingança acusando os britânicos de terem estuprado meninas em Amritsar.

Massacre de Amritsar, filme "Gandhi", de 1982

Massacre de Amritsar, cena do filme “Gandhi”, de 1982, ganhador de oito prêmios Oscar.

4. Divisão do território indiano

A separação entre a Índia e o Paquistão, em agosto de 1947, levou a uma guerra sectária que matou um milhão de pessoas. Criado para abrigar a população muçulmana da Índia, o Paquistão era dividido em dois territórios: um no Oeste e outro no Leste (que, em 1971, se tornou Bangladesh). No meio, ficava a Índia, de maioria hindu.

Essa partilha do território indiano, baseada na religião, resultou na migração em massa de quase 15 milhões de pessoas: muçulmanos que deixaram a Índia para o Paquistão, e hindus e sikhs fazendo o caminho inverso.

Mal preparados para lidar com essa situação, os novos governos não conseguiram manter a lei e a ordem, e a violência eclodiu nos dois lados da fronteira, no que muitos consideram uma das maiores tragédias do século XX.

As estimativas sobre o número de vítimas até hoje são imprecisas, fala-se que morreram entre 200 mil e 1 milhão de pessoas. Dezenas de milhares de mulheres foram estupradas ou sequestradas, e cerca de 12 milhões de pessoas se tornaram refugiadas.

Os britânicos foram acusados de se retirar da Índia rápido demais. Críticos afirmam que eles não conseguiram estabelecer um mapa definitivo das novas fronteiras e fracassaram no planejamento para a migração em massa que se seguiu à divisão do território.

5. Fome deliberada na Índia e Irlanda

Em 1943, cerca de 3 milhões de pessoas morreram de fome e desnutrição em Bengala, na Índia, sob administração do Império britânico. No ano anterior, os britânicos haviam perdido, para o Japão, a Birmânia, o maior produtor e exportador de arroz para a Índia. Winston Churchill, primeiro-ministro na época, ordenou que os estoques de alimento fossem destinados para os soldados britânicos na Índia e no Oriente Médio e ainda enviou grandes quantidades de arroz para a Grécia (que estava também sofrendo com uma fome em massa).

Grande Fome de Bengala, 1943

Massas de famintos esqueléticos morreram nas ruas de Bengala enquanto os britânicos e indianos que os serviam comiam fartas refeições em seus clubes e casas.

Um século antes, outra fome em massa assolou um país do Reino Unido: a Irlanda. A Grande Fome de 1845-1851, na Irlanda, matou cerca de 1 milhão de irlandeses e forçou mais de 1 milhão a emigrar da ilha, reduzindo a população entre 20 e 25%. A causa imediata da fome foi uma doença que contaminou as plantações de batatas em toda Europa na década de 1840. Mas enquanto outros governos socorreram sua população, o governo britânico nada fez e ainda impediu todas as formas de ajuda humanitária em um projeto considerado, por muitos, de genocídio.

6. Tortura no Quênia

Milhares de quenianos sofreram todo tido de tortura durante a Revolta Mau Mau (1952-1963): linchamento, espancamento, castração, estrupros além de confisco de bens e propriedades por forças coloniais britânicas. Os Mau Mau lutavam para libertar o país dos colonizadores britânicos que desde 1888 dominavam o país.

Não se sabe quantos quenianos morreram, as estimativas falam em 20 mil até 100 mil pessoas, e outro tanto de sobreviventes das torturas. O filme “Uma lição de vida” (The First Grader, direção de Justin Chadwick, Reino Unido, BBC Films, 2010) conta a história de um combatente Mau Mau. Em 2013, o governo britânico pagou em torno de 30 milhões de libras atendendo as reivindicações feitas por mais de 5 mil veteranos Mau-Mau.

Prisioneiros mau-mau, 1953.

Prisioneiros mau-mau em um campo de detenção britânico em 1953.

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