terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O "killer" Ventura e a normalização da mentira


 


Quando Ventura caluniou uma família negra em direto na TV, nem o contendor Marcelo nem quem comentou e noticiou a seguir relevaram o facto. Pouco pode pois surpreender que, um ano depois, a sua tática de mentira e lamaçal seja consagrada como "eficaz" e haja até quem graças a ela o apelide de "killer".

E a "questão da mentira", como deve ser valorizada? A pergunta é do pivot que dirigiu, na SIC-N, a roda de comentadores que se seguiu ao confronto entre Catarina Martins e o líder do Chega deste domingo à noite. Ninguém de entre os três - Ângela Silva, Ricardo Costa e Pedro Marques Lopes - respondeu à primeira, pelo que o pivot insistiu. Aí, o diretor da SIC afirmou: "A mentira existe sempre na política".

Depois de um debate em que Ventura falara de "polícias com reformas de 290 euros", de "Mercedes à porta de quem recebe o RSI" e restante habitual chorrilho de aldrabices odientas, e de termos visto a jornalista do Expresso Ângela Silva decretar que o deputado do Chega é "um killer" e "ganhou" a uma Catarina Martins "quase frágil", o encolher de ombros normalizador de Ricardo Costa garantiu-nos aquilo que só não sabíamos se muito distraídos nos últimos tempos: a maioria dos jornalistas e comentadores decidiu tratar Ventura como se fosse "um político igual aos outros", analisando as suas "performances" sem se deterem sequer a contradizer as falsidades que constituem toda a sua retórica. E até, como se constata pela opinião de Ângela Silva, elogiando a sua "técnica" - como um júri de boxe que dá mais pontos a quem leva uma marreta para o ringue.

Confesso que não sei bem interpretar esta posição, sobretudo quando assistimos simultaneamente à profusão de "fact-checking" nos media. Será que é por esse motivo, porque há "espaços para fazer a destrinça entre o verdadeiro e o falso", que os comentadores e jornalistas se acham desobrigados de sublinhar - ou sequer valorizar - mentiras quando as ouvem? Será que acham tão óbvio que Ventura mente que já nem vale a pena assinalar, porque toda a gente percebe? Será que, por ignorância ou desatenção, não reparam que mente? Ou será que, como indicia a resposta de Ricardo Costa, acham que não mente mais que "os outros políticos", ou que a política implica mentir e portanto quanto mais mentir mais "killer" é?

É tanto mais perplexizante esta atitude quando na mesma ocasião Pedro Marques Lopes sublinhou a importância de desmontar as mentiras de Ventura e lamentou que Catarina Martins o não tivesse feito - sendo óbvio que num modelo de debate de 25 minutos como é (incrivelmente) o escolhido pelas TV se favorece quem manda bocas e se impossibilita qualquer demonstração sistemática de falsidade.

Entendamo-nos: se debater com um demagogo que se especializa em dizer agora uma coisa e daqui a bocado o seu contrário (é ver as cambalhotas que o programa do partido tem dado nos últimos meses), em acusações torpes, em chistes, em interrupções e em invenções é sempre muito difícil, em 25 minutos é um tormento. A meu ver, Catarina Martins escolheu a postura mais eficaz: ignorar serenamente a maioria das mentiras e ataques, não entrar em diálogo e escolher um ou dois momentos e temas fulcrais para expor a demagogia e a mentira e sublinhar a sua diferença face ao oponente - fê-lo, e muito bem, com o racismo e com o Rendimento Social de Inserção. Ao contrário do que sustentou Ângela Silva, a postura da coordenadora do Bloco não foi "frágil"; foi tão forte e superior que, como bem assinalou Anabela Neves na CNN - corroborada por Sebastião Bugalho -, deixou Ventura nervoso, aflito até. O líder do Chega não está habituado a não conseguir irritar os adversários e precisa da lama para se sentir à vontade; assim ficou a rebolar sozinho.

Mas, admitindo naturalmente que haja diferentes opiniões sobre como melhor enfrentar Ventura num debate deste tipo (sobretudo quando se disputa eleitorado, o que não é o caso de Catarina Martins), a questão é que a tarefa de o combater e àquilo que representa não compete apenas aos adversários políticos - é antes de mais até, defendo, do jornalismo. É aos jornalistas que compete contextualizar, expor falsidades, repor a verdade - e perante alguém que se especializa em ódio e mentira e na destruição da democracia, chame-se Trump ou André Ventura, não dá para entrar na desculpa da falsa "objetividade", muito menos para namoros a "killers".

Nos EUA, há um ano - a 6 de janeiro - viu-se no que pode resultar a sistemática efabulação odienta, com uma multidão de hooligans trumpistas a invadir o parlamento. No mesmo exato dia, em Portugal, Ventura, no debate televisivo com Marcelo, mostrava a foto de sete pessoas negras com o Presidente e acusava-o de, naquela imagem, estar com a "bandidagem". Nem Marcelo nem a jornalista em estúdio - Clara de Sousa - reagiram ao ataque racista. O mesmo sucedeu nos comentários que se seguiram nas TV e nas notícias sobre o debate: não dei conta de alguém sublinhar a gravidade e a natureza do que ali se passara.

Não há duas interpretações possíveis para esse facto. A verdade é que ninguém, entre políticos, comentadores e jornalistas, achou assim tão grave que Ventura tivesse usado a imagem daquelas pessoas, por serem negras e pobres, como símbolo daquilo que diz combater e como arma contra o adversário. Ninguém se deu sequer ao trabalho de saber se alguma coisa do que ali afirmou (acusou aquelas pessoas de "terem vindo para Portugal para beneficiar do Estado Social", de terem "atacado uma esquadra da polícia" - tudo falsidades absolutas) correspondia à verdade: o que terá interessado é se "foi eficaz", se conseguiu o seu intento de embaraçar Marcelo, se foi ou não "killer".

Não tivesse existido um processo vitorioso em tribunal contra Ventura e o Chega e este episódio repugnante, que define o partido e o seu líder, mas também o jornalismo e o comentariado nacional, teria sido esquecido por quase todos. Uma democracia em que isto sucede, em que a mentira, a calúnia e o ódio passam como normalidade, sem indignação nem refutação, e quem os usa como "vencedor", uma democracia que não grita ao racismo mais gritante e na qual não entrar no jogo do demagogo é ser "frágil", é uma democracia a precisar de cuidados intensivos.



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