sábado, 11 de dezembro de 2021

Nos anos 80 um espião francês se apaixonou por uma cantora chinesa que na verdade era homem


 


É possível que um homem se apaixone por uma mulher que em realidade seja um homem? Evidentemente que sim, mas e manter relações íntimas com ela/ele sem perceber? Parece um pouco mais difícil, ainda que sempre seja possível este verdadeiro grau extremo de estultice e insensatez. Tem mais: e se ela que é ele diz que está grávida e exibe o aumento de volume do ventre? A coisa começa a ficar complicada. O ápice do disparate ocorre quando ela surge com um filho que não saiu do seu ventre, porque, de fato é fisicamente impossível.


Nos anos 80 um espião francês se apaixonou por uma cantora chinesa que na verdade era homem

Toda esta mixórdia, que parece um vaudeville barato, ocorreu realmente e se tornou a sensação do momento na França de meados dos anos oitenta. Especificamente em 1983, uma data suficientemente próxima para recordar que até dois anos depois, com a queda do Muro de Berlim, o mundo estava envolvido na Guerra Fria e a espionagem entre os dois grandes blocos era uma realidade cotidiana.

Em tal contexto, a Audiência de Paris acabara de abrir um processo contra Bernard Boursicot, um diplomata francês acusado de entregar de centenas de documentos secretos à China ao longo dos últimos cinco anos.

O que ninguém imaginava era a motivação de fundo que o acusado tinha para seus atos e menos ainda a surpresa que veio à tona no julgamento, fazendo que mais de um se beliscasse para se assegurar de que tinha ouvido bem: o serviço secreto chinês chantageava Bernard com a ameaça de não rever o filho que teve com uma cantora chinesa. Só que, aquilo que passava por ser uma clássica história de espiões, nada era como parecia.

Bernard Boursicot nasceu na localidade de Vannes, região da Baixa Bretanha, em 12 de agosto de 1944. Desde jovem teve experiências homossexuais que viu favorecidas ao passar boa parte de sua infância em internatos, ainda que depois declararia que por então pensava que essas práticas não eram mais que meros rituais de passagem dos internos.

Por isso em 1964, com vinte anos de idade, quando ingressou no corpo diplomático francês e foi destinado à embaixada francesa em Pequim com um cargo administrativo na área de contabilidade, não teve problema em se apaixonar por uma mulher com a qual encontrou durante uma recepção oficial.

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Shi Pei e Bernard se conheceram em 1964. Shi se vestia de homem, mas afirmou que na verdade era mulher.

Ela se chamava Shi Pei Pu, tinha seis anos a mais que ele e era uma artista local, uma cantora do de Ópera de Pequim que ademais dava aulas de mandarim aos diplomatas estrangeiros. Shi Pei estava vestida como homem, mas afirmou que na verdade era mulher. Ambos se apaixonaram e iniciaram uma relação romântica.

Em 1965 Shi Pei disse ao namorado que estava grávida e alguns meses depois nascia um bebê, que recebeu o nome de Shi Du Du, conquanto oficialmente se chamava Bertrand. O "pai" não viu Shi Du Du até que completasse quatro anos por motivos de trabalho e porque ela disse que tinha enviado a criança para outra cidade para protegê-lo.



Isto se devia ao fato de que em 1966 desatou a Revolução Cultural, um astuto movimento organizado por Mao para se desfazer da ala malquista do partido, com o argumento de que estava afastada dos ideais revolucionários, e, ao mesmo tempo, recuperar o poder depois do fracasso econômico e social do Grande Salto Adiante, que deixou o país envolvido em uma onda de instabilidade e desordem.

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Shi Pei Pu com vestuário artístico.

Assim, ao longo dos anos seguintes, esse menino foi o vínculo principal entre ambos, que continuaram seu relacionamento intermitente enquanto Bernard mudava de posto em posto no Sudeste Asiático. Durante este período Bernard retomou seus flertes iniciais com o sexo masculino com outro cidadão francês chamado Thierry, com quem um dia esperava formar uma família incluindo Shi Pei Pu e Bertrand.

No meio da tensa situação, que se prolongou até 1977, Bernard conseguiu um destino na embaixada de Ulan Bator, na Mongólia, de onde esperava poder entrar na China para visitar sua família. Mas encontrou dificuldades quando entrou em contato com um funcionário público chamado Kang Sheng para gerenciar sua permissão, resultou que este pertencia ao serviço de inteligência chinesa e exigiu que ele fornecesse informação sigilosa.



Ele se negou inicialmente, mas o outro advertiu que se não colaborasse não poderia voltar ao país nem ver nunca mais Shi Du Du; ao que parece, também ameaçou a vida de Shi Pei. O francês cedeu e começou a facilitar documentos durante 5 anos.

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Bernard e Shi Du Du, seu "filho" com Shi Pei. Na verdade, o menino foi adotado.

No entanto, apesar da colaboração seguiu sem ter acesso e, surpreendentemente, em 1979 Kang Sheng lhe eximiu de sua atividade. Como teve que voltar a França, perdeu o contato até três anos mais tarde, em que por fim e a custa de muitos gerenciamentos conseguiu obter permissão de residência para Shi Pei e Shi Du Du. O garoto já era um adolescente então.

Em 1983 o serviço de contra-espionagem francês, que tinha detectado suas atividades e feito o correspondente rastreamento, prendeu Bernard e Shi Pei. O julgamento se tornou uma espécie de show entre o cômico e o patético pelas revelações que foram se tornado públicas; a primeira, que a maior parte dos documentos entregues aos chineses não eram nada secretos e muitos eram meros contratos comerciais desimportantes, como o que encarregava a instalação de uma fonte na embaixada ou uma fatura de exportação de queijos a China. Estava claro por que tinham prescindido de seus serviços como espião.

Não obstante, o momento máximo do processo chegou quando a promotoria revelou que Shi Pei não era uma mulher e considerava que tinha seduzido deliberadamente Bernard para conseguir informação da embaixada. Resultou que, em realidade, a cantora só interpretava papéis femininos na ópera, mas era um homem para todos os efeitos, contando com seus correspondentes atributos; com a habilidade única, segundo uma teoria de alguns investigadores do tema, de retraí-los de maneira que visualmente se assemelhassem a genitais femininos e inclusive fossem susceptíveis de penetração superficial.

De fato, Bernard negou-se a aceitar que a "mulher", com quem manteve relações sexuais durante 20 anos, fosse na verdade um homem, até que os promotores do caso demonstraram com provas médicas. Quando o juiz lhe perguntou se não tinha percebido o engano respondeu que sempre foi a escuras e depressa.

Shi Pei, que também estava sendo julgada, explicou que sempre se sentiu mulher, mas teve que viver como um homem para não envergonhar seus pais, que eram figuras tradicionais, até que com a Revolução Cultural o governo chinês a obrigou a tomar hormônios para conseguir sua feminização.

- "Nunca disse a Bernard que era mulher, apenas deixei claro que poderia ser mulher", disse ela.

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Bernard e Shi Pei foram julgados na França em 1983 por espionar para a China.

Examinada por uma equipe de psiquiatras, concluíram que estava mentalmente sã e equilibrada, contando com grande sensibilidade e ademais nada suspeita de ignorância, pois tinha boa formação acadêmica, licenciada em Literatura.

O juiz não gostou nada das ambíguas declarações de Shi Pei, achando que ela estava zombando da corte; especialmente quando saiu o inevitável tema do filho. Porque sua versão de como o tinha concebido soava bastante pouco crível: recolhendo o esperma de Bernard para depois submeter-se a uma inseminação artificial.

Os médicos demonstraram que isso era impossível e ao final admitiu que tinha simulado a gravidez e que o menino foi comprado em uma clínica de Xinjiang. Todas estas revelações afundaram psicologicamente Bernard que virou motivo de chacota em toda a França. Ele realmente amava o filho e, humilhado, tentou se suicidar em sua própria cela cortando a garganta com uma gilete.

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Shi Pei permaneceu em Paris após ser perdoado em 1987

Não conseguiu e na primavera de 1986 por fim era emitida a sentença: condenação de seis anos de prisão para ele e Shi Pei por espionagem contra a República Francesa. O tribunal foi bastante indulgente porque a promotoria solicitava vinte anos por traição.

A verdade é que ambos cumpriram uma parte muito pequena da pena, já que Miterrand lhes outorgou um indulto em 1987 para aparar arestas diplomáticas com a China.


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Cada um seguiu seu próprio caminho: Shi Pei Pu permaneceu em Paris, onde podia continuar vivendo como mulher, desfrutando de sua notoriedade, se apresentando como cantora de ópera e dando aulas de mandarim.

Shi Pei e Bernard se separaram e nunca mais se falaram. Quando ainda estava preso ele deu uma entrevista dizendo que jamais podia perdoá-la:

- "Enquanto eu acreditava, foi uma bela história de amor. Ele fez tantas coisas contra mim e não teve pena. Não posso perdoá-lo nunca."

Bernard Boursicot reatou sua relação com Thierry e, com a passagem dos anos, aparentemente fez as pazes com a natureza de seu relacionamento com Shi.

E Bertrand "Shi Du Du" Boursicot formou sua própria família -com 3 filhos-, mas não voltou a contatar seu "pai" até 2009, ano em que Shi Pei Pu faleceu.



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