sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Portugal | O espelho de Rendeiro

 


 

Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião

João Rendeiro foi um banqueiro sem escrúpulos, um dos principais responsáveis pela falência do nosso sistema bancário, lesando-o em 450 milhões de euros com a falência do Banco Privado Português (BPP), arrastando para a desgraça milhares de pessoas e uma economia inteira.

Em 2013, o Banco de Portugal condenou-o a uma multa de 1,5 milhões de euros e, em 2015, a CMVM condenou-o ao pagamento de mais 1 milhão. Em 2020, foi condenado a 5 anos e 8 meses de prisão por falsidade informática e falsificação de documento (sabendo-se - há um mês - que a decisão era definitiva, após o Tribunal Constitucional ter rejeitado a admissão de recurso). Há quatro meses, condenado a 10 anos de prisão efectiva por abuso fiscal, abuso de confiança e branqueamento de capitais. Na terça-feira, condenado a 3 anos e 6 meses de prisão por burla qualificada. Ao todo, uma bonita soma de mais de 19 anos de prisão em três processos que apenas o obrigaram, pela benevolência e confiança da justiça, ao longo do tempo e apesar de sucessivas condenações, à mais benigna medida de coacção prevista na lei, o termo de identidade e residência.

E foi assim, rendido às extremosas anuências dos tribunais, que Rendeiro passou férias de verão na Costa Rica a preparar a fuga para o paraíso fiscal onde agora se encontra "legalmente" foragido à justiça, rindo-se porque pode, gozando os milhões de euros entretanto desviados e ocultados durante todos estes anos em que pôde preparar a fuga, saltando de recurso em recurso e abusando, a seu gosto, de todas as manobras dilatórias. A justiça que, desta vez, conseguiu condenar um criminoso financeiro sem lhe permitir chegar ao tempo de prescrição, deixou-lhe o passaporte na mão para que pudesse fugir. Escrupulosamente, entre as escolhas possíveis para gozar a vida, acena-nos agora do Belize, na América Central, um país sem acordo de extradição com Portugal.

O fundador do falecido BPP pode ter sido um banqueiro sem escrúpulos, mas sempre foi um homem enamorado pela arte, recheado de consciência e opinião sobre o carácter dos outros, como se pode constatar em muitos dos seus escritos, dedicados a criticar impiedosamente os seus (muitos) ódios de estimação. Há uns anos, aquando da polémica a propósito da exposição de Mapplethorpe e da eventual censura da Comissão Executiva do Conselho de Administração (CA) de Serralves à curadoria de João Ribas - controvérsia que culminou na sua demissão -, Rendeiro reflectia sobre a complacência de José Pacheco Pereira nas críticas que este proferia sobre as atitudes e razões do então director artístico do museu. Também do lado do CA de Serralves, o ex-banqueiro escrevia assim: "Entendamo-nos, um traste com envergadura intelectual é antes de mais um traste, ou um intelectual, como parece entender Pacheco? Para mim, um traste é um traste. Ponto". Enquanto mandados de captura internacional são emitidos, consta que em Belmopã, capital do Belize, João Rendeiro procura espelhos.

O autor escreve segundo a antiga ortografia

*Músico e jurista

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