sábado, 16 de outubro de 2021

Como fez a China para acabar com a pobreza?


 



Em menos de uma década, cerca de 100 milhões de pessoas saíram da condição de extrema vulnerabilidade na China. Um processo de uma magnitude certamente inviável em qualquer outro lugar, mesmo que para tal existisse vontade. Porque a sua concretização requereu não só a conjugação de amplas medidas de carácter económico e social como uma gigantesca mobilização social e política, apenas possível na base de duas realidades singulares: uma mentalidade histórica e culturalmente mais centrada na comunidade, e a intervenção militante de centenas de milhares de membros do PCC.

Entre 2013 e 2020, quase 100 milhões de pessoas saíram da sua condição de extrema vulnerabilidade. A melhoria económica geral, a distribuição do rendimento, a educação e o acesso à saúde são ingredientes importantes para explicar esta impressionante realização, mas não garantem nada se operarem isoladamente. São também necessários consensos políticos e sociais de magnitude desconhecida no Ocidente e uma mentalidade mais centrada na comunidade.

No final de 2020, em pleno contexto pandémico, a China anunciou ao mundo a erradicação da pobreza extrema. Isto não foi apenas produto do impressionante crescimento económico desse país nas últimas décadas, mas também da mobilização de mais de dez milhões de militantes para as áreas rurais mais empobrecidas do oeste do gigante asiático. Equipas de funcionários, professores, empresários, estudantes, médicos e assistentes sociais instalaram-se entre um e três anos em localidades rurais para acompanhar o profundo processo de mudança económica.

O plano excedeu em muito o económico ou o assistencialista. Só foi possível graças a uma sociedade com uma mentalidade muito diferente da ocidental, mais voltada para a comunidade do que para o indivíduo, e também a partir da mão visível do Estado. O extenso relatório “Servir o povo: a erradicação da extrema pobreza na China” do Instituto Tricontinental de Investigação Social, com escritórios na Argentina, Brasil, Índia e África do Sul, reúne informação oficial, entrevistas e visitas ao território para dar conta das múltiplas estratégias empregadas durante o ambicioso projecto.

Só o crescimento não seria suficiente

A economia chinesa representava cerca de um terço da economia global no início do século XVIII e apenas 5 por cento em 1949, quando foi proclamada a República Popular da China. Naquela altura, o país tinha um dos menores rendimentos per capita do mundo. Até 1978, apesar de anos muito difíceis, incluindo fomes, houve alguns sinais de melhoria, pois a expectativa de vida havia aumentado 32 anos em comparação com o período pré-revolução.

A essa altura, começava a ficar claro que, para continuar a crescer num país de quase mil milhões de habitantes, seriam necessários investimentos e tecnologia estrangeiros. Foi decidido, pela mão do então presidente, Deng Xiaoping, abrir as portas ao investimento estrangeiro. O resultado é conhecido: entre 1978 e 2017, a economia chinesa cresceu 9,5% ao ano graças à instalação de empresas que aproveitaram a mão de obra barata mas se viram obrigadas a transferir tecnologia, com resultados que se tornam cada vez mais evidentes. Graças ao rápido crescimento da economia, a pobreza extrema caiu de 770 milhões em 1978 para 122 milhões em 2011, um número que ainda representava 9,1% da população.

Como explica o mencionado relatório, o coeficiente de Gini que mede a desigualdade tinha piorado, de 29% em 1981 para 49% em 2007, para baixar apenas em 2012. Ou seja, o preço do crescimento fora um aumento acentuado da desigualdade. Em 2017, num congresso do Partido Comunista, o presidente Xi Jinping disse que “o principal problema é que nosso crescimento é desequilibrado e inadequado. Isto converteu-se no principal factor de restrição para satisfazer as crescentes necessidades da população a uma vida melhor”.

Passo a passo

A China desenvolveu o Programa de Redução Direcionada da Pobreza da China (RFP), que se resume como “Um rendimento, duas seguranças e três garantias”. Primeiramente, estabeleceu-se que o rendimento mínimo para considerar alguém acima da pobreza era de 2,30 dólares diários, acima dos 1,90 propostos pelo Banco Mundial.
As duas seguranças a alcançar seriam a alimentação e a roupas. As três garantias: serviços médicos básicos, habitação (com água e electricidade) e educação gratuita e obrigatória. Cada um desses objectivos requereu padrões determinados de medição. Por exemplo, o acesso à água potável não devia estar localizado a mais de vinte minutos de ida e volta e devia ser seguro.

Uma vez definida a pobreza e o que era necessário para a abandonar, era preciso saber quantos pobres havia e com que características. Em 2014, 800.000 membros do partido foram ao campo e identificaram pessoas em extrema pobreza em 128.000 aldeias. Depois, dois milhões de pessoas verificaram os dados e refinaram as listagens graças a um sistema de registo de dados informatizado. O número final de indigentes com que devia trabalhar era de 98,99 milhões.

A longa marcha

Com os dados e os objectivos claros, cerca de três milhões de membros do partido organizados em 255 mil equipas partiram das suas casas para viver durante um a três anos nas aldeias selecionadas, onde iriam conviver e trabalhar ao lado dos camponeses, funcionários locais e voluntários.

Milhares de empresas associaram-se com projectos pontuais para dar assistência a algumas aldeias em particular. Foram criados parques industriais e agrícolas, bem como projectos voltados para o turismo local. Segundo o relatório, entre 2015 e 2019 os gabinetes para formar centros de produção de pequena escala em terrenos baldios ou em domicílios ajudaram a triplicar o rendimento per capita.

Quase dez milhões de pessoas emigraram para novas comunidades urbanas que dispunham de creches, escolas, hospitais, centros comunitários, cuidados para idosos e centros culturais. A imensa maioria conseguiu trabalho e decidiu ficar enquanto alguns, sobretudo os mais idosos, preferiram regressar ao seu local de origem.

Assistentes sociais visitavam as pessoas para as ajudar em tarefas como aprender a usar o elevador ou atravessar a rua. Cerca de mil centros de saúde foram ligados a hospitais de primeira linha e milhares de trabalhadores desse sector viajaram para se qualificar. Outros projectos concentraram-se em tentar recuperar a saúde do meio ambiente com empregos no sector ecológico: 1,1 milhões de pessoas começaram a trabalhar como guardas florestais e quase cinco milhões de hectares de terras agrícolas foram reconvertidos em florestas ou pastagens.

Cerca de um milhão de professores trabalharam junto a 17 milhões de professores rurais para melhorar a sua qualificação. Em algumas universidades, entre 2011 e 2018, 70 por cento dos alunos eram os primeiros das suas famílias a aceder a estudos de graduação. Quarenta e quatro universidades foram instaladas em diferentes zonas para realizar projectos no território com investigadores, docentes e alunos de diferentes áreas.

Controlos cruzados

Para verificar os resultados registados pelas equipas, foram realizados diversos tipos de avaliações. Por exemplo, as províncias monitoraram-se mutuamente com trabalhadores que iam tomar conhecimento do que era feito em outra província e, assim, verificar a informação fornecida. O grupo coordenador do plano foi também ao terreno verificar em primeira mão os resultados e foi feito um acompanhamento social com controlos aleatórios por parte do partido.

A corrupção é um grande problema na China e sua erradicação faz parte de uma das principais promessas do actual presidente. No caso da luta contra a pobreza, foram detectados 161.500 casos de corrupção em 2020. Dezoito funcionários de alto nível foram apontados. Segundo a nova política anticorrupção, os responsáveis pelo controlo do trabalho dos seus subordinados são apontados, mesmo que não tenham participado directamente.

Um outro estado

É difícil imaginar no Ocidente que milhões de pessoas se mobilizem para trabalhar sobre a pobreza, um problema que costuma ser visto como uma responsabilidade do Estado e que é algo alheio ao cidadão comum.

Um professor da Universidade Agrícola da China explicou aos investigadores da Tricontinental: “A sociedade chinesa é muito diferente das sociedades ocidentais porque se baseia no colectivo e não no individual. Isso reflecte-se na forma como a sociedade está organizada. O governo trabalha com organizações sociais, as redes políticas e sociais fundem-se num todo, numa força dirigente, organizada vertical e horizontalmente, o que permite a todos aderir a esta campanha social.” Outra questão, nada menor, é a simbiose entre o Estado chinês e o Partido Comunista Chinês (PCC), que tem mais de 95 milhões de membros.

Graças aos valores fortemente comunitários da cultura chinesa, uma militância comprometida e uma gestão capaz de apresentar resultados rápidos, o Estado não é visto pela maioria como algo estranho e perigoso, mas como uma ferramenta que permite resolver enormes problemas.

Em 2020, a Universidade de Harvard publicou o estudo “Compreender a resiliência do PCC: as sondagens de opinião pública chinesa ao longo do tempo”. O trabalho foi realizado entre 2003 e 2016 e foram entrevistados 31 mil residentes urbanos e rurais. Entre esses anos, a satisfação dos cidadãos chineses com seu governo aumentou de 86,1% para 93,1%. Nas áreas rurais, onde a aprovação era de apenas 43,6%, passou para 70,2%, especialmente entre os residentes de menores rendimentos.

Lições?

Tings Chak, coordenador do Departamento de Arte da Tricontinental, membro do Dongsheng News Collective, disse a Cash que para realizar o relatório observaram “a literatura, falámos com especialistas chineses e de outros países”. Esta mulher de Hong Kong partiu de Xangai, onde vive, para “ir ao campo falar com quadros, camponeses, mulheres e jovens que se mostraram bastante abertos a contar as suas experiências de participação no programa de redução da pobreza”.

A impressionante conquista da sociedade chinesa mostra que a luta contra certos níveis de pobreza é um desafio com múltiplas vertentes. A distribuição do rendimento, a educação, o acesso à saúde são todos ingredientes importantes, mas não garantem nada se operarem isoladamente. Uma decisão política deste tipo requer consensos políticos, económicos e sociais de tal magnitude que possivelmente não seriam transferíveis para o Ocidente. Ainda assim, à distância, vale a pena analisar o fenómeno para ver que lições podem ser aprendidas.

Fonte: https://www.pagina12.com.ar/372961-como-hizo-china-para-terminar-con-la-indigencia


www.odiario.info


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