terça-feira, 3 de agosto de 2021

Krajina 1995: um genocídio varrido para debaixo do tapete?


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Carlos Branco


No dia 4 de agosto de 2021 assinalam-se 26 anos do início da Operação Storm, a ofensiva do Exército da Croácia contra as forças sérvias da Krajina, que culminou com a derrota em toda a linha do Exército da "República Sérvia da Krajina", seguida da fuga de 250 mil civis sérvios à frente das tropas croatas e o assassínio de cerca 2500 civis sérvios. Após o fim das operações militares, o Exército croata passou a orientar a sua atuação contra os civis sérvios indefesos, que não representavam uma ameaça militar, levando a cabo uma campanha de assassinatos (dos que não conseguiram ou puderam fugir dada a idade avançada), pilhagens, incêndios de habitações, destruição de colheitas, agressões físicas e humilhações sistemáticas, com a cobertura das mais altas instâncias do Estado croata. A vida na Krajina tornou-se um inferno para os que não conseguiram fugir, um cemitério ao ar livre. Tudo isto perante a passividade da comunidade internacional.

O envolvimento da polícia e do exército croata nestas atividades significava que, para além de autorizadas, eram organizadas. Visavam arrasar as habitações que pertenciam aos sérvios, deixando-as impróprias para voltarem a ser habitadas, inviabilizando ou dificultando ao máximo a possibilidade de regresso dos seus donos, com a clara intenção de eliminar sistematicamente um grupo étnico. O presidente Tudman conseguiu fazer aquilo que o Estado Ustaša fascista não tinha conseguido fazer durante a II Grande Guerra: expulsar de modo permanente a população sérvia da Krajina.

Segundo o censo de 1991, os sérvios constituíam 12,2% da população da Croácia. De acordo com o censo de 2011 representavam apenas 4,36%, apenas um terço. Estes números reveladores de uma brutal limpeza étnica sugerem que se revisite a hipótese de genocídio, dadas as execuções sumárias indiscriminadas e as provas de assassínios em larga escala contra civis indefesos. Relembram os acontecimentos da II Guerra Mundial, em que a população sérvia da Croácia, que antes da guerra representava cerca de 61% da população da Croácia, foi dizimada pelos algozes nazis do chamado Estado Independente da Croácia.

Ninguém pode dizer que desconhecia o que se estava a passar. Os acontecimentos eram comunicados superiormente pelos observadores militares da ONU e pelos monitores da Comunidade Europeia (CE). Não obstante os relatos terem chegado às mais altas instâncias, pouco foi feito para refrear o ímpeto do governo croata. A CE e as agências da ONU continuavam despreocupadamente a prestar ajuda alimentar e financeira à Croácia. Os esforços para parar as violações dos direitos humanos na Krajina foram de uma timidez atroz. Não só os líderes políticos mundiais foram cúmplices da mortandade pelo silêncio e a ausência de denúncia, como existiu um apoio tácito às ações do Estado croata por parte de alguns atores extremamente influentes. Não só não impediram o ataque - as autoridades sérvias da Krajina tinham cedido a todas as exigências; tinham capitulado - como permitiram a tragédia que se seguiu, a qual era mais do que expectável.

Não obstante existirem provas para além de qualquer dúvida razoável, os mandantes destes crimes - entre outros, os generais Gotovina e Markac - foram absolvidos. Gotovina e Markac foram condenados por unanimidade na primeira instância a 24 e 18 anos de prisão, respetivamente, para serem absolvidos de seguida no tribunal de recurso, vá lá saber-se porquê. Apesar de os dois acórdãos se basearem nos mesmos factos e na mesma lei, deu-se a insólita singularidade de juízes de diferentes instâncias chegarem a conclusões diametralmente opostas sobre questões-chave do julgamento, quando os veredictos confirmavam a ocorrência dos mesmos factos.

O ICTY não considerou a hipótese de genocídio, mas concordou que foram cometidos crimes na sequência da Operação Storm, confirmando as acusações de limpeza étnica. Alguns dos casos foram transferidos para a justiça croata, que os tratou de forma extremamente benévola, deixando os prevaricadores sem castigo. A impunidade dos crimes cometidos durante e após a Operação Storm contribuiu para o descrédito da justiça penal internacional, confirmando as motivações políticas que em muitos casos lhe está subjacente, e não fazer justiça, a razão da sua existência.

Muitos dos comandantes das unidades envolvidas nas atrocidades, responsáveis pelos crimes cometidos, continuaram as suas carreiras militares e políticas depois da guerra, tendo ocupado posições de elevada responsabilidade política na estrutura do Estado (ministros, deputados, presidentes de câmaras), como se nada tivesse acontecido. O veto do Conselho da Europa em maio de 1996, que retardou por seis meses a adesão da Croácia àquela organização, não passou de um fingimento burlesco de quem tem a consciência pesada, não obstante a sua retórica apologética dos direitos humanos. Não é aceitável gerir a política internacional com dois critérios: condescendência para os amigos e lei para os outros.

Major-general (na reserva)

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