segunda-feira, 9 de agosto de 2021

Acaso e necessidade

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estatuadesal5-6 minutes 02/08/2021

(Carlos Coutinho, in Facebook, 30/07/2021)

Quando há fome, não há pão mal feito. Ouvi este adágio centenas de vezes ao longo da vida e ainda não encontrei melhor resposta ao velho conflito dialético entre o acaso e a necessidade.

Trazendo o problema para um terreno mais ao meu alcance, imaginemos a questão presente dos Costas e das respetivas implicações nas nossas vidas. Se os gâmetas bem sucedidos de Orlando da Costa e de Maria Antónia Palla tivessem uma segunda edição, em vez de ter havido dois diferentes progenitores na banda feminina, ambos os nascituros eram da estirpe António e nenhum andava por aí com idiossincrasia ricardiana.

O acaso deu-nos o mal menor, como antes a necessidade nos havia fornecido o Orlando.

Ou, então, imaginemos Portugal antes da Batalha de S. Mamede. A mãe do nosso primeiro Afonso teria aberto um processo de fim imprevisível com um conde galego ao leme. E Portugal seria hoje outra coisa ou simplesmente não existiria sequer.

Confesso que não sei se, nisto, o acaso nos foi favorável, mas de uma coisa eu não tenho a menor dúvida: foi do acaso que nasceu Afonso Henriques.

Também aqui não sei como introduzir o problema da necessidade. Conheço apenas o essencial do que se seguiu – guerras sucessivas e morte a rodos, ao longo de toda a dinastia afonsina.

Afonso IV só não mandou apunhalar os netos porque lhe bastou a morte de Inês, quando esta, no dizer de Camões, estava “posta em sossego” à beira do Mondego. Depois, com o Conde Andeiro atirado pela janela, vemos D. João I e a sua Filipa a deixarem morrer dois filhos, um em Alfarrobeira e outro em Marrocos, apesar de estar nas suas mãos meter na ordem o Infante D. Henrique, o causador principal destas tragédias.

Que Portugal teríamos agora sem qualquer deles? E que dizer do Príncipe Perfeito e do seu sucessor D. Manuel I? Quantos portugueses morreram às suas mãos ou às suas ordens?

Volto a perguntar: que Portugal teríamos hoje sem qualquer deles?

E sem D. João IV, e sem D. José, e sem o Marquês, e sem os principais insurgentes republicanos, e sem Salazar? Só neste último caso tenho a certeza de que tudo estaria muito melhor.

Aqui, o acaso dá lugar à necessidade. Se o acaso ainda pôde dar-nos Otelo, já não impediu que o jovem major percebesse a necessidade e tudo fizesse para lhe corresponder, coisa que nem todos os filósofos compreendem, desde a Alta Antiguidade.

Embora voluntarista e mal preparado dos pontos de vista filosófico e político, tornou-se no único caso português de um militar que, sem derramamento de sangue, comandou um golpe de estado para pôr fim a um regime que dispunha de todos os poderes e não hesitava em matar.

E agora pergunto: quantos operadores de mudança, na História de Portugal e do mundo, conseguiram conduzir uma revolta vitoriosa impedindo ‘in extremis’ um banho de sangue?

E quanto vale este extraordinário feito?

E reafirmo: sempre que a mudança for necessária e inequivocamente para melhor, eu estarei, como sempre estive, do lado dos que ousam mudar e correm todos riscos para tanto. Até serei capaz de não perdoar sangue injusto ou desnecessário, mesmo que esteja no horizonte o sentido da civilização. Como nunca perdoarei a Otelo alguns dos seus atos posteriores ao 25 de Abril.

Coisa menor, entretanto, é ponderar a violência ou a criminalidade, se contraposta à necessidade e à genialidade da condução daquela revolta militar que abriu as portas a uma revolução intrinsecamente democrática de que ainda estamos a beneficiar largamente.

Aqui levanta-se a questão do papel do indivíduo na História, para a qual há respostas díspares, mesmo quando o sujeito é coletivo. Estou a lembrar-me daquele discurso de Lenine, quando, após mais de um ano de contenção verdadeiramente heróica, disse: “Temos de responder ao terror branco com o terror vermelho.”

Talvez Estaline, o seu sucessor, não tenha compreendido a totalidade do acaso e da necessidade contidos nesta afirmação, mas não sei se, então, haveria muitos revolucionários capazes de responder de uma forma não estalinista a uma situação única na História da Humanidade: quase todo o mundo e grande parte do povo russo ativos contra a Revolução Russa.

É só por isso que as sete décadas da existência da URSS coincidem e em grande parte determinam o caminho da civilização, no seu melhor e no seu pior. E o saldo é enormemente positivo.

Lembro-me de ouvir Álvaro Cunhal dizendo que foram cometidos crimes durante o período estalinista, mas não esqueço o rol de avanços e vantagens que ele também reconheceu na avaliação do trânsito de um século inteiro, tanto para os soviéticos como para o resto do mundo. E inquieta-me imaginar quanta violência justa e quanta violência injusta vão continuar a ocorrer, face à necessidade e aos acasos do porvir.

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