quinta-feira, 15 de julho de 2021

Memórias de Vasco Granja: "Olá, amiguinhos"


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Querida avó,

Como está a correr a tua temporada fora de Lisboa.

Conhecendo o tempo da Ericeira, e o facto de não te expores ao sol, deves continuar branca que nem uma lula.

Gostas mais de andar caídas pelos bares e a fazer palavras cruzadas protegida do sol. 

Mas olha que a vitamina D também te faz falta. E não me venhas com a desculpa que tomas diariamente suplementos de vitaminas.

Bom, por muito que goste de ti, hoje apetece-me falar de duas pessoas que fazem parte das nossas memórias.

Uma vez disseram-me: “O seu projeto cheira a naftalina.” Pois, antes cheirar a naftalina do que as pessoas “não terem ontem”, como tantas vezes ouvi dizer o Varela Silva.

Faz hoje 17 anos que morreu Maria de Lourdes Pintasilgo.

Claro que os mais novos (e quando digo “mais novos” não estou a falar de crianças) não sabem quem foi esta mulher. Mas aqui está um belo tema para ser abordado em família.

Maria de Lourdes Pintasilgo foi a primeira mulher (e única até agora), a desempenhar a função de primeiro-ministro em Portugal, embora apenas tenha ocupando o cargo durante cerca de seis meses. Lembro-me perfeitamente de a ver na televisão. Estávamos em 79 convite e o convite para o cargo foi feito pelo então Presidente da República Ramalho Eanes.

Sempre foi uma mulher à frente do seu tempo.

Apenas com 23 anos (enquanto muitas da idade dela já eram casadas, com filhos, dedicadas à família…), formou-se em engenharia químico-industrial, um caso raro na época, quando apenas três mulheres a acompanharam numa turma de 250 alunos.

Assumiu, desde muito cedo, a liderança de associações e entidades ligadas a movimentos de mulheres ou estudantis.

Até hoje nunca mais tivemos uma mulher a ocupar o cargo de primeiro-ministro. Não é um problema só português!

Infelizmente, as pessoas ainda são vistas pelo sexo com que nasceram e não pelas qualidades que desempenham.

Enfim. Ainda muito há para fazer!

Outras das minhas memórias de infância que quero partilhar contigo hoje tem a ver com “o pai da Pantera Cor de Rosa”.

Se fosse vivo, Vasco Granja teria completado, na terça-feira, 13, 96 anos.

Era bastante carismático. Tratava o público todo de forma infantil, sem se preocupar com a idade de quem assistia. Começava sempre com a frase “Olá, amiguinhos”. Ora, alguém que nos entrava em casa semanalmente a tratar de forma tão afável, conquistava logo todos os telespetadores, independentemente da idade. Vasco Granja era o “avô” das crianças da minha geração. Tal como os nossos avós quando nos davam a mão para ir ao cinema, o “avô” Vasco dizia algo como: ”Os meus amiguinhos têm aqui um filmezinho” …

E assim foi durante 16 anos. O tempo em que teve no ar o programa Cinema de Animação. Vasco Granja dava-nos ainda a perceção da nossa pequenez. Mostrava-nos o Cinema do Mundo. Não apenas o cinema da Europa e da América do Norte. 

Recordo, com nostalgia, o Calimero e a Pantera Cor de Rosa.

O Calimero era um meigo, mas infeliz pintinho (o único negro da família de galos amarelos). Ele vestia metade de sua casca de ovo ainda na sua cabeça.

A Pantera Cor-de-rosa era uma Pantera fanática pela cor rosa, pois considera o rosa como sua cor favorita.

Nunca usou a esperteza para enganar, mas para ser feliz. Usou-a apenas para fugir ou esconder-se dos seus adversários ou para não ser incomodado. Às vezes vale a pena aplicar esta atitude!

Agora lembrei-me da célebre frase da saudosa Amália “Já não me lembra”, quando ela não queria abordar certos assuntos.

Querida avó, está na hora de fechar o baú, pois a minha vida não é só isto.

Conheceste o Vasco Granja? Os teus filhos também assistiam às series?

E a Maria de Lourdes Pintasilgo, conheceste?

Sempre gostaste de Mulheres que rasgam com o convencional.

Bom fim-de-semana.

Bjs 

Querido neto,

Tive uma grande admiração pela Maria de Lurdes Pintasilgo, mas infelizmente não a conheci pessoalmente. Mas estou sempre a citar uma frase sua: “Só haverá igualdade de género no dia em que uma mulher incompetente ocupar um lugar de chefia.” 

E acho que faz muita falta uma mulher na chefia do governo.

Mas vamos lá então ao nosso amigo Vasco Granja.

Para ti—e  creio que para a esmagadora maioria dos portugueses—o Vasco Granja é apenas o “pai da Pantera Cor de Rosa” e dos programas de desenhos animados e de banda desenhada da televisão. O que já seria muito bom. Mas o Vasco Granja foi muito mais do que isso.

Foi um grande homem.

Desde muito novo ligado à política, pertencia ao Partido Comunista. Foi preso e torturado nas cadeias do Aljube, Caxias e Peniche. 

A PIDE não o largava.

Para além dos seus programas na televisão, também apresentava filmes nos cinemas de Lisboa. E um dia foi preso porque alguém o denunciara dizendo que as receitas dos espectáculos iam ser entregues aos movimentos de resistência antifascistas. Mandaram-no 18 meses para Peniche. 

Mas nunca se queixava, sempre com um sorriso na boca e aquela fala mansa de que todos se devem lembrar.

Só com o 25 de Abril conseguiu respirar livremente.

Mas falando de coisas mais alegres, ele foi, para já, um autodidata que teve a sorte de fazer parte das tertúlias do Café Gelo e do Café Nicola, onde conviveu com Aquilino Ribeiro, António Sérgio, Armando Cortesão, Hernâni Cidade, Alves Redol e tantos outros. 

E, no tempo em que trabalhou na Editorial Arcádia, secretariava o escritor Fernando Namora.

E foi ele que introduziu no léxico português a expressão “banda desenhada”— para acabar com “histórias aos quadradinhos”— e escreveu para muitos jornais. Começou a escrever para A Nossa Terra, de Cascais, a que se seguiram Diário de LisboaJornal do FundãoNotícias da AmadoraDiário PopularA CapitalDiárioJL, etc.

Já referiste as bandas desenhadas que ele apresentou na RTP—mas, para mim, devo-lhe a descoberta de dois heróis: Corto Maltese e Hugo Pratt.

E claro que os meus filhos—como penso que todas as crianças — não largavam os olhos do écran a partir do momento em que ele aparecia e os chamava: “amiguinhos!”

E nascidos muito pouco tempo antes do 25 de Abril e crianças muito politizadas, a minha filha ainda hoje recorda um desenho animado em que um grupo de pintainhos estava a brincar quando avistaram um outro, sozinho, ao longe. Correram logo para ele e perguntaram-lhe:

“Então, amiguinho, vens da clandestinidade?”

Não me lembro da resposta, mas devia vir, com certeza.

E aí tens o nosso Vasco Granja. Esperemos que em 2025—data em que faria 100 anos—a RTP lhe faça a homenagem que merece.

É esta semana que levas a 2º dose da vacina?

Isto está péssimo.

Fica bem.



O Diário de uma Avó e de um Neto é um projeto do site Retratos Contados

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.


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