terça-feira, 29 de junho de 2021

Entre Lagos e Tunes: ″Esse lugar é meu, levante-se, por favor″

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Terra). Mochila às costas, bilhetes na mão, sentidos apurados, gravador preparado e embarcamos uma semana para uma viagem (inesquecível) de comboio. À janela, observamos o melhor e o pior das linhas de comboio portuguesas. Acertamos agulhas e tentamos perceber qual a "Próxima Estação" para a ferrovia nacional: o que vai evoluir o país com o plano ferroviário para 2030 e o que deixou para trás.












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É impossível chegar ou partir de Lagos sem reparar que a estação atual está recuada uns metros da antiga gare, a última a ser construída na linha do Algarve em 1922. Confesso que não percebo os contornos para termos abandonado um edifício daquela categoria, arquitetonicamente bonito, e para o termos trocado por uma espécie de quadrado moderno, que nada oferece mais que uma loja de turismo daquelas de que há milhentas na região. Reparo que esteve à venda e está, segundo indicam os cartazes, vendida. Sento-me na sala de espera e tento imaginar o que poderão ali vir a fazer. Das plataformas vejo ainda os edifícios abandonados daquilo que terão sido umas oficinas e, pelo meio de um canavial, ainda consegue ver o que resta da plataforma giratória das locomotivas, muito carcomida pelo tempo.

O comboio sai de Lagos bastante bem composto de gente. Assim que saímos, novo postal do Algarve que mostra, tal como já sublinhei na crónica de ontem, o potencial turístico desta linha. Passamos, literalmente, na praia. Entre nós e o mar só uns bons metros de dunas. Afinal, há dunas no Algarve. E, se as há, creio que bem devemos agradecer à linha de comboio que ali passa. Caso contrário, se não ali passasse, a especulação imobiliária já teria tomado conta de toda aquela zona. Não tendo acontecido (e ainda bem), ainda dá para, da janela do comboio, apreciar a "Meia Praia", trautear a canção que não me sai da cabeça, enquanto até à Mexilhoeira aprecio um ou outro campo de golfe, gente a fazer paddle e como a aquacultura (será?) está a ganhar força naquela zona. É aqui, na Mexilhoeira, que a linha do Algarve se afasta da costa. Deixamos de ver o mar, a não ser em Portimão. Mas aqui o mar é outro: um mar de gente. A automotora já vinha composta, mas em Portimão encheu, pelo menos a minha carruagem. Começo a ouvir vozes exaltadas e levanto-me para perceber o que se passa: há pessoas a debaterem-se por um lugar sentado e há até quem reivindique prioridades.

"Esse lugar é meu, levante-se por favor!", gritava uma senhora com um bebé ao colo. Outra senhora, sentada, ignorando os dísticos nas suas costas, garantia que tinha chegado antes. "Entrei em Lagos e já venho sentada desde lá". Não arredava pé e olhava para a janela como se aquela conversa não fosse com ela e tentasse encontrar na paisagem quem a distraísse e lhe fizesse passar o tempo. Até que, quase em uníssono, toda a carruagem começou a confrontá-la e, a sentir-se uma "pobre coitada", lá se levantou e a contragosto deu o lugar à jovem mãe com o bebé ao colo.

No sentido Lagos > Faro há menos comboios. 

Apenas nove diários, menos quatro do que aqueles que existem entre Faro e Vila Real de Santo António. Aproveito para deixar aqui o registo de que não existe qualquer comboio a fazer a ligação direta entre as duas extremidades da linha: há forçosamente sempre uma paragem na capital de distrito.

Ao meu lado, um rapaz brasileiro, em Portugal desde 2010 (no Algarve desde 2018), diz-me, enquanto já passamos a ponte ferroviária para Ferragudo (durante vários anos estação terminal da linha do Algarve), que "em geral costuma ir com alguma gente, mas com lugar para todos. Agora excedeu as expectativas, vai cheio".

Chego a Tunes e fico "desconectado". A estação tem dois bares, um principal e depois outro entre as plataformas 2 e 3, que parece uma daquelas barraquinhas de vender gelados. Nem um, nem outro têm o que comer às 14h44: um rissol, um pastelinho de bacalhau, um bolinho, um pacotinho de batatas, nada. Só vendem bebidas àquela hora. Vindo de Lagos para Lisboa temos de sair em Tunes para apanhar o IC. Uma casa de banho também dava jeito, mas não há. Ou melhor, até há, daquelas de colocar moedinha, tipo contentor, mas está avariada. Há que conter...



 
 








E Tunes é uma estação... Como é que vos hei de dizer... É uma estação... Já sei, da linha do Algarve: não tem painéis eletrónicos indicativos ou televisores que nos digam onde e qual o comboio em que devemos entrar. Como sabemos? Perguntamos a quem passa... E há quem me informe que estão afixados os comboios e as linhas num papel, temos é de encontrar o papel e consultar. Como assim num papel? Eis que, de repente, vejo e ouço um casal de italianos a tentar decifrar códigos, percebo que é o tal papel, e pelo horário do meu IC, percebo em que linha dará entrada... Mas é estranho que uma estação em que se juntam duas linhas (Algarve e Sul) e que dá acesso a comboios de longo curso, não tenha informação visual e sonora dos comboios e das plataformas.

Fica o registo de que na própria linha do Algarve, há duas realidades distintas: fica a sensação de que de Lagos para Tunes, a ferrovia é de outro país. As aproximações às estações são feitas em marcha mais lenta (por vezes, muito lenta...) e a automotora parece que circula com maior cautela: não senti isso no dia anterior entre Faro e Vila Real de Santo António. Apercebo-me desta aproximação mais lenta às estações de Mexilhoeira, EstômbarSilves e Alcantarilha (pode ter-me escapado alguma).

Aproveito esta crónica para vos falar de algo que já me tinha apercebido nos outros traçados desta viagem que tive de recorrer ao IC. Em Tunes, entro, sento-me no lugar indicado e a minha carruagem vai, mais uma vez cheia. À exceção da linha do Algarve e de Beja, nas restantes linhas em que andei em comboios regionais, apesar de existirem passageiros, foram sempre em número relativo, mas nas viagens de longo curso o cenário altera-se consideravelmente. Na Beira Baixa, na linha de Évora, na ligação por IC a Faro e nesta que vos falo agora até Lisboa, os IC estiveram sempre extremamente bem compostos em termos de passageiros. Cheios, portanto. E aqui, há duas coisas inevitáveis que tenho de partilhar convosco: o conforto dos nossos intercidades (os Alfa que me perdoem), que serão dos comboios mais espaçosos e confortáveis para viagens de longo curso, e a redução significativa do preço do bilhete, que pode ir até 80%, quando tirado com antecedência. Comigo aconteceu isso. Espero na última crónica (se não me esquecer) dizer-vos quanto custou esta volta e quanto se poupou em comprar com antecedência.

Na viagem pela linha do Sul, notei uma diferença de velocidades: até à Funcheira é uma coisa (IC a "trote" mais lento), da Funcheira para cima a velocidade aumenta de forma significativa, sobretudo já a chegar à zona de Pinhal Novo. E porque volto aqui a referir a Funcheira, quando vinha no comboio a ver as antigas pontes de caminho-de-ferro, que foram substituídas na linha do Sul, veio-me à lembrança o acidente de 2010 com um comboio de mercadorias, à entrada da ponte de Alcácer. E porque cruzo eu estas duas ideias? Porque uma alternativa, ainda que mais longa e mais morosa, é sempre uma alternativa. 

Perante uma catástrofe na linha do Sul, qual a alternativa que temos para chegar ao Algarve em ferrovia? Pode estar a escapar-me... Por isso, aceito correções.

Um sonho de infância aos comandos dos comboios que o transportavam para a escola



Não me posso ir embora do Algarve sem vos contar o encontro com o maquinista Dario Silva. Está há um ano e meio na região algarvia e a fazer diariamente viagens a partir de Faro, para um lado ou para o outro. O Dario é daquelas pessoas discretas e humildes a quem até a visibilidade deste texto e destas palavras pode incomodar. Ainda assim, sendo uma "enciclopédia sobre carris" aceitou falar comigo. Fazemos em "off" (e aqui não é o termo que se aplica ao jornalismo, não vou aqui revelar, com falta de ética, qualquer segredo que ele me contou... E eu nunca faria isso) o percurso Olhão - Faro. Em "off" significa que não era ele o maquinista de serviço. Vamos de costas, em relação ao sentido de marcha, mas se há pessoa que não vira costas ao que faz é ele. A ferrovia está-lhe no sangue. Já o pai era maquinista na CP, sobretudo no Norte, mas chegou a estar a Sul. "Quis dar seguimento a um sonho de infância e aos 43 anos vim trabalhar para a CP", conta-me, depois de ter estado três anos ligado à ferrovia em Londres. Curiosamente, hoje conduz as mesmas automotoras que o pai conduzia nos anos 80 e 90 até se aposentar. "São os comboios que me transportavam para a escola e agora são os comboios com que vim trabalhar a 600 km de casa", refere com ternura na voz. A isto seguiu-se a pergunta inevitável da minha parte: "Como é que ainda aqui estão?". Dario Silva conta-me que, de facto, estas composições têm mais de 50 anos, fabricadas em Portugal em 1965 e depois intervencionadas nos finais dos anos 90. "Não é moderno, mas tem sido a solução possível. Esperemos que o futuro nos traga melhor", sorri.

Está prometida a eletrificação do Algarve e isso trará forçosamente (digo eu) melhores condições. 

Até porque, o maquinista confirma-me o que os meus olhos veem, "a linha do Algarve tem muita procura, ao contrário do que se possa pensar, mais nos meses de primavera e verão, talvez o mês mais vazio seja fevereiro". Fazemos uma pequena pausa na conversa, vejo que o Dario espreita por cima do banco e retoma a conversa dizendo "o comboio, mesmo sendo domingo, está praticamente cheio e tem dias em que é difícil dar saída à procura que temos".

Quando se avançar com a eletrificação, o mais certo é que os maquinistas venham a receber formação técnica, durante algumas semanas. "É como quem passa de um carro velho para um carro novo", tenta explicar-me de forma simples para que entenda. 

E estas velhinhas UDD, como se aguentam? A resposta vem também de quem as comanda e passa muito por, em Portugal, termos "a tradição de tratar bem aquilo que temos", mas também porque a bem da verdade, os colegas das oficinas vão fazendo "pequenos milagres, todos os dias, para manter a frota a funcionar".

Estas UDD, conta-me, são de fabrico Sorefame (Portugal) sob licença da The Budd Company, com freio de disco, uma estreia em 1965. "Uma unidade que, ainda hoje, não faz nenhum ferroviário corar de vergonha", conta.

O Dario é o exemplo de quem trabalha por amor àquilo que faz. Já foi adulto que se tornou maquinista e que entrou para a CP, mas cresceu lá dentro, nas automotoras com o pai, nas estações, nos dormitórios e isso espelha-se na forma como fala e como trabalha atualmente.

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