Como um rizoma, um tipo de caule, também a alimentação em Lisboa pode crescer horizontalmente. Quer isto dizer: através da proximidade entre produtores e consumidores, que se cruzam num lugar onde não existe a relação patrão-trabalhador ou vendedor-consumidor. Todos são membros, todos são iguais. É essa a vontade de um grupo de 95 pessoas que, em fevereiro deste ano, abriram as portas da Cooperativa Rizoma, para mudar a forma como a sua cidade se alimenta. Esta é a primeira mercearia comunitária da capital, a segunda no país.

É numa das principais artérias da Mouraria, que a revolução começa. O projeto piloto, a chamada Mini-Rizoma, ocupa temporariamente o rés-do-chão da Associação Renovar a Mouraria, no Beco do Rosendo. Aqui, os produtos locais são prioridade, como forma de reduzir a pegada ecológica associada e o preço final.

Cooperativas como a Mercearia Rizoma têm em comum a ambição de, no futuro, garantir aos seus cooperantes o suprimento de todas as necessidade de consumo.

Atualmente, a rede de produtores que abastecem a Rizoma está espalhada um pouco por todo o país. Recebem frescos das zonas de Colares e Palmela, o queijo vem de produções biológicas no norte, as sidras da zona oeste do Cadaval, o chá dos Açores. Outros, como hortaliças e pão, vêm de mais perto, de um raio inferior a 100 km.

A ideia começou a ser pensada em fevereiro de 2020, ainda antes de a covid-19 chegar a Portugal. Mas não tardou até reunir um conjunto de pessoas que se tornaram na sua equipa, entre lisboetas e estrangeiros chegados à cidade. Entretanto, o confinamento só vincou ainda mais a necessidade de criar um projeto comunitário como este em Lisboa.

A Mercearia segue o exemplo de outras Cooperativas, como a Minga em Montemor-o-Novo (a primeira em Portugal) e a Cooperativa Integral Catalã, em Barcelona, que pretendem responder a necessidades básicas de consumo de forma ecológica e socialmente justa. Levam em comum esta ambição de, no futuro, os seus cooperantes poderem suprir nelas todas as necessidades de consumo.

Comer hortaliças vindas da Calçada do Monte

Num dia normal, na Cooperativa recebem-se e fazem-se encomendas, repõem-se produtos (a maioria biológicos), organizam-se pagamentos, conversa-se e trocam-se ideias na pequena esplanada que ocupa o largo. Só aos domingos é que o plano muda: é dia de escoar os excedentes para reaproveitamento próprio ou para outras associações e cantinas sociais. Construir e manter uma mercearia comunitária obriga a um diálogo constante, a tomadas de decisão em grupo sobre a gestão e os produtos.

Em todos os produtos, em prateleiras ou em recipientes para serem comprados a granel, saltam à vista pequenas bolas coloridas desenhadas a giz em placas. Servem exatamente para dizer qual a origem e modo de produção do que estamos a ver.

As hortaliças de Sylvain Papyon, 39 anos, membro e agricultor, por exemplo, estão assinaladas com as cores azul, verde-escuro e laranja. Quer isto dizer que são produzidas por um membro da cooperativa, são biológicas e num raio inferior a 100 km.

Sylvain foi o primeiro “prossumidor” da Rizoma – como chamam a quem é simultaneamente membro e produtor. Todas as semanas, fornece a mercearia com produtos sazonais, biológicos e locais, vindos ali do lado, da Calçada do Monte, na Mouraria.

Sylvain Papyon, 39 anos, membro e agricultor. Foto: Líbia Florentino

Tal como os outros membros, quer fazer a diferença na cidade. Quer mudá-la, para ficar. Tem a ambição de se tornar agricultor urbano em Lisboa e de poder fazer isso a tempo inteiro. E com um rendimento digno. E fazê-lo não passa apenas pela produção agrícola, que na cidade está condicionada pela pequena dimensão dos terrenos disponibilizados. “Se eu realmente quisesse só produzir hortaliças, podia alugar um terreno fora de Lisboa, barato e com boas condições, mas depois a parte educativa e social não ia acontecer”, conta Sylvain. 

Gerar comunidade, criar laços entre gerações e complementar o trabalho nas hortas com atividades pedagógicas são uma parte indispensável do seu trabalho. Já o fez com o Centro de Acolhimento de Refugiados no Lumiar, com alunos da Escola Josefa de Óbidos, em Campo de Ourique e com um projeto de agricultura familiar no Parque Hortícola 2 de maio, na Ajuda. Estes são três dos quatro terrenos nos quais trabalha atualmente.

Da sua horta na Calçada do Monte pode ver-se Lisboa inteira ao mesmo tempo que se inspiram os cheiros do jasmim e da erva cidreira. O muro de vegetação que a cerca é sinal vivo desta ligação à comunidade de que fala. Está como que abatido de tanto que as pessoas param para se debruçar sobre ele e espreitar. Ficam para conversar, aprendem jardinagem, levam sementes ou algumas ervas aromáticas. “Escolhemos o lote que é mais perto da rua e isso criou condições para que as interações aconteçam”, conta Sylvain.

Este foi o primeiro terreno que conseguiu, quando há oito anos descobriu na agricultura a vocação. Foi cedido pela Câmara Municipal à Cozinha Popular da Mouraria, que está de momento fechada. É daqui que partem os produtos frescos que semanalmente ocupam a mesa ao centro da mercearia, apenas a dez minutos de distância. “A Rizoma tem um papel importante para a sustentabilidade das minhas atividades”, afirma o hortelão urbano.

“Quero promover essa ideia de tornar a cidade num jardim comestível, um sítio de produção agrícola”

Sylvain Papyon, agricultor

A cooperativa é uma forma de valorizar a sua produção e de ter retorno para desenvolvê-la. Mas é mais do que isso. “É aqui que o encontro com a Rizoma foi uma coisa muito feliz. Eu também quero promover essa ideia de tornar a cidade num jardim comestível, um sítio de produção agrícola”, conta Sylvain.

A sua maior ambição é criar todo um setor económico de produção agrícola na cidade, assente numa rede articulada de hortas urbanas, que teriam também centros de formação. Aponta benefícios como a autossuficiência alimentar, a criação de postos de trabalho não precário, o escoamento de águas pluviais, a preservação da biodiversidade, a mitigação das ondas de calor e a literacia alimentar. Mas, queixa-se, os vários terrenos baldios da cidade, herança de um passado de produção agrícola, em zonas como Olivais, Marvila, Ajuda, Benfica, Chelas ou Carnide, continuam a ter um destino comum: a urbanização. “Eu sou um agricultor sem terra”, afirma. 

Saúde na cidade pela alimentação

Esta é também uma das metas da Cooperativa para os próximos anos: ter um setor agrícola a par com o setor de consumo, dinamizado por membros produtores. Por tudo isto, a Rizoma é um projeto de mudança de mentalidades que envolve as áreas cultural, educacional, habitacional. E também quer estabelecer uma maior ligação ao bairro, através de eventos dinamizados pelo Grupo de Trabalho de Comunidade. “A ideia dos setores também é pensar o que podemos fazer melhor na cidade, mas numa perspetiva de cooperativismo”, explica Alison Powell, 34 anos, um dos membros da cooperativa.

De caminho, constrói-se uma comunidade. É a ligação direta entre consumidor e produtor o elo mais privilegiado nesta mercearia. Eliminar intermediários é também uma forma de reduzir os preços, tornando-os simultaneamente justos para os produtores e acessíveis para os consumidores, uma balança difícil de gerir, que esperam equilibrar à medida que a Cooperativa for crescendo. No próximo ano, preveem ter já 300 cooperantes e ter conseguido também fazer crescer a Rizoma através do financiamento recebido pelo Programa Bairros Saudáveis.

Alison Powell, membro da cooperativa. Foto: Líbia Florentino

Ativismo contra a precariedade

Carlos Azeredo, 27 anos, professor de matemática, fixou-se recentemente em Lisboa e conheceu a Rizoma através de um amigo cooperante. Veio a uma Sessão de Boas-Vindas descobrir melhor como funciona e decidiu tornar-se cooperante, pela experiência comunitária, mas também pela qualidade dos produtos. “Nas mercearias locais normalmente as frutas vêm de pequenos agricultores e eu noto mais qualidade. E depois, nós consumidores estamos mais preocupados em pagar o mínimo possível do que em dar um preço justo”, diz. 

João Fialho, 32 anos, foi um dos primeiros cooperantes a esboçar aquilo que seria a Rizoma. “Senti uma grande necessidade de se criar uma iniciativa comunitária que fizesse com que as pessoas se juntassem outra vez e se apoiassem em momentos de dificuldade”, diz, esclarecendo que foi o grande aumento da desigualdade provocado pela pandemia que lhe despertou a atenção para isso. “Portanto, a grande motivação foi criar uma iniciativa comunitária, democrática, participativa e que vá ganhando escala e se ligue a outras iniciativas do género”.

“Muitas vezes, pensava em ir viver para o Alentejo, mas depois falei com pessoas que me fizeram ver que também é preciso não abandonares a cidade”

Sílvia Félix, 41 anos

Alison Powell, outra das cooperantes, conta que “a motivação para este projeto é também criar uma forma de ativismo contra a precariedade aqui na cidade. É uma forma de criar mais compromisso nas pessoas em criar o sistema de alimentação que queremos”.

Para Sílvia Félix, 41 anos, também cooperante, foi esse compromisso que a fez ficar: “Muitas vezes eu pensava que gostava de ir viver para fora de Lisboa, para o Alentejo, mas depois falei com pessoas que me fizeram ver que também é preciso não abandonares a cidade”, diz. 

Criar a Rizoma é um ato de rebeldia contra o modelo do dia-a-dia, como diz a cooperante Irina Lima, 38 anos: “Aborrecia-me completamente ir ao supermercado e comprar um produto, mesmo biológico, e não ter informação sobre as condições de produção. Acho que ainda há muito a ideia de que se é biológico é produzido em condições justas, o que não é necessariamente verdade. E por isso um dos motivos que me fez juntar à Rizoma e estar no Grupo de Trabalho de Produtos é garantir que sei realmente as condições em que [os alimentos] são produzidos, porque há integridade e transparência para com os cooperantes.”

No Verão, a Rizoma já contava com 40 pessoas envolvidas. Em novembro, formaram legalmente a Cooperativa Integral e Multissetorial. Funcionam com base num modelo em que cada membro tem direito a um voto e, portanto, todos têm o mesmo poder de decisão independentemente do capital investido. Quando há discordância, debate-se até haver um consenso. Todos são chamados a participar e a ter uma voz.

Sílvia, Irina, João e Alison são quatro dos atuais 95 membros da Cooperativa. Nenhum deles é o dono, todos o são. Fizeram aquilo que todos os cooperantes têm de fazer: adquirir capital social (15 euros ou mais), dar três horas de trabalho mensais à cooperativa e ter uma sessão de boas-vindas. Têm o sonho partilhado de viver numa cidade diferente: com mais comunidade, cidadania e justiça social. Começaram a mudança pela alimentação.

Tinham encontrado na Associação Renovar a Mouraria valores comuns e no espaço disponibilizado o lugar ideal para o projeto piloto da mercearia comunitária. Como o consumo é reservado aos cooperantes, à semelhança do que acontece com outras cooperativas no mundo, é possível criar uma relação de maior confiança e proximidade.

Lisboa é um ponto no mundo

Este mapa mostra como as mercearias comunitárias são novidade por cá, mas não no mundo, onde já ganham raízes.

O que é um produto biológico?
Aquele que é produzido sem químicos de síntese (símbolo da folha verde). Ou seja, todos têm como base o não uso de químicos de síntese, mas depois alguns promovem ainda um uso moderado de exógenos (produtos que vêm de longe) ou que são consumidores de energia. Outros têm uma abordagem mais permacultural que consiste em tentar aproveitar todos os recursos que existem no local de produção e criar condições para que a biodiversidade coexista com a produção. Outra condição é terem uma vertente pedagógica, ou seja, serem realizados workshops e formações sobre jardinagem, agricultura e literacia alimentar, promovendo também laços comunitários e intergeracionais.

*Rita Velez Madeira está a estagiar na Mensagem ao abrigo do protocolo com a Universidade Nova de Lisboa, FCSH, Ciências da Comunicação, no projeto Correspondente de Bairro. Nasceu em Évora, aprendeu a fazer casa nas viagens de comboio entre as duas cidades, com vontade de escutar e contar histórias, de viver nesse lugar de fronteira que há entre nós e o Outro. Este texto foi editado por Catarina Reis.


amensagem.pt