sábado, 27 de março de 2021

“Há milhares de pessoas que aparecem todos os dias à porta de instituições que servem refeições e que não entram nos números do desemprego”


 expresso.pt 



“Temos a cair na pobreza quem? Os precários absolutos. Em segundo lugar, muitos trabalhadores independentes ou empresários de si próprios ou pequenos empresários” , lembra o sociólogo e antigo secretário-geral da CGTP, Carvalho da Silva



A pandemia de covid-19 causou “uma exposição dura” de velhas formas de pobreza, que são crónicas na sociedade portuguesa, defendeu em entrevista à Lusa o sociólogo Manuel Carvalho da Silva, para quem o problema é estrutural e tende a acentuar-se.

“Até agora, pode dizer-se que não existe uma emergência de novas formas de pobreza”, afirmou em entrevista à Lusa, manifestando receio de que as respostas à atual crise possam não ajudar a resolver problemas antigos e a precaver o futuro.

“Temos a cair na pobreza quem? Os precários absolutos, foram os primeiros. Em segundo lugar, muitos trabalhadores independentes ou empresários de si próprios ou pequenos empresários. Há muitos pequenos empresários e pessoas nestas condições revoltantes da matriz económica e de desenvolvimento que o país tem”, referiu.

Crítico de uma matriz “muito centrada nos serviços”, nomeadamente no turismo - um dos setores mais atingidos -, o sociólogo sublinhou que a desativação destas atividades provocou “uma situação de desproteção absoluta” das pessoas: “Surgiram na sociedade com uma situação de pobreza profunda em muitos casos, que em parte está escondida”.

Uma parte destes trabalhadores, referiu, “não entra” nas estatísticas.

“Há milhares de pessoas que aparecem todos os dias à porta de instituições que servem refeições e que dão apoio que não estão contabilizadas nos números do desemprego (...) o drama é justamente esse, é que isto está associado a fatores estruturais que não estão a ser alterados”, garantiu Carvalho da Silva, investigador no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.

Para o ex-dirigente sindical, a grande pobreza depende, em primeiro lugar, de salários baixos e desproteção social de uma parte significativa da população, a par de uma “precarização do trabalhador” que, na sua opinião, é “demolidora”.

“Tudo isto associado a uma matriz de desenvolvimento que não dá futuro”, frisou.

Carvalho da Silva, que dirigiu a CGTP-IN durante 25 anos (1987 - 2012), primeiro como coordenador e depois como secretário-geral, defendeu a necessidade de se olhar para as questões da pobreza com “grande atenção”, sob pena de se comprometer o futuro e o modelo de desenvolvimento necessário ao país.

A sociedade portuguesa, considerou, é “demasiado permissiva” perante a pobreza.

“No senso comum, ainda é muito comum mesmo a ideia de que uma pessoa só é pobre, pobre, quando já não tem meios sequer para se alimentar”, lamentou.

“A atitude da sociedade perante a pobreza não pode ser esta”, acrescentou o académico, reclamando uma evolução no comportamento dos portugueses, por forma a alcançar um combate mais eficaz neste setor.

“A sociedade portuguesa condescende facilmente com situações de sobrevivência das pessoas, em função meramente da caridade alheia e quando um indivíduo está dependente da caridade alheia a sua dignidade foi amputada”, sublinhou Carvalho da Silva em entrevista à Lusa, realizada no seu escritório em Lisboa, onde está a desenvolver um Laboratório Colaborativo para o Trabalho, Emprego e Proteção Social (COLABOR).

Os dois primeiros casos de pessoas infetadas em Portugal com o novo coronavírus foram anunciados em 2 de março de 2020, enquanto a primeira morte foi comunicada ao país em 16 de março. No dia 19, entrou em vigor o primeiro período de estado de emergência, que previa o confinamento obrigatório, restrições à circulação em Portugal continental e suspensão de atividade em diversas áreas.

A suspensão ou restrição de atividade em variados setores, como restauração, comércio, turismo e cultura, entre outros, elevou o número de falências em Portugal, agravou situações de precariedade laboral e provocou aumento do desemprego.

País precisa de apostar na indústria

Na sua entrevista à Lusa, Carvalho da Silva defende ainda que Portugal precisa de apostar na industrialização e de ficar menos dependente do setor dos serviços, nomeadamente do turismo.

“A indústria tem muito mais capacidade de aumentar a produtividade, de propiciar aumento da riqueza e de criar e estabilizar emprego e qualificar emprego do que o setor dos serviços, em geral, e muito mais que este tipo de serviços que a matriz de desenvolvimento portuguesa tem”, justificou quando questionado sobre o caminho que o país deve seguir para ultrapassar a atual crise, desencadeada pela pandemia de covid-19.

“O grande problema, o primeiro problema é que nós temos um enviesamento na nossa matriz de desenvolvimento”, apontou.

Para Carvalho da Silva, as atividades estão demasiadamente centradas numa lógica de produção de serviços “muito ligados ao turismo”, o que faz emergir o setor imobiliário e outros de proximidade àquela atividade âncora, sem que o resultado se reflita na qualidade de vida dos trabalhadores.

“Esta especialização produtiva não tem futuro, não nos permite sair da cepa torta, para usar uma expressão comum”, declarou.

“É necessário mudanças e mudanças muito profundas. A pandemia, aquilo que se está a passar, dá indicações nesse sentido? A mim, parece-me que não”, concluiu o sociólogo.

De acordo com Carvalho da Silva, a discussão em torno do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) é disso exemplo: “O clamor de grande parte dos setores empresariais portugueses não se volta para essa necessidade de mudança. Volta-se para uma reativação de atividades diversas e até uma ideia de que haverá um regresso à normalidade, tomando como conceito de normalidade aquilo que tínhamos anteriormente”.

“Isto não resolve”, acentuou. Carvalho da Silva olha com ceticismo para o atual cenário. “A saída desta situação deve levar a que haja um esforço imenso para haver investimento e fazer-se investimento e depois proteção às pessoas, às famílias e a tudo o que são atividades que possam manter-se sem excesso de ficção, ou seja, tudo o que sejam atividades que tenham um mínimo de possibilidade de se manterem devem ser protegidas. Mas não tenhamos a ilusão de que é possível proteger tudo o que tínhamos”, advertiu.

O turismo, indicou, precisa de acertos. “Se não tivermos reacertos no turismo, o que é que temos? Temos as cidades a despir-se, temos as pessoas a terem mais problemas de mobilidade, a serem empurradas e a terem custos com a habitação incríveis, com a deslocação para o trabalho, temos um desequilíbrio do território”, observou.

A questão é “qualitativa”, justificou, defendendo uma articulação entre o desenvolvimento do setor do turismo e políticas de transportes, no quadro geral das mobilidades, a par de “uma estratégia bem definida para as políticas de habilitação, que procure que as cidades não fiquem despidas”.

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