sábado, 27 de fevereiro de 2021

A burguesia do teletrabalho e as palavras na crise

 

 

 
Não conheço a Professora Susana Peralta de lado nenhum (em pessoa, quero dizer). 
Não tenho acerca dela nenhum preconceito, seja positivo ou negativo. Às vezes concordo, outras vezes discordo do que ela diz ou escreve: nada de mais corriqueiro.
 
Contudo, o clamor que levantaram umas suas palavras, talvez demasiado bombásticas para proporcionarem reflexão calma sobre a matéria, dá que pensar. 

Claro que aquela coisa da burguesia do teletrabalho, além de lembrar os que olham para uma crise e pensam logo que ela é uma oportunidade para cortes de rendimento e para aumentos de impostos, traz logo à mente aquele "os ricos que paguem a crise" e essa lembrança pode provocar um sorriso ou um esgar. 

Mas, na verdade, eu próprio ando a dizer, desde o primeiro confinamento, que me choca esta ideia de que "ficamos todos em casa", quando milhões de trabalhadores têm de continuar a sair de casa todos os dias para nós podermos continuar a viver. 

Isto parece-me tão relevante, e tão esquecido, que tive necessidade de chamar a atenção para isso numa intervenção parlamentar, ainda durante o primeiro embate com o novo coronavírus. Sim, podemos não gostar da luta de classes como ferramenta de análise, mas lá que não estamos todos no mesmo barco (mesmo que estejamos na mesma tempestade), não estamos.

De qualquer modo, não pretendo nesta ocasião debater o conteúdo daquelas declarações. Quero, simplesmente, deixar uma breve reflexão sobre a condição do debate público entre nós. 
E, nessa óptica, este episódio mostra, pela enésima vez, que andamos a fazer tudo o que podemos para tornar impossível qualquer debate sério no espaço público. Contribuem para isso duas forças.

Como força que contribui para essa dinâmica assinalo, desde logo (e isto é fácil de ver), que só se consome gritaria. O que é preciso é encontrar uma frase bombástica para colocar toda uma intervenção, oral ou escrita, sob um determinado foco de luz, que só vê um certo aspecto específico do texto produzido e, a partir daí, concretizar duas operações de destruição. Por um lado, destruir o autor, porque disse qualquer coisa que supostamente brada aos céus (e nem é preciso tentar perceber o que o autor disse) e, por outro lado e mais importante, fazer com que ninguém ligue a nada mais do conteúdo do pronunciamento. A gritaria serve, na prática, para calar a opinião e colocá-la atrás do biombo do escândalo. A gritaria é uma espécie de inquisição distribuída: inquisição, no sentido em que serve para calar os dissidentes (dissidentes de qualquer coisa que os censores nem sabem bem o que seja);  distribuída, no sentido em que cada um, desde que possa berrar nas redes sociais ou se possa aproximar de um microfone, faz a sua própria acusação e a sua própria condenação, sem esperar por outro juiz ou avaliação. A inquisição distribuída não actua em função de nenhuma ideia, de qualquer valor ou de qualquer ordem: quer a vítima e a condenação como mero espectáculo de autoprodução da gritaria como modo de viver o espaço público. 
 
Há, entretanto, outra força que contribui para esta dinâmica. Trata-se da necessidade que muitos intervenientes sentem de elaborar frases bombásticas que coloquem o seu discurso, nem que seja por uma manhã, em foco. Há uma luta pelo palco: há tanta gente a falar que eu devo dizer qualquer coisa suficientemente espectacular para conseguir ser ouvido no meio da multidão. Os mais comedidos não pensam assim, pensam antes: como é que eu digo isto de forma suficientemente aguda para ser entendido? De qualquer modo, por este atalho ou por aquele, acabam muitas vezes por chegar à mesma avenida: a grande via das declarações sumptuosas e tonitruantes. Na verdade, este procedimento resume-se a isto: os mais interessantes pensadores, tendo vontade de entrar no debate público, acabam às vezes por ceder à tentação de agir segundo a linha geral daqueles que os hão de destruir: querem entrar na gritaria. Dizer qualquer coisa que prometa fazer furor para quem só gosta de sangue. Pensam que assim podem passar a mensagem - e, assim, cavam o destino azarado do seu próprio discurso.
 
No caso dos que estão mais habituados aos círculos académicos, há outros fenómenos, decorrentes da impreparação para sair de um habitat discursivo controlado, mas, finalmente, vamos cair no mesmo: a tentação de impressionar o auditório produz um descontrolo da comunicação. É que os tratados de retórica são dificilmente adaptáveis ao número de caracteres dos gorjeios na rede...

Curiosamente, alguns dos nossos cientistas interessantes fazem o que podem para ignorar que o debate no espaço público é, em si mesmo, um fenómeno social, que não pode ser encarado de forma linear, como se enviassem mensagens directas de um emissor a um receptor dentro de uma linha recta protegida contra interpretações e leituras. Agem assim (tirando os que fazem de propósito para interferir no discurso político sem o assumirem) sob pena de pisarem, no domínio social e no domínio político, algo que Heisenberg pensou mais para a física das partículas: quando interferes com a realidade mudas a realidade, mesmo que essa interferência seja só observação. E, portanto, não podes fazer de conta que falas alto e depois lavas daí as tuas mãos.

Os cidadãos que, em algum momento da sua vida, fazem política - os chamados políticos - tinham obrigação de saber disto. Tal como os cientistas sociais. Mas, pelos exemplos recentes, está difícil para todos compreender que as palavras fazem coisas. Especialmente em tempos de crise, onde há menos recuo na reacção. Não podes usar o método da gritaria e depois ficar aborrecido porque ela se levanta contra ti.
 
Tudo isto seria irrelevante se a qualidade do debate público não fosse tão crucial para a democracia. Como é crucial, temos de saber agir para preservar a diversidade no debate, porque não será a unanimidade a salvar-nos. Nem a unanimidade da gritaria, nem qualquer outra.
 
 (A imagem é um recorte do Público de hoje.)
 
 
Porfírio Silva, 27 de Fevereiro de 2021

maquinaespeculativa.blogspot.com

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