Madalena Sá Fernandes in facebook
Filhas,
Um dia vou contar-vos que houve um tempo em que as pessoas não se podiam tocar, mas que essa era a melhor forma de amar. Que não se podiam abraçar, mas que esse era o maior abraço que podiam dar. Que não visitar os avós era um gesto de amor. Que não encontrar os amigos era amizade. Que ficarmos fechados só connosco era altruísmo. Vou contar-vos que os pais de todo o mundo estavam com medo, mas que tiveram de ser fortes para que os filhos não percebessem nada. Que os filhos de todo o mundo tiveram medo e quiseram fechar os pais em casa. Que havia heróis verdadeiros a lutar por nós. Vou contar-vos que tivemos todos muitas saudades uns dos outros. Que as pessoas cantaram à janela. Que a arte foi a forma que muitos encontraram de descobrir ordem neste caos. Que se espalhou o terror e o amor.
Que permitimos o optimismo e o espaço para arrumar estantes e aprender pratos. Que tivemos de ficar afastados para perceber que estamos juntos. Que fomos ninjas de álcool gel e luvas, a calcular cada girar de maçaneta. Que aquilo que nos faria sentir inúteis foi da maior utilidade e que a melhor ação era a nossa imobilidade. Que, entre gestos milimétricos, vinham memórias de abraços não policiados, das férias, da infância e de quando tudo, afinal, era mais simples.
Que muitos cá dentro perceberam que estavam a viver mal lá fora.
Vou contar-vos que as esplanadas ficaram vazias e os baloiços imóveis. Que, em algum momento, entre desinfectar as mãos e descascar uma pêra, tivemos todos muita vontade de chorar. Que a vida que achávamos conhecer foi embora numa madrugada. Que, no intervalo do refogado ao lume, cabia tudo. Videochamadas, textos emotivos, directos do IG.
Da ansiedade à distração, do medo à esperança, projectada num golfinho que está, algures, mais feliz sem nós.
Que, num refresh ao feed, declarações de amor intercalavam as estatísticas assustadoras. Que a catarse se fazia com memes. Que nas paredes se perdiam os dias. Que vimos a Primavera chegar da janela. E que nada voltou a ser o que era. Um dia, vou contar-vos tudo isto. Agora, vou acabar a sopa, agradecer por vos ter comigo e encher-vos de amor.
Madalena Sá Fernandes
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