quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Amigos não deixam amigos ser fascistas

 

Nunca na minha vida contei a ninguém o segredo do João. Já adulto, não o via há sei lá quantos anos, e às vezes pensava nele, pá («em frente!»), a abrir caminho à quadrilha, a deboiçar mato de cisto a golpes de braços nus.

Desfile dos «coletes amarelos» em Estrasburgo, França, dia 3 de Dezembro de 2018, durante a terceira jornada nacional daquele movimento.
Desfile dos «coletes amarelos» em Estrasburgo, França, dia 3 de Dezembro de 2018, durante a terceira jornada nacional daquele movimento

Nunca na minha vida contei a ninguém o segredo do João. Já adulto, não o via há sei lá quantos anos, e às vezes pensava nele, pá («em frente!»), a abrir caminho à quadrilha, a deboiçar mato de cisto a golpes de braços nus, indiferente às silvas que a nós nos cortavam nas canelas como canivetes («esquerda volver!») e o gajo, pá, de calções, sem um arranhão, sei lá como, isento de amores-de-burro que a nós se nos abotoavam aos atacadores e às meias da raquete. O João, pá, a desbravar a tarde alentejana como um bandeirante na Serra dos Motrinos1. Até que a um gesto seu a coluna estacava («sentido!») e o João, pá, com perícia militar, a dar o azimute («olhar esquerda!») do bando de pardais às nove horas («apresentar arma!»).

Eu era o único do grupo que sabia do extraordinário fenómeno sobrenatural que ia ali repetir-se diante dos nossos olhos. Já nem sequer tirava a patilha de segurança da pressão de ar («pelotão de execução: preparar!»). 

Ali ficava, a apreciar aquela cena por cima do cano do fuzil, pá, sorridente e invisível à minha unidade de guerrilheiros do sétimo ano que pelas miras só podiam ver pardais («apontar!») e não podiam ver o João, e não o poderiam entender.

«É demasiado fácil dizer que não se debate com fascistas e o Ventura agradece sempre que bloqueamos mais um amigo do Chega no Facebook. É preciso ter paciência e explicar-lhes, um a um, como estão errados com todas as armas que o Ventura não tem: argumentos que demoram mais que cinco minutos, provas, estatísticas, lógica, ciência, razão»














E então, uma fracção de segundo antes da troada calar as cigarras («fogo!»), um chumbo antecipava-se contra o céu, assobiava muito acima das cabeças dos pardais em debandada e dissolvida-se em vapor na tremulina. 

«Porra, pá! Outra vez? Mas quem é que disparou antes?! Fugiram todos!». E eu sorria, silencioso aos protestos furiosos do João, porque o segredo dele estaria sempre seguro comigo, mesmo que um dia tivéssemos 18 anos e as armas fossem a sério e ele ainda se recusasse a matar, já não um pardal, mas uma ideia, ou um sonho, ou um amigo.

Resumidamente, pá, o João era o miúdo mais doce, o mais puro, do nosso grupo de amigos. Entre os rapazes, especialmente na aldeia, era vezo não se admitirem maiores expressões de afecto. A amizade masculina tem destas coisas: uma espécie de parcimónia permanente, um esforço incessante de ser homem, como se não ser homem, e por consequência ser mulher, fosse algo de adquirido e insuportável: uma fraqueza de que os rapazes deviam erguer-se, a pulso de embargar lágrimas e esconder sentimentos. É que não é só o espírito milenarmente subjugado das mulheres que o capitalismo teima em engavetar em estreitas cofragens: o sexo masculino também não escapa ao cilindro que nos faz mais "homens" e nos torna menos humanos. A lei não escrita dos homens (com H muito, muito pequeno) tornava-nos ridículos. Impunha-nos um pudor que nos apertava o peito com as cordas lívias da conveniência e impingia um decoro que nos atava com nós a garganta e o coração. Obrigava-nos a comunicar por sinais de fumo e através de uma linguagem gestual da qual só assimilávamos o sentido geral. Tornava-nos, como escreveu Saramago, em espantalhos a gesticular através do vidro. A todos, menos ao João.

Talvez tenha começado assim, não sei. Só sei que, no nosso grupo de putos, apesar de uma suspeita generalizada, nunca houve qualquer reunião para discutirmos porque é que nunca, mesmo nunca, caçávamos nada. O coração do João era bom, pá.

Quando o íamos buscar outra vez depois do jantar, nunca cruzávamos a ombreira da porta. A casa do João só tinha três divisões: o quarto que os pais partilhavam por duas camas com quatro filhos, a cozinha, que também fazia as vezes de sala e uma casa de banho, onde nunca entrei. 

Um dia, mais tarde, o pai emigrou. A casa ficou menos abarrotada e o João ficou mais triste.

Naquelas noites de estio, em que não tínhamos hora para estar em casa e nos deitávamos de costas na estrada de alcatrão a ferver, o João trocava a farda de soldado pela sotaina de pregador: tinha coragem para nos dizer, assim, preto no branco, como gostava tanto de todos nós. Prometia violências terríveis se alguma vez alguém fizesse mal a qualquer um de nós. Declarava-nos como a única coisa importante na vida, e prometia-nos, algo poético para aquela idade, pá, sem noção da efemeridade da adolescência, que a vida devia ser estarmos sempre unidos, sermos bons uns para os outros e nunca nos abandonarmos. E nós não nos riamos. Só ouvíamos. Porque, toda a gente sabe, não se vêem carros nem sarcasmo nem cinismo sob as estrelas da noite do Alentejo.

«O único ponto de contacto entre a verdade e o João é a realidade da vida dele: o salário que ganha, as horas que trabalha, a riqueza que produz, a renda que paga, a raiva que sente. Em última análise, só assim poderemos retirar o fascismo das cabeças dos nossos amigos como o João: no trabalho, na rua, na realidade concreta, na grande escola que é a luta»














Um dia, o João foi trabalhar com o pai para França e nunca mais nos vimos, mas para mim ele permanecia nos mesmos lugares, a acabar de jantar a correr para vir salvar pássaros com a pressão de ar, deitado ali naquela curva onde agora já passam mais carros, pá, com a cabeça cheia de sonhos contra o alcatrão.

E há pouco tempo reencontrei o João no Facebook. 

Tive de ver as fotografias várias vezes para me certificar de que era mesmo ele. Nem sei como é que não chorei, pá. O gajo agora só partilha coisas do Chega, mete frases do troglodita do Ventura, faz comentários racistas, apela à morte de ciganos, comunas, pretos, paneleiros… 

O João, pá. O João, porra.

A minha vontade, a minha raiva, era eliminá-lo da lista de amigos, bloqueá-lo, sei lá, nunca mais ver aquelas merdas, para não me incomodar. Tão fácil, tão simples, tão rápido, tão limpo, tão egoísta. O problema é que o João ficou fascista exactamente porque eu não me incomodei o suficiente.

Tive de lembrar-me do João de 12 anos, que nunca me apagaria, que nunca me bloquearia. E depois, à medida que lhe percorria as fotografias do perfil, comecei a entender como é que a vida fez do João um fascista. Estavam ali dez anos anos a gritarem-lhe, a roubarem-no, a humilharem-no, a empobrecerem-no, a destruírem-no. 

E eu, onde é que eu estava esse tempo todo?

Hoje não gostaria de voltar a explorar a Serra dos Motrinos com o João. O segredo dele estragou-se, talvez irreparavelmente, e não tenho dúvidas de que amanhã ele dispararia a matar contra os pardais e, agora que já somos crescidos, até mesmo contra mim. E apesar disso, eu não só não o apaguei, como voltei a falar com ele.

O João ficou fascista em França porque só os fascistas é que falavam em virar o tabuleiro do jogo. 

Outros andavam mais preocupados em preservar a estabilidade do Estado burguês e em apresentarem-se como parceiros responsáveis aos seus inimigos de classe. Não tinham nada para dizer a gente como o João. 

Não falavam a língua dele. Não sentiam a raiva dele. 

Por isso, nunca ninguém lhe falou de classes sociais nem de mais-valia. O João não teve a oportunidade de aprender história, não teve amigos nem colegas que lhe descodificassem as notícias que parecem dar sempre razão aos fascistas. Sem surpresas, quando o João voltou para Portugal foi parar ao Chega.

«Por estes dias, o João ainda me polui o feed com lixo do Chega e ainda acha que o governo tem medo dos ciganos. A diferença é que agora tem contraditório, e o fascismo é uma doença que se cura a pensar e a discutir. Agora, o João tem um amigo que, enquanto houver memória e estrelas nas estradas do Alentejo, não o deixará nunca continuar a ser fascista»














É demasiado fácil dizer que não se debate com fascistas e o Ventura agradece sempre que bloqueamos mais um amigo do Chega no Facebook. É preciso ter paciência e explicar-lhes, um a um, como estão errados com todas as armas que o Ventura não tem: argumentos que demoram mais que cinco minutos, provas, estatísticas, lógica, ciência, razão.

É uma batalha epistemológica desigual: o João não precisa de provas para acreditar nas teses fascistas e não só me exige que lhe seja eu a provar que as crenças dele são falsas (como é que se prova que o «lobby gay» não manda no mundo?), como acha que toda a evidência científica que o desmente se baseia numa gigantesca conspiração globalista. O único ponto de contacto entre a verdade e o João é a realidade da vida dele: o salário que ganha, as horas que trabalha, a riqueza que produz, a renda que paga, a raiva que sente. Em última análise, só assim poderemos retirar o fascismo das cabeças dos nossos amigos como o João: no trabalho, na rua, na realidade concreta, na grande escola que é a luta.

Por estes dias, o João ainda me polui o feed com lixo do Chega e ainda acha que o governo tem medo dos ciganos. A diferença é que agora tem contraditório, e o fascismo é uma doença que se cura a pensar e a discutir. Agora, o João tem um amigo que, enquanto houver memória e estrelas nas estradas do Alentejo, não o deixará nunca continuar a ser fascista. E um dia destes, quem sabe, ainda nos reencontraremos os dois, pressão de ar no talabarte («arma ombro!») para salvar pássaros e sonhos na Serra dos Motrinos («Apontar, fogo!»).

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